Bruno de Castro Rubiatti[1]
Introdução
Quando se trata do funcionamento das Instituições Políticas Brasileiras, o tema do presidencialismo de coalizão se torna central. Nesse sentido, cabe ao Executivo construir uma base de apoio para conseguir aprovar sua agenda no Legislativo, sendo que essa construção se baseia em uma distribuição partidária de postos no governo. Dois pontos se destacam nessa distribuição: 1) a negociação entre o Executivo e o Legislativo se dá em bases partidárias e não individuais, assim, a figura dos líderes partidários ganha destaque como elo de ligação entre o governo e sua base de apoio legislativo e 2) a distribuição desses postos não se limita a uma distribuição de cargos: na verdade, ao formar uma coalizão, o governo estaria distribuindo poderes de agenda para os parceiros da coalizão, que passariam a ter maior influência sobre a área de políticas para qual foi indicado.
Essa lógica de construção de coalizões depende fortemente da capacidade de coordenação do próprio Executivo. Para tanto, esse ramo do Estado conta com uma ampla gama de poderes de agenda (Pedido de urgência, Iniciativa Exclusiva em algumas matérias, como a orçamentária) e controle de recursos que podem ser usados para induzir a cooperação dos partidos no Legislativo. Por outro lado, os líderes partidários também contam com poderes regimentais que lhes permitem induzir um comportamento mais disciplinado de suas bancadas.
Porém, duas questões devem ser levadas em conta ao tratar desse tema: 1) o Congresso Brasileiro é formado por duas casas legislativas: Câmara dos deputados e Senado, e 2) o governo Bolsonaro (2019-2022) foi eleito com um discurso contrário a formação de coalizões, identificadas inicialmente como “velha política” ou “toma-lá-dá-cá”. Nesse sentido, o presente trabalho busca explorar como se deu a atuação do Senado durante esse governo, buscando identificar o conflito e a cooperação existentes entre essa casa e o Executivo durante esse período.
Para tanto, o texto se divide em duas seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira serão apontadas algumas características do arranjo bicameral brasileiro. Na segunda parte, serão discutidos os dados da produção legislativa do Senado no período do governo Bolsonaro, apontando as dificuldades de aprovação das matérias do Executivo.
O Senado no processo legislativo brasileiro
O Brasil adota um sistema bicameral caracterizado como forte, isto é, ambas as casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal) possuem semelhantes capacidades de atuação no processo decisório (simetria) e forma de seleção distinta para cada casa (incongruência) (Araújo, 2012; Rubiatti, 2017; Rubiatti, 2023). Dessa forma, tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado podem 1) iniciar legislação, 2) todos os projetos de lei precisam passar pelas duas casas para serem aprovados, 3) ambas as casas possuem prerrogativas de controle e indicação de autoridades (sendo que o senado tem maior participação nas indicações). Além disso, as casas são formadas por eleições próprias, com fórmulas eleitorais distintas (majoritária para o Senado e proporcional para a Câmara dos Deputados), renovação parcial para o Senado e total para a Câmara dos Deputados a cada quatro anos e mandatos com duração diferentes (quatro anos para Deputados e oito para Senadores). Essa forma de bicameralismo acaba por tornar ambas as câmaras relevantes para o processo decisório.
Todavia, há um elemento que deve ser destacado: como no Brasil o Executivo é um importante propositor de matérias legislativas, e as iniciativas desse poder iniciam seu trâmite pela Câmara dos Deputados, é comum se classificar o Senado como “câmara revisora”. Porém, cabe notar que os legisladores brasileiros também iniciam e aprovam seus próprios projetos de lei, e isso é válido também para os senadores. Além disso, a atividade de revisão não é uma atividade menor, uma vez que, a partir dela, a casa revisora pode tanto rejeitar o projeto (levando-o para o arquivo), quanto alterar (o que faz o projeto retornar para a câmara de origem), além de aprovar (enviando para a sanção presidencial). Em suma, o papel de revisão não se limita ao papel de “carimbador”.
Tendo esse arranjo bicameral forte, a construção de uma base de apoio Legislativo ao Executivo deve levar em conta a composição e a correlação de forças em ambas as casas. Assim, ao buscar construir uma maioria no Legislativo, o Executivo tem que ter em mente que esse apoio deve ser coordenado em ambas as casas e, nesse ponto, a coordenação partidária ganha maior relevo. Todavia, o governo Bolsonaro foi marcado por uma dificuldade de coordenação de ação com os partidos no legislativo.
