Gabriel Delphino[1]
A popularização do uso das redes sociais tem sinalizado novas formas de indivíduos e grupos se relacionarem entre si, fornecendo aos pesquisadores caminhos possíveis de investigação dessas realidades digitais. Um desses exemplos, e que foi abordado neste recente artigo, de minha autoria, é a utilização dessas redes por movimentos sociais e ativistas políticos.
Dessa forma, foi interessante observar na pesquisa o comportamento do debate e a construção de narrativa sobre a Chacina do Jacarezinho. Tendo em mente que a identificação dessas operações como chacinas passa por um processo de luta discursiva na esfera pública (VEDOVELLO; RODRIGUES, 2020), a abordagem possibilitou perceber a maneira pela qual ativistas locais e movimentos sociais se articularam nessa elaboração, em contraposição à perspectiva pró-operação.
Antes de prosseguir para o que mais interessa, é importante mencionar alguns elementos históricos do fato abordado, como detalhes da operação e o seu contexto. Ocorrida na manhã do dia 06 de maio de 2021, na favela do Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro, a chacina foi resultado de uma ação da Polícia Civil na comunidade e que marca a operação policial mais letal da história da cidade.
Ao todo foram 29 pessoas mortas e pelo menos dois baleados dentro de um vagão de metrô em uma estação próxima ao local, tendo esses conseguido sobreviver. Em defesa da operação, a posição assumida pela Polícia Civil foi a de que não ocorreram irregularidades, sendo a grande maioria das mortes resultado de legítima defesa dos policiais em confronto. Como veremos adiante, a reação a essa postura será significativa por parte dos ativistas locais e dos movimentos sociais envolvidos no processo.
A importância de investigações como a realizada no artigo é a possibilidade de captar, a partir das redes sociais, a disputa em torno da narrativa sobre o fato. Considerando as redes sociais como um “palco” de atuação social e política de movimentos (VASCONCELLOS FILHO; COUTINHO, 2016), observar essa construção de sentidos nos ajuda a entender não apenas os usos da rede, mas como o ativismo social se dá nos dias de hoje.
Com isso, a pesquisa também parte da ideia de que no Brasil, assim como nos EUA – e outros países –, há um uma construção de identidade compartilhada na rede social que poderia ser identificada como “Black Twitter” (BROCK JR., 2020). Essa concepção é fundamental, pois a partir dela que foi possível mapear e compreender o comportamento dos atores a partir do caso analisado.
Levando em consideração o caráter racial da violação brutal de direitos humanos ocorrida na chacina, a expectativa de que a mobilização na rede seria organizada pelo “Black Twitter” se concretizou. De maneira que, mesmo ainda sendo pouco estudada no Brasil, essa categoria consegue ser percebida em ocorrências como denúncias de racismo e violações de direitos (JACQUES, 2020).
Dessa forma, ao passo que pode-se identificar na primavera árabe um marco no uso da internet e das redes sociais em prol do ativismo político (CASTELLS, 2013), quando se trata de um ativismo negro, o Black Lives Matter e outros casos de racismo são os mais frequentes mobilizadores desses grupos nas redes (HARLOW; BENBROOK, 2019).
Assim, o que pôde ser observado do processo? De início já podemos identificar três grandes momentos nos resultados analisados: um primeiro que sinaliza a notícia e a chegada do fato à rede; um segundo em que, ainda com um caráter crítico de denúncia, se constrói uma narrativa em oposição à oficial; e um terceiro momento em que é possível identificar a construção discursiva pró-operação e a sua mobilização em oposição à narrativa dominante até então no Twitter.
A primeira etapa dessa mobilização se dá em torno da denúncia de atores envolvidos mais diretamente com a operação, que perdurou no período da manhã até o início da tarde. Mais especificamente, são ativistas sociais da favela do Jacarezinho e moradores que, ao perceberem o ocorrido, buscam registrar e reportar na rede o máximo de informações possível.
Como mencionado anteriormente no texto, a argumentação oficial em torno da operação buscava justificá-la, de maneira que os grandes veículos tradicionais de imprensa não adotavam uma narrativa crítica o suficiente dos fatos. Dessa forma, dada a gravidade do ocorrido, essas ações iniciais dos ativistas são atravessadas por um caráter profundamente crítico sobre a atuação da polícia na favela.
São postados relatos, fotos e vídeos sobre a perspectiva das pessoas diretamente afetadas com a chacina, providenciando em primeira mão as informações de grupos que podem concorrer com as narrativas oficiais sobre o fato. As discussões nesse momento giram em torno de três perfis principais: o Favela Caiu na Rede – RJ, perfil que divulga informações sobre as favelas do Rio de Janeiro, o Dieguinho, ativista preto, antirracista e comunitário nascido no Jacarezinho e Joel Luiz, advogado, ativista dos Direitos Humanos e morador do Jacarezinho.
Já nessa primeira fase é possível identificar pontos importantes para a compreensão das ações sociais na rede. Ao tomar a notícia como prioridade, esses ativistas conseguiram construir uma rede de denúncia sobre o caso que concorria com a narrativa oficial. Com isso grandes portais de notícias – como o G1 –, que vinham noticiando a partir da versão da polícia, passaram a incluir nas matérias os conteúdos tuitado por esses perfis.
