Juscelino Eudâmidas Bezerra1
8 de novembro de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Leia os textos anteriores aqui.
Introdução
No mês de novembro de 2024, durante a cúpula do G20 na cidade do Rio de Janeiro, o Brasil irá lançar oficialmente a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza (AGFP). Os documentos que fundamentam a Aliança e estruturam seu modelo de governança foram aprovados na reunião de julho do G20. A iniciativa é uma das três prioridades do governo brasileiro no período de sua presidência do G20, junto da reforma de instituições de governança global e questões ligadas ao desenvolvimento sustentável, em especial, o debate sobre a transição energética.
O governo Lula adotou a estratégia de escolha das prioridades em consonância com o que o Brasil possui de expertise técnica nos temas envolvendo a questão do enfrentamento das desigualdades, da fome e do modelo energético. Evidente que, junto da dimensão técnica está a dimensão política e, portanto, do reforço do poder de liderança do presidente Lula no âmbito das relações internacionais.
Do ponto de vista social é preocupante o fato de que, novamente, o tema da fome esteja no centro da agenda global em pleno século 21, dado que evidencia a persistência do crescimento da pobreza, bem como do número de pessoas no mundo que enfrentam condições de insegurança alimentar severa.
No presente texto pretendo abordar de forma bastante sintética três pontos de discussão para a reflexão sobre a importância da AGFP, o protagonismo do Brasil e os limites deste tipo de ação. O primeiro diz respeito ao papel de destaque do Brasil no enfrentamento da fome e do risco que representou a direita radical no poder com o desmantelamento das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. O segundo ponto trata de uma breve análise do que se sabe até o momento sobre a proposta da AGFP e, por fim, uma apreciação sobre o viés de enfrentamento do tema que já pode ser observado a partir do modelo de funcionamento proposto pela Aliança.
O que o Brasil tem para ensinar ao mundo?
O destaque do Brasil no debate sobre a fome com certeza passa pela atuação magistral do médico e geógrafo Josué de Castro ao escancarar o problema da fome no mundo a partir de análises documentais, históricas, científicas e de vivência da realidade enquanto brasileiro oriundo de uma cidade, Recife, onde a fome fazia parte do cotidiano de milhares de habitantes. Ao demonstrar que o problema da fome tinha raízes na questão social e política, Josué de Castro denunciava em sua grande obra “Geografia da Fome”, escrita em 1946 [2022], a letargia do Estado no enfrentamento da questão. Mesmo no contexto da repressão da Ditadura Militar, que resultou no exílio de Josué de Castro, a sociedade civil deu provas de vigor com os protestos do movimento contra a carestia liderado por mulheres na década de 1970.
No período da redemocratização, com a Constituição cidadã de 1988, o tema da segurança alimentar foi lentamente incorporado na agenda política culminando na criação em 1993 do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA). Lamentavelmente o Consea teve vida breve, sendo extinto no ano de 1995 no primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso (SILVA, 2014). Na sociedade civil, o grande destaque foi o papel da organização não governamental Ação da Cidadania, criada em 1993 pelo sociólogo Betinho, uma figura também emblemática no combate à fome no Brasil.
Apesar da retomada do período democrático e do surgimento de iniciativas de estruturação de políticas públicas, a década de 1990 foi considerada uma década perdida sem a existência de um programa com uma ação direta de combate à fome, com medidas pontuais, fragmentadas e restritas à escala local (GRAZIANO DA SILVA, 2014). Foi somente em 2001, com a finalização de um projeto intitulado “Fome Zero” escrito pelo Instituto Cidadania com a participação de ONGs, movimentos sociais, organizações populares e institutos de pesquisas, que pela primeira vez se produziu um documento amplo, robusto, amparado em pesquisas com propostas exequíveis para a criação de uma política de segurança alimentar e nutricional no Brasil.
O projeto foi incorporado ao programa de governo do presidente Lula, tornando-se inclusive uma das principais propostas da campanha eleitoral vencedora em 2002. No primeiro ano do mandato, o Governo de fato passou a implementar o programa Fome Zero tendo o Prof. José Graziano da Silva como o responsável.
