Flávia Biroli[1]
A contestação das agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual tem tido um lugar de relevo nos conservadorismos atuais e em sua capacidade de constituir e mobilizar públicos.
Na Colômbia, teve impacto na produção do resultado final do plebiscito de 2016, em que 50,2% da população recusou o acordo de paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) (Amaya, 2017). Na Costa Rica, as eleições presidenciais de 2018, em que se enfrentaram no segundo turno o pastor evangélico Fabricio Alvarado e o governista de centro-esquerda Carlos Alvarado, foram transformadas em uma espécie de plebiscito sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. No Peru, assim como na Colômbia, ministras da Educação foram afastadas ou levadas a renunciar com base em campanhas difamatórias fundadas na ideia de que promoviam, por meio de conteúdos escolares, a sexualização precoce da infância. No Paraguai, o uso de material escolar que menciona ou promove a igualdade de gênero como valor entre estudantes foi proibido em 2017, em um dos desfechos possíveis para uma disputa que segue em curso em outros países da região, incluído o Brasil, em que o combate à chamada “ideologia de gênero” fez parte da campanha eleitoral e chegou ao governo gederal com a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) para a presidência da República, em 2018.
As pesquisas em curso têm ampliado a compreensão do backlash contra o gênero. Trata-se de uma mobilização internacional que tem origem nos anos 1990, como reação à incorporação da agenda de gênero nos debates e documentos resultantes das conferências da Organização das Nações Unidas (ONU) ocorridas no Cairo (1994) e em Pequim (1995). Conservadores católicos e pentecostais são protagonistas nessa mobilização, convergindo ou aliando-se estrategicamente na sua promoção em diferentes países, o que se acentuou nos anos 2000.
No caso do catolicismo, foi apontado um deslocamento da doutrina social, nesse período, de um eixo econômico para um eixo definido como “antropológico”, no qual a “natureza” sexual é considerada transcendente e as agendas da igualdade de gênero e da diversidade sexual são apontadas como ameaças à “ordem da criação” e à estabilidade da reprodução social (Garbagnoli, 2018, p. 55[2]). Ao mesmo tempo, a crescente atuação política organizada de setores evangélicos, que têm obtido sucesso na definição de partidos de base evangélica e na eleição de representantes em vários países da região, tem sido fundamental para o desdobramento dessa campanha em projetos de lei e em políticas públicas (ou em vetos às políticas alinhadas com os valores da igualdade de gênero e da diversidade sexual). Atores sociais e políticos de “um tipo de modernidade que se desenvolveu em uma sociedade marcada pela desigualdade de renda, pela instabilidade política e pelo papel proeminente da Igreja Católica” (Machado, 2015, p. 46), disputam os sentidos da democracia, na medida em que contestam e ressignificam a noção de laicidade do Estado e a agenda de direitos individuais e humanos. A campanha contra a agenda de gênero tem permitido a atuação conjunta de conservadores católicos e evangélicos.
O problema passa, assim, por compreendermos os padrões atuais das relações entre religião e política, assim como das alianças e conflitos no campo religioso. Mas vai além disso. No caso brasileiro, o movimento “Escola Sem Partido” e o “Movimento Brasil Livre” (MBL) são exemplos de como conservadorismos que não têm origem religiosa incorporam o combate à agenda de gênero e colaboram para colocá-la no centro dos embates políticos. É algo que ainda precisamos compreender melhor, mas minha hipótese é de que se trata de um combate que tem origem em setores religiosos, mas que não pode ser definido como um fenômeno religioso.
Trata-se de um fenômeno propriamente político, que envolve atores religiosos e seculares, assim como motivações que se constituem em diferentes espaços e se alinham a interesses que podem ser convergentes, mas não são homogêneos. Não se trata, por outro lado, de um véu ou uma distração para ocultar disputas que seriam, elas sim, reais. Estão em jogo os contornos da laicidade do Estado, os limites à ação de maiorias para a restrição dos direitos de minorias, as garantias à liberdade individual, os contornos da cidadania das mulheres e seu direito à participação em condições de igualdade.
Não é uma coincidência que nas décadas em que as democracias liberais se multiplicaram no mundo, os anos 1980 e 1990, a politização dos direitos das mulheres e da população LGBT tenha se ampliado transnacional e nacionalmente, enquanto hoje o recesso das democracias é acompanhado de questionamentos abertos aos fundamentos da igualdade de gênero e da diversidade sexual. Com isso, não pretendo idealizar as democracias liberais existentes, mas chamar a atenção para o fato de que consistiram em um contexto em que foi possível disputar sua qualificação com base na crítica aos seus limites.