Ao longo do dia, o passar das horas foi alterando o perfil da mobilização em torno da chacina na rede. Dessa forma, o segundo momento surge e se consolida ao final da tarde, no qual a operação já não era tanto uma novidade e a discussão sobre sua legitimidade passava a ser o principal foco dos tweets relacionados.
É nesse ponto que, a partir dos discursos que mobilizam os perfis na rede, se unificou a maneira pela qual a operação deveria ser tratada no debate público e suas propostas de medidas jurídicas. Aqui o perfil mais plural encontrado na primeira etapa abre espaço para um caráter mais centralizado das discussões, passando por certos atores específicos que vão organizar a narrativa crítica do caso.
Aqui que o Black Twitter aparece mais nitidamente e que a hashtag #ChacinadoJacarezinho é criada, mobilizada e difundida, servindo como construção da linguagem crítica à operação. A centralidade do advogado Joel Luiz se consolida nessa nova fase, mas agora acompanhado de perfis como o Voz da Comunidade, Instituto Marielle Franco, o então candidato a vereador Jota Marques e o youtuber Chavoso da USP.
Como mencionado e observado, aqui situa-se o momento no qual há uma mobilização coletiva, pautada na crítica às violações de Direitos Humanos e em uma identidade negra que é parte do processo. É nesse ponto também que é possível identificar como a ação se dá em casos como o observado, desde a utilização da rede para a denúncia até a compreensão do espaço como possível local de mobilização social.
Esse debate vai durar até o período da noite, sendo ao longo da madrugada o momento inicial de elaboração de discursos contrários à crítica abordada até então. Como pode ser visto na terceira imagem, enquanto o dia da chacina é marcado pela denúncia e pela crítica, o dia seguinte revela um debate entre perspectivas pró e contra a operação.
Nesse novo momento é possível identificar que o debate, mesmo aparentando equilíbrio, ainda apresenta uma predominância para o olhar crítico sobre o caso. Os discursos contrários, mobilizados por perfis como o Deputado Federal Carlos Jordy (PSL-RJ) e Isaque Pinto, usuário da rede, vão se pautar na versão oficial da Polícia Civil para justificar a legitimidade das mortes, considerando-as como necessárias para o cumprimento da operação.
É interessante observar também que no dia seguinte o discurso crítico já não é mais organizado por ativistas do Black Twitter, esses operando na margem do debate. A predominância de perfis mais jornalísticos como Reinaldo Azevedo, Mídia Ninja e Mônica Bergamo mostra como as interações da discussão passaram a ser pautadas por um outro perfil de usuário, em que o protagonismo do Black Twitter passa ao segundo plano.
Dessa forma, os achados do artigo possibilitam uma contribuição aos estudos que se dedicam a pesquisar a ação social na internet. Sobretudo a partir da especificidade do caso analisado, também é fundamental a observação de como se elaboram as ideias de chacina e de vítima no Twitter, revertendo a lógica da narrativa oficial. Essa construção de redes se apresenta, também, como um estabelecimento de solidariedade entre as vítimas e aqueles que sentem empatia pelos que sofreram diretamente com o caso.
Por fim, destaco que mesmo a análise associando o uso da rede com práticas históricas de luta social e política, este ainda representa um vasto campo para pesquisadores e pesquisadoras. Mesmo com seu surgimento recente e seu constante dinamismo, o número massivo de usuários criando sociabilidades nessas redes torna esse tipo de investigação fundamental para compreendermos melhor as sociedades contemporâneas.
REFERÊNCIAS
BROCK JR., A. Distributed Blackness: African American Cybercultures. New York: NYU Press, 2020.
CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
HARLOW, S., BENBROOK, A. How #Blacklivesmatter: exploring the role of hip-hop celebrities in constructing racial identity on Black Twitter. Information, Communication & Society, v.22, n. 3, p. 352-368, 2018.
JACQUES, J. P. Pessoas negras seguindo pessoas negras: identidade on-line a partir de uma análise etnográfica no black twitter brasileiro. Santa Cruz do Sul. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Comunicação Social). Universidade de Santa Cruz do Sul, 2020.
VASCONCELOS FILHO, J. M., COUTINHO, S. O ativismo digital brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2016.
VEDOVELLO, C. L., RODRIGUES, A. M. As chacinas em São Paulo: da historicidade à Chacina da Torcida Pavilhão 9. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 7, n. 2, jun, p. 161-179, 2020.
[1] Mestre pelo PPGCP-UFF e doutorando em Ciência Política pelo IESP-UERJ. E-mail: gabrieldelphino20@gmail.com
Fonte Imagética: Parentes das vítimas da chacina no Jacarezinho (RJ), durante protesto contra violência policial (Créditos: Fabiana Batista/UOL). Disponível em <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/05/11/eles-entraram-la-para-matar-diz-familiar-de-vitima-do-jacarezinho.htm>. Acesso em 19 set 2022.