Aranha (2010, p. 88) mostra que, desde o início do Governo Lula, foram criadas três instâncias diretamente ligadas à Presidência da República, dedicadas a implementação de uma Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, a saber: i) o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (Mesa); ii) a reimplantação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea); e iii) uma Assessoria Especial da Presidência da República de Mobilização para o Fome Zero.
O grande mérito da Política de Segurança Alimentar e Nutricional foi a proposição de políticas intersetoriais que articulavam políticas estruturais voltadas para mitigar as causas mais profundas, tais como as políticas agrícolas e agrárias, políticas de abastecimento, políticas de comercialização e distribuição dos alimentos, políticas de geração de emprego e renda, políticas de educação e saúde; políticas específicas e emergenciais, a exemplo das políticas de transferência de renda para famílias em situação de pobreza, políticas de distribuição de alimentos, políticas de segurança e qualidade dos alimentos; e políticas locais nos estados e municípios por meio da construção de restaurantes populares, bancos de alimentos, fomento à criação de feiras populares, entre outras ações (ARANHA, 2010).
Da complexa rede de interconexões entre políticas públicas, talvez as que mais se destacaram pelo impacto efetivo, que possibilitou ao Brasil sair do mapa da fome da ONU em 2014, foram o sucesso da política de transferência de renda representada pelo Bolsa Família. No âmbito produtivo e de acesso ao mercado, o destaque ficou por conta do aumento do crédito disponível para o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Com ação indireta, mas totalmente vinculada à geração de renda no campo e a garantia da segurança de alimentar de crianças e jovens, tivemos o aprimoramento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com a determinação, por força de lei, que 30% dos alimentos adquiridos para merenda escolar com recursos públicos fossem obtidos da agricultura familiar. Todas as políticas mencionadas possuem grande capilaridade territorial e conseguem chegar às populações que mais necessitam. Ao considerar o gigantismo do país, pode-se entender as razões do Brasil ser um modelo para o mundo ao implementar um amplo conjunto de políticas com grande complexidade operacional.
A crise política vivenciada no Brasil, que resultou no impeachment da Presidente Dilma Rousseff, em 2016, e dois anos depois na eleição de Jair Bolsonaro, agravada pela ocorrência da pandemia de COVID-19, resultou em um quadro de degeneração das políticas públicas voltadas para a segurança alimentar e nutricional (MALUF, ZIMMERMANN e JOMALINIS, 2021). Eventos marcantes desse período foram o encerramento do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do Consea e a desfiguração do PAA. O país voltou oficialmente para o mapa da fome da ONU em 2019, com aumento expressivo dos índices de pobreza, extrema pobreza e da incidência da insegurança alimentar severa. Em 2022, o número de pessoas que passavam fome no país era de 33,1 milhões, de acordo com dados da Rede PENSSAN.
O Brasil já mostrou ter capacidade técnica, política e de articulação da sociedade civil para promover um ambiente propício ao enfrentamento da questão da fome. Isso sem falar da grande contribuição dos movimentos sociais, a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), na defesa da soberania alimentar, da produção de alimentos agroecológicos e do fortalecimento de redes alternativas de comercialização que também influenciaram a proposição de políticas públicas em nível local e nacional. No entanto, mesmo com toda essa fortaleza, fica claro que a mudança no arranjo político das forças do Estado tem grande potencial de desestruturação, unindo forças poderosas, especialmente do empresariado do agronegócio e seu luxuoso apoio da bancada ruralista, com a finalidade de fazer retroceder as conquistas (BEZERRA,2012)
É diante desse contexto que o Presidente Lula retorna em 2023, no seu terceiro mandato, a colocar como pauta central a questão da fome, utilizando-se da projeção da presidência do Brasil no grupo do G20. Na próxima seção irei explorar algumas informações sobre a proposta da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza.