O Senado e o governo Bolsonaro
Antes de entrarmos nas iniciativas do governo Bolsonaro que tramitaram pelo Senado, é importante destacar que as iniciativas do Executivo nessa casa são baixas: dos 6.953 projetos que tramitaram na câmara alta entre 2019-2022, apenas 345 são de origem do Executivo, sendo que 20 dessas iniciativas são Medidas Provisórias (MPV) do governo anterior (Michel Temer- MDB) e 9 eram Projetos de Lei Ordinária (PL) ou Projeto de Lei Complementar (PLP), também iniciado em governos anteriores. Além disso, é importante destacar que das 1046 matérias aprovadas, apenas 183 foram do Executivo.
Dessa forma, é possível notar a forte atuação na iniciativa e aprovação de matérias dos próprios legisladores, sendo que as propostas dos senadores representam mais de 80% das iniciativas e mais de 50% das aprovações. Porém, esse artigo busca analisar a atuação do Senado sobre as iniciativas do governo Bolsonaro, por isso essa seção foca nas 316 matérias iniciadas por esse governo.
Tabela 1 – A agenda do governo Bolsonaro no Senado: tipos de iniciativa
N | Porcentagem | |
MPV | 284 | 89,87 |
PEC | 2 | 0,63 |
PL | 29 | 9,18 |
PLP | 1 | 0,32 |
TOTAL | 316 | 100,00 |
A tabela 1 mostra qual o tipo de iniciativa utilizada pelo governo Bolsonaro para propor sua agenda. Cabe destacar que, nela estão apenas computadas as iniciativas que chegaram ao Senado, ou seja, PECs, PLs e PLPs que não foram aprovadas na Câmara dos Deputados não entram nesse cômputo. De qualquer forma, é visível a preferência do governo pela utilização de MPVs: quase 90% de suas iniciativas no Senado eram desse tipo, isto é, o governo privilegiou esse recurso frente aos projetos de lei ordinários. Porém, essa ação não é exclusiva do governo Bolsonaro: as Medidas Provisórias são um forte poder de agenda à disposição dos Executivos. O que difere o governo Bolsonaro dos anteriores é a sua taxa de sucesso.
Tabela 2 – Taxa de Sucesso das iniciativas do governo Bolsonaro
Aprovadas | Taxa de Sucesso | |
MPV | 152 | 53,52 |
PEC | 2 | 100,00 |
PL | 21 | 55,26 |
PLP | 0 | 0,00 |
Total | 175 | 53,85 |
Porém, iniciar não é o mesmo que aprovar. A tabela 2 apresenta a taxa de sucesso das iniciativas do governo Bolsonaro por tipo de proposição. É importante destacar que sua taxa de sucesso foi de 53,85%, sendo de 53,52% nas MPVs e 55,26% nas PLs. Como os dois outros tipos de iniciativas foram residuais, suas taxas de sucesso foram extremas: 100% para PECs e zero para PLP. Entretanto, foram apenas duas PECs – a PEC 6/2019 (previdência social) e a PEC 23/2021 (precatórios e novo regime fiscal) – e ambas foram aprovadas. Já para a PLP, foi apenas uma (PLP 149/2019), que foi declarada prejudicada no início de 2020.
Assim, apesar de conseguir aprovar importantes matérias, o governo Bolsonaro enfrentou dificuldades em passar sua agenda pelo Senado, mesmo que nessa legislatura o Senado tenha apresentado uma composição mais à direita do espectro político: se em 2019 os partidos de direita controlavam 43,2% das cadeiras no Senado, em 2021 mais da metade das cadeiras já era ocupada por parlamentares desse campo político (Rubiatti, 2023). Dessa forma, mesmo com a proximidade ideológica do chefe do Executivo com uma maioria no Senado, a relação entre os poderes foi marcada por uma postura conflitiva do Presidente: “adotando uma posição inicialmente conflitiva com o Congresso e os líderes partidários, o governo Bolsonaro amargou derrotas no processo legislativo e mesmo após sua aproximação com o Congresso via ‘Centrão’ esse quadro se manteve” (Rubiatti, 2023, p.67-8).
