Ronaldo Tadeu de Souza[1]
Andréia Fressatti Cardoso[2]
Sérgio Mendonça Benedito[3]
Com a proximidade da realização do V Encontro de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro, a equipe editorial do Boletim Lua Nova entrevistou San Romanelli Assumpção (IESP-UERJ) e Paulo Henrique Cassimiro (UERJ), membros da organização do Encontro. Nesta primeira parte da entrevista concedida, conversamos sobre a origem do encontro anual e a sua importância para as áreas de teoria e pensamento político, mas também para a ciência política como um todo.
Qual a origem do Encontro de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro? Qual foi a motivação das pessoas organizadoras e os desafios encontrados?
Paulo Henrique Cassimiro (PHC): A gente começou em 2018, mas as conversas mesmo foram em 2017, na Anpocs.
San Romanelli Assumpção (SRA): Existia uma certa insatisfação entre pesquisadores júniores com a falta de espaço, essa era uma percepção mais de júnior do que de sênior. Como é de conhecimento geral, a Anpocs tem um GT [Grupo de Trabalho] de teoria e pensamento político brasileiro. Um GT tem três sessões com quatro exposições e um debatedor, então, são doze lugares. E havia um acordo tácito de que o GT deveria dividir as cadeiras de apresentações de teoria política e pensamento político brasileiro de forma paritária, ou seja, seis apresentações para cada campo, com pessoas do Brasil inteiro procurando lugar no GT. Precisávamos de mais espaço. Diante disso, algumas pessoas juniores, Paulo e eu dentre elas, pensaram na separação em dois GTs como forma de ampliar o espaço, isso já havia acontecido na ABCP. Só que isso traz um problema de justificativa teórica da separação: a teoria política é plural, é feita a partir de diversas abordagens metateóricas, epistemológicas e metodológicas, essa pluralidade se verifica em qualquer handbook de teoria política publicado por editoras universitárias de renome, se verifica em panoramas da teoria política brasileira publicados pela Anpocs e pela ABCP e se verifica num dossiê recente sobre teoria política publicado pela Lua Nova, organizado por Raquel Kritsch e Raissa Ventura. Dentro dessa multiplicidade, teoria política e pensamento político são parte de um mesmo empreendimento intelectual em um campo plural. E pensamento político brasileiro é teoria política. Qual a justificação intelectual para uma separação? Afirmar “a gente precisa de mais do que quinze cadeiras” não é uma justificativa intelectual, é uma justificativa de reivindicação política por espaço. Há uma boa justificativa intelectual para ficarmos juntos, justificativa esta que é também política, porque carrega uma dimensão simbólica importante: as afirmações de que (1) teoria e pensamento político são um mesmo campo e que (2) pensamento político brasileiro e teoria política são um mesmo campo são fundamentais para afirmarmos o campo em termos brasileiros não colonizados por classificações vindas de etiquetamentos baseados em distinções que subalternizam a teoria e pensamento políticos feitos no Brasil. Então, dentro da pluralidade própria do campo, em termos intelectual e simbolicamente corretos, a teoria política feita por um brasileiro é pensamento político e é brasileira. A ideia de separação do GT na Anpocs recebeu muita oposição e isso se justifica porque é questionável a separação de algo que o GT tradicionalmente construiu como paritário e comum. Essa falta de espaço a gente não tinha como resolver dentro da Anpocs. Junto com isso, havia uma outra questão política que foi muito discutida pelas pessoas seniores e juniores envolvidas nesse debate sobre como ampliar o espaço de teoria e pensamento político na Anpocs: qual o espaço da teoria política nos programas de ciência política, sociologia e antropologia que existem na Anpocs? Existia uma percepção de que nós não éramos tantos assim, mas João Feres Júnior e Luiz Augusto Campos fizeram um levantamento que mostrou que teoria e pensamento políticos têm uma proporção alta nos departamentos de ciência política, mais alta do que alguns grupos, de algumas áreas de ciência política que têm mais de um GT. Essa descoberta sobre os fatos foi importante para pensarmos menos impressionistamente. Junto com tudo isso, existia uma ideia antiga, aventada por professores como Cícero Araújo e o falecido Gildo Marçal Brandão dentro do próprio GT de teoria e pensamento da Anpocs de que era preciso fazer um encontro intermediário ao GT, com espaço maior, para nos reunirmos apresentando longamente trabalhos por vários dias. Nesse caldo de ideias e argumentos que vinham de muita gente de várias instituições, um conjunto amplo de professores júniores e pós-docs abraçou essa ideia de encontro intermediário, com o apoio generoso de muitos seniores. E é importante lembrar sempre que havia muita gente envolvida nesses debates informais e destacar o papel do apoio forte do IESP, nas pessoas de Christian Lynch e João Feres, e dos então coordenadores do GT na Anpocs, a Vera Cepeda (UFSCar) e o Pedro Villas Boas (IESP-UERJ), bem como destacar a participação ativa de um grupo de professores da Unifesp que foi muito presente desde o início: Ingrid Cyfer, Gabriela Nunes Ferreira, Maria Fernanda Lombardi, Júlio Barroso, Raphael Neves. E Paulo e eu no meio disso tudo, todos juntos, e com apoio que vai muito para além dessas pessoas que acabei de citar.
Vocês destacam a questão de espaço na Anpocs, mas e os outros eventos que incluem a ciência política?
SRA: A ABCP não tem um problema de espaço. A AT [Área Temática] é grande e são duas ATs, uma de teoria política, uma de pensamento político brasileiro. O problema de espaço está no GT da Anpocs, não nas ATs da ABCP. Ainda que haja na Anpocs um outro