Aliança Global contra a Fome e a Probreza
A AGFP é uma proposta do governo brasileiro para viabilizar os esforços para a erradicação da fome e da pobreza no mundo, numa tentativa de reorientar as ações dos governos e demais instituições para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Notadamente os objetivos 1, 2 e 10 que tratam respectivamente da erradicação da pobreza, da fome zero e agricultura sustentável, e da redução das desigualdades.
De acordo com o documento fundacional, a proposta da AGFP está ancorada em três pilares: pilar de compromissos nacionais, pilar de conhecimento e o pilar financeiro. No pilar nacional, os países e instituições que aderirem comprometem-se a realizar esforços para a implementação, ampliação e melhoria de programas, políticas públicas e instrumentos de aplicação na escala nacional, portanto adaptados às condições e realidades de cada país. No pilar financeiro haverá um comprometimento para buscar fontes de financiamento (multilateral, bilateral, recursos domésticos) para implementar as políticas, programas e instrumentos mapeados e sistematizados no pilar de compromissos nacionais. Pretende-se diversificar essas fontes, inclusive lançando mão de mecanismos financeiros inovadores tais como os fundos climáticos e a taxação de bilionários. Por fim, no pilar ligado ao conhecimento, o intuito é fortalecer a assistência técnica, desenvolver capacidades, criar sinergias, compartilhar experiências e aprendizados entre os membros da AGFP.
Sobre esse último aspecto, tem sido muito destacado no documento fundacional a criação de uma cesta comum de políticas públicas que servirá como um menu de instrumentos de políticas que podem ser utilizadas pelos países membros com as respectivas adaptações necessárias. Inicialmente, será incluído na cesta um conjunto de instrumentos com experiências já exitosas, apresentando soluções baseadas em evidências com a expectativa de incluir outras experiências tão logo a aliança cresça e incorpore novos membros.
É importante lembrar que todos os compromissos que estão inseridos no documento de adesão pelos membros da AGFP são de caráter voluntário. Logo, não são medidas que terão força de lei, que comporão tratados ou qualquer outra relação de obrigatoriedade. Outro ponto importante é que a AGFP está aberta para adesão não somente de governos, mas também de organizações internacionais, instituições de conhecimento, bancos de desenvolvimento, fundos e instituições filantrópicas. Até o momento, a lista mais atualizada de governos e instituições que comunicaram adesão à AGFP inclui Brasil, Alemanha, Bangladesh e Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF).
Viés da Aliança: críticas possíveis e limites da ação
É fundamental louvar qualquer iniciativa que tenha como objetivo enfrentar minimamente o problema da fome e da pobreza, mobilizar governos, sociedade civil e parte do empresariado para tal fim, principalmente em eventos dessa magnitude que reúnem representantes de grandes potências mundiais no velho e bom tête-à-tête. No entanto, até o momento, a partir do que temos de informação sobre a AGFP, a iniciativa ainda está muito longe de tocar em pontos mais estruturais que estão na raiz do problema da fome.
Num cenário hipotético, de pleno funcionamento da Aliança, teríamos com a estrutura dos pilares, governos e instituições devotados na criação de políticas, programas e instrumentos. Essas propostas seriam aplicadas pelos governos com apoio de outras instituições de acordo com suas realidades. Haveria cooperação, troca de saberes, garantia de apoio técnico e, sobretudo, recursos suficientes para viabilizar todas as ações.
Os exemplos mais frequentemente citados como modelos que compõem a cesta inicial de políticas públicas geralmente relacionam-se com aspectos da produção de alimentos entre pequenos produtores, distribuição de renda para a população mais vulnerável e ações mais diretas para o suporte emergencial daquelas populações que já se encontram em situação de insegurança alimentar severa. Mais raro é encontrar políticas, projetos e instrumentos que atuem mais diretamente nos entraves que obstaculizam a produção, comercialização, distribuição e consumo dos alimentos.
Outro patamar de complexidade seria enfrentar os agentes que todos nós (camponeses desterreados, movimentos sociais, as famílias que só podem comprar ultraprocessados, acadêmicos, especialistas em políticas públicas, políticos, etc.) sabemos que têm relação direta com a fome, quais sejam: a tétrade formada pelos grandes conglomerados empresariais do agronegócio, dos agroquímicos, da indústria alimentícia e da grande distribuição no varejo.