Como aponta Canelo, Gershon & Barbosa (2021, p. 80), essa aproximação com “centrão” não resultou em uma adesão do Congresso à agenda do Executivo, já que a construção de uma base de apoio sólida “requer mais que apenas a distribuição de cargos na máquina pública, exigindo também habilidosa liderança política tanto no Planalto quanto nas casas legislativas”. Dessa forma, é importante notar que o arranjo institucional brasileiro dá ao Executivo fortes poderes para agir como agente de coordenação, induzindo a cooperação do Legislativo, o que permitiria a aprovação da agenda do Executivo, em negociação com a própria coalizão formada. Ao adotar uma postura de conflito com os líderes partidários, o governo Bolsonaro acaba por enfrentar maiores obstáculos para a aprovação de sua agenda. Em suma,
A construção de uma coalizão baseada na distribuição de influência sobre diferentes áreas de políticas públicas — a partir da distribuição ministerial —, além do uso estratégico dos poderes legislativos do Executivo, potencializam uma ação cooperativa entre os Poderes. Assim, a forma como o presidente monta sua coalizão de governo impacta diretamente na relação entre os Poderes e, no caso do governo Bolsonaro, ela tendeu para uma relação conflituosa, trazendo dificuldades para a aprovação da agenda do governo. (Rubiatti, 2023, p. 68)
Por formarem a maior parte da agenda do Executivo, cabe nos determos nos resultados das Medidas Provisórias (MPV). A tabela 3 aponta os resultados das MPVs do governo Bolsonaro que entraram no sistema do Senado.
Tabela 3 – Medidas provisórias: resultados
N | Porcentagem | |
Aprovadas | 152 | 53,52 |
Perda de eficácia | 106 | 37,32 |
Tramitando ao final da Legislatura | 20 | 7,04 |
Impugnada/Inadmitida | 2 | 0,70 |
Rejeitada | 1 | 0,35 |
Revogadas | 2 | 0,70 |
Sem eficácia | 1 | 0,35 |
Mesmo que pouco mais da metade delas tenha sido aprovada, é importante notar que 37,32% dessas iniciativas perderam a eficácia, ou seja, não foram votadas no Congresso Nacional dentro do prazo estabelecido pela Constituição. Mesmo sendo um forte dispositivo institucional disponível para o Executivo, as MPVs ainda precisam de aprovação pelo Legislativo, e possuem limitações temporais para que essa aprovação ocorra, por esse motivo, elas são usadas de forma estratégica para potencializar a aprovação da agenda do Executivo. Ter mais de um terço das medidas provisórias perdendo a eficácia pode ser visto como um indicativo de pouca articulação do Executivo com o Legislativo, fazendo com que parte dessas propostas não cheguem nem a ser votadas. Além disso, 20 MPVs foram propostas no final do governo Bolsonaro e terminaram a legislatura ainda sem decisão, ficando para o atual Legislativo decidir sobre seu destino.
Ao se tratar das MPVs aprovadas é necessário fazer uma distinção: caso o legislativo faça alguma alteração substantiva na MPV enviada pelo Executivo, ela passa a ser um Projeto de Lei de Conversão (PLV), a outra possibilidade é a aprovação do texto na íntegra. Dessa forma, a existência de PLVs indica que o Legislativo não se furtou a fazer modificações de conteúdo nessas propostas do Executivo, assim, há uma atuação legislativa sobre esses projetos: mais de 60% das MPVs do governo Bolsonaro foram aprovadas como PLVs, ou seja, o Congresso realiza mudanças nessas medidas, adequando o seu conteúdo as expectativas dos membros presentes no Legislativo. Dessa forma, mesmo essa aprovação não se deu de forma a apenas chancelar as preferências do Executivo.
Todavia, é importante notar que essas alterações são feitas pelo Congresso – podendo ser na Comissão Mista, no plenário da Câmara dos Deputados ou mesmo no plenário do Senado. Dessa forma, observar o destino das MPVs/PLVs após a aprovação no Senado nos dá uma imagem das alterações feitas pelos próprios Senadores. Nesse sentido, as propostas que não foram alteradas no Senado e, consequentemente, foram para sanção ou promulgação em sua grande maioria (89,47% das aprovadas). Nela estão incluídas tanto as 50 MPVs aprovadas na íntegra quanto as PLVs, mas essas não foram alteradas no plenário do Senado, mas sim em momentos anteriores (comissão mista ou plenário da Câmara dos Deputados). Dessa forma, apenas 10,53% dessas iniciativas foram alteradas pelo Senado e retornaram para a primeira câmara.
Esse baixo número de MPVs/PLVs modificadas pelo Senado pode estar ligado ao pouco tempo de tramitação que a câmara alta tem para discutir e aprovar um projeto desse tipo: por ser a última etapa da tramitação, muitas vezes os projetos chegam ao Senado com o prazo constitucional já quase no fim, sobrando pouco tempo de tramitação na casa. Dessa forma, alterar a proposta – o que geraria mais uma rodada de discussão na Câmara dos Deputados – pode significar a perda de eficácia da matéria. Assim, o fator tempo impacta na forma como os Senadores podem atuar frente às MPVs.
