Resenha de tese de Doutorado em Ciência Política defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) em 2015.
Bruno Boti Bernardi
Tradicionalmente, na América Latina, membros do Estado e atores paraestatais envolvidos com o aparato de repressão foram capazes de evadir-se de qualquer tipo de responsabilização criminal a respeito de graves violações de direitos humanos. Desde o final da década de 1980, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) transformou-se numa importante ferramenta usada por diversos grupos latino-americanos para combater essa impunidade, na expectativa de punir os responsáveis, esclarecer os crimes, reparar as vítimas e impedir novas atrocidades.
Diante desse cenário, a tese teve como referência casos avaliados pelo SIDH no tocante à justiça de transição, ou seja, a necessidade de fazer justiça que sociedades em transição para a democracia ou que saem de conflitos enfrentam ao lidar com graves abusos cometidos pelo Estado no passado. Nesse sentido, o objetivo do trabalho foi o de explicar os mecanismos de difusão e, sobretudo, impacto das normas internacionais de direitos humanos em quatro países da América Latina – Brasil, Colômbia, México e Peru –, a fim de estabelecer quais fatores domésticos dos contextos políticos nacionais tornam os países mais ou menos permeáveis a essa normatividade, revelando as condições que predispõem mais certos países do que outros a cumprir essas normas.
Assim, a tese buscou definir quais atores desempenharam o papel de empreendedores das normas do SIDH, de que maneira e por quais razões eles decidiram instrumentalizar essa normatividade, e como as suas estratégias e as dinâmicas políticas desatadas por suas ações foram responsáveis pelo impacto do SIDH nesses quatro países. Em oposição à maioria dos estudos que privilegiam a ação do Executivo e das elites político-institucionais para explicar seja a realização de julgamentos no período pós-transicional, seja o impacto de normas e pressões internacionais de direitos humanos, a hipótese testada salienta a importância de juízes e organizações não governamentais (ONGs) domésticas para explicar a influência do SIDH no tema da justiça de transição, enfatizando assim o papel de grupos da sociedade civil e as respostas da cúpula do Judiciário local. Dessa maneira, o autor argumenta que o SIDH adquirirá aderência doméstica se e quando esses dois conjuntos de atores forem capazes de entendê-lo e instrumentalizá-lo como um mecanismo efetivo para o seu “empoderamento”. Desse modo, o impacto depende, por um lado, da organização prévia de grupos locais de direitos humanos, da sua capacidade de articulação transnacional e, em especial, da existência de ONGs profissionalizadas que definam as ações de mobilização legal das normas do SIDH como uma prioridade. Além disso, a influência também depende, por outro lado, de um grau de abertura da cúpula do Judiciário local – ou de pelo menos um grupo de seus magistrados – a essa normatividade internacional, cuja utilização deve ser percebida como uma oportunidade para fortalecer sua posição institucional e incrementar seus recursos e argumentos jurídico-legais.
No caso específico do Brasil, a tese analisa como e por que a normatividade do SIDH sobre o tema da justiça de transição tem encontrado obstáculos para o seu impacto em questões de direitos humanos, sobretudo no que tange ao caso Gomes Lund (guerrilha do Araguaia), por meio do qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil em 2010, determinando que a Lei de Anistia era desprovida de validade ao preservar a impunidade das graves violações da ditadura militar. Contrapondo o caso brasileiro com os dos outros três países estudados, a tese destaca por que juízes e ONGs do Brasil não têm sido canais para o impacto do SIDH.
Assim, argumenta-se que a ausência de ONGs litigantes e com capacidade de atuação transnacional interessadas na agenda de justiça de transição compromete seriamente as perspectivas de impacto do SIDH no Brasil. Além disso, a continuidade institucional do Supremo Tribunal Federal durante a transição democrática, bem como sua composição e cultura jurídica herdadas da ditadura, contribuíram decisivamente para preservar o desconhecimento do direito internacional dos direitos humanos dentro do tribunal e reforçar, no processo de revisão judicial, a prática do “positivismo à la carte” (Ventura, 2011), que extrapola a análise do texto escrito da lei e adota, convenientemente, outras matrizes exegéticas, como o “método histórico” utilizado durante o exame da Lei de Anistia pelo tribunal, mesmo quando isso implica a manutenção do legado da legislação autoritária, da qual o STF erigiu-se como grande defensor junto das Forças Armadas. Consequentemente, uma vez que ONGs e juízes não têm entendido o SIDH como um mecanismo efetivo para o seu “empoderamento”, a questão do impacto do SIDH fica seriamente comprometida. Em outras palavras, sem ONGs e magistrados desempenhando o papel de empreendedores de normas do SIDH, não causam estranheza as dificuldades de aderência das decisões internacionais no Brasil, o que fortalece a impunidade, a política de silêncio, a manutenção das lógicas e estruturas do aparato repressivo e as muitas outras assombrosas linhas de continuidade de um passado que não passou.
A tese se encontra disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-12012016-122034/pt-br.php.