Para não concluir
No meu modo de entender, a Aliança poderia concentrar-se em cada nó da rede agroalimentar buscando ações mais concretas e corajosas para lidar com os problemas geradores da fome e da pobreza. As recomendações que sistematizo a seguir são indicações fartamente encontradas nas análises políticas e acadêmicas sobre a temática e que carecem de maior atenção.
No âmbito produtivo, por exemplo, enfrentar o problema da reforma agrária e a permanência do campesinato na terra, a soberania alimentar dos povos tradicionais, apoio técnico e extensão rural para a agricultura familiar e camponesa, regulações mais rígidas quanto à expansão territorial da produção de commodities, restrições de mercado e de crédito (público e privado) para produtos e empresas que ferem as leis ambientais e trabalhistas, promoção de práticas agroecológicas, penalização do uso desenfreado de agrotóxicos e o estabelecimento de acordos/compromissos por parte dos países do norte global que continuam impondo o colonialismo químico (BOMBARDI, 2023).
No tocante à distribuição e comercialização, envidar ações que combatam a formação de oligopólios e o controle da comercialização de alimentos representados por grandes redes de varejo, investir na ampliação de equipamentos públicos de abastecimento, bem como fomentar os canais curtos de comercialização de modo a diminuir a dependência do mercado privado.
Do ponto de vista do consumo, regular as grandes indústrias alimentícias (inclusive utilizando-se da taxação) de modo a eliminar a tendência global de aumento da oferta de produtos ultraprocessados (MONTEIRO et al., 2011). Por fim, realizar ações educativas que difundam boas práticas de alimentação na população desde a infância e que garantam uma alimentação saudável para todos, e não restrita apenas a quem pode pagar, recuperando assim o princípio do direito humano à alimentação adequada inscrito no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
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Referências bibliográficas
ARANHA, Adriana Veiga. Fome zero: um projeto transformado em estratégia de governo. In: Graziano da Silva, J; Del Grossi, M.E.; França, C.G.de. (Org.). Fome Zero: a experiência brasileira. 1ed.Brasília: NEAD, 2010, v. 1, p.87-111.
BEZERRA, J. E. Agronegócio e ideologia: contribuições teóricas. REVISTA NERA, (14), 2012,p. 112–124. https://doi.org/10.47946/rnera.v0i14.1384
BOMBARDI, Larissa Mies. Agrotóxicos e colonialismo químico. São Paulo: Editora Elefante, 2023.
CASTRO, Josué de. Geografia da fome. São Paulo: Todavia, 2022.
GRAZIANO DA SILVA, J.; BELIK, W. ; TAKAGI, M. Para os Críticos do Fome Zero. In: Graziano da Silva, J; Del Grossi, M.E.; França, C.G.de. (Org.). Fome Zero: a experiência brasileira. 1. ed. Brasília: NEAD, 2010, v. 1, p. 39-54.
MALUF, Renato S.; ZIMMERMANN, S. A.; JOMALINIS, E. Emergência e evolução da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil (2003-2015). Estudos Sociedade e Agricultura, v. 29, p. 517-544, 2021.
MONTEIRO, C. A.; LEVY, Renata Bertazzi; CLARO, Rafael Moreira; DE CASTRO, Inês Rugani Ribeiro; CANNON, Geoffrey. Increasing consumption of ultra-processed foods and likely impact on human health: evidence from Brazil. Public Health Nutrition (Wallingford), v. 14, p. 5-13, 2011.
- Professor Doutor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: jebgeo@unb.br. Coordenador do Laboratório GeoRedes e Líder do Grupo de Pesquisa CNPq GovernAGRO ↩︎
Referência imagética: Secretaria de Comunicação Social/SECOM. Galpão da Cidadania: local do pré-lançamento da Aliança Global contra a Fome é repleto de simbolismos. 27 jul. 2024. Fotografia de Felipe Neiva/SERES.