Entendo que as disputas em torno da agenda de gênero compõem, atualmente, a crise das democracias liberais, embora nem sempre sejam consideradas por quem as analisa. São também uma chave na conexão entre conservadorismos, a mobilização de públicos e a ascensão de projetos autoritários por meio do voto.
A apologia conservadora à família é um ponto de convergência entre diferentes conservadorismos e se conecta a duas faces do recesso democrático, a restrição da dimensão pública da política, apoiada em uma lógica orçamentária e traduzida na privatização e na retirada de direitos sociais, de um lado, e a restrição de direitos individuais e de minorias, apoiada na noção de “maioria moral”, por outro.
Na primeira, as unidades privadas familiares são responsabilizadas pela reprodução social numa economia da desproteção. A realidade incontornável da vulnerabilidade e da dependência que temos do cuidado de outras pessoas na infância, nas doenças, nas necessidades especiais e na velhice é reposicionada na balança das responsabilidades públicas e das privadas, pendendo mais para a última (Biroli, 2018). Assim, a famosa afirmação de Margaret Thatcher nos anos 1980 – “não existe sociedade, mas apenas homens e mulheres individualmente… e suas famílias” – pode ser tomada como um registro de que as famílias são necessárias para se sustentar a ilusão de um conjunto de indivíduos livres para escolher em uma economia de mercado. Como afirmou Wendy Brown (2015, pp. 105-6), “o familismo é um requisito essencial e não um aspecto incidental da privatização neoliberal de bens e serviços públicos”. Eu adicionaria que é a concepção patriarcal da família que é evocada, baseada na divisão sexual do trabalho.
Na segunda face, novas formas autoritárias de controle sobre a sexualidade e as subjetividades vão ganhando legitimidade política em contextos nos quais as inseguranças derivadas da desproteção social estão sendo traduzidas como questões de ordem moral. A atuação dos movimentos feministas e LGBT politizou as relações de gênero sobretudo a partir dos anos 1970, isto é, pressionou para que se tornassem temas públicos e agenda política que interpelam o Estado. No caso dos direitos sexuais e reprodutivos, essa politização esteve na base da produção de leis e de políticas que se afastam de práticas e normas fundadas na autoridade moral da Igreja e deslocam as bases da autoridade masculina.
São pistas para a análise de como a racionalidade neoliberal e os conservadorismos voltados para a “restauração” de uma ordem moral desafiada pelos feminismos e pelos movimentos LGBT se encontram nesse contexto de recesso da democracia. Sem que seja necessária a conformação de um pensamento social e político coerente, ambos clamam por famílias funcionais em meio a dinâmicas de privatização, retração das responsabilidades coletivas e das garantias democráticas.
Referências bibliográficas:
AMAYA, José Fernando Serrano. “La tormenta perfecta: ideologia de género y articulación de públicos”. Sexualidad, Salud y Sociedad, n. 27, dezembro de 2017, pp. 149-171.
BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
BROWN, Wendy. Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.
GARBAGNOLI, Sara. “Contra la herejía de la inmanencia: el ‘género’ según el Vaticano como nuevo recurso retórico contra la desnaturalización del orden sexual”. Em: Sara Bracke e David Paternotte (eds.), Habemus Género! La Iglesia Católica y la Ideologia de Género. Gênero & Política América Latina e Sexuality Policy Watch, 2018, pp. 54-80.
MACHADO, Maria das Dores Campos (2015). “Religião e política no Brasil contemporâneo: uma análise dos pentecostais e carismáticos católicos”. Religião e Sociedade, 35(2), 2015, pp. 45-72.
[1] Professora Associada do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB).
[2] As noções citadas pela autora estão presentes na Carta aos Bispos assinada por Joseph Ratzinger e Vittorio Messori, de 2004, e no comunicado aos Membros da Cúria Romana feito por Ratzinger já como Papa Benedito XVI, em 22 de dezembro de 2008.
Referência imagética:
Portal IG. Disponível em: https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2016-06-01/manifestacao-contra-o-machismo-e-o-estupro-reune-5-mil-na-avenida-paulista.html (Acesso em 12 de maio de 2019, às 10:20)