Ainda sobre as iniciativas do Executivo, cabe observar os resultados das PLs e PLPs do governo Bolsonaro no Senado. Como dito anteriormente, pouco mais da metade das iniciativas do governo foram aprovadas. Apenas uma PLP foi prejudicada, mas o restante das PLs (43,33%) ainda se encontravam tramitando ao final da legislatura. Nesse caso, também é importante notar que 18,75% das PLs do Executivo aprovadas foram modificadas pelo Senado e retornaram para a Câmara dos Deputados.
Tabela 4 – Resultado das PLs e PLPs do governo Bolsonaro no Senado
N | Porcentagem | |
Aprovada | 16 | 53,33 |
Prejudicada | 1 | 3,33 |
Tramitando ao final da legislatura | 13 | 43,33 |
Considerações finais
O sistema bicameral brasileiro é forte, dotando sua segunda câmara de capacidade de iniciativa e revisão. Mesmo que os projetos do executivo iniciem seu trâmite pela câmara baixa, é obrigatória a passagem pelo Senado para que o projeto seja efetivamente transformado em lei. Dessa forma, a relação Executivo-Legislativo, deve considerar a existência de duas casas no Congresso Nacional.
O governo Bolsonaro foi marcado por uma baixa capacidade de articulação com o Legislativo: em um primeiro momento o então Presidente adotou uma postura de conflito importantes atores do Legislativo: os líderes partidários. O presidencialismo multipartidário brasileiro tem na figura dos líderes um ator central para a condução do processo legislativo. Esses atores detêm poderes que permitem coordenar a ação das bancadas e induzir algum grau de disciplina partidária. Além disso, é a partir da negociação entre os líderes partidários e o Executivo que se dá a construção da agenda, sendo a coalizão o elemento central para essa construção. Após sofrer significativas derrotas no Legislativo, Bolsonaro buscou uma aproximação a partir do “centrão”, porém, mesmo essa aproximação não diminuiu as dificuldades para a aprovação de sua agenda. Isso porque a mera distribuição de postos e recursos orçamentários não é o suficiente para a construção e manutenção de uma base de apoio no Legislativo, seria necessário, além de uma liderança que exerça o papel de coordenação, o compartilhamento de poderes de agenda sobre as diferentes áreas de políticas e a negociação com os líderes partidários no Congresso.
Dessa maneira, o governo Bolsonaro pode ser apontado como um dos que enfrentou maiores dificuldades para aprovar sua agenda no Senado, mesmo com uma maioria de parlamentares ideologicamente próximos ao presidente. Essa dificuldade fica clara quando olhamos o próprio trâmite da agenda do governo no Senado: mesmo aprovando pouco mais da metade de suas iniciativas (patamar bem inferior aos presidentes anteriores), muitas das iniciativas foram alteradas substancialmente pelo Senado ou Congresso. Dessa forma, mesmo que a câmara alta não tenha se portado como uma casa de obstrução, é nítida a ação buscando a alteração das propostas, buscando aproximar os resultados das preferências presentes no Legislativo.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, P. M. O bicameralismo no Brasil: argumentos sobre a importância do Senado na análise do processo decisório federal. In: Revista Política & Sociedade, v.11, n.21, 2012.
CANELO, J.; GERSHON, D. & BARBOSA, L. M. Conflito Partidário no Senado Federal. In: SANTOS, F. Congresso remoto: a experiência legislativa brasileira em tempos de pandemia. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2021.
RUBIATTI, B C. Sistema de resolução de conflitos e o papel do Senado como câmara revisora no Bicameralismo Brasileiro, Revista Brasileira de Ciência Política, n.23, 2017
RUBIATTI, B. C. O novo governo Lula e os desafios para a construção de apoio no Senado. In.: INÁCIO, Magna, Presidente, gabinete e burocracias: o que a nova administração Lula precisa saber, São Paulo: Hucitec, 2023.
[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) e da Faculdade de Ciências Sociais (FACS) da Universidade Federal do Pará – Brasil (UFPA). Coordenador do Grupo de Pesquisa “Instituições Políticas: Processo Legislativo e Controle (IPPLC). Membro da equipe do projeto de pesquisa “Políticas Públicas e Processo Decisório” (PROCAD-AMAZÔNIA).
Fonte Imagética: Plenário do Senado durante sessão não deliberativa. À mesa: senador Kaká Andrade (PDT-SE); Em discurso, à tribuna, senador Pedro Simon (PMDB-RS). Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado. Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Senado_Federal_do_Brasil_Plen%C3%A1rio_do_Senado_(15193462724).jpg>. Acesso em 06 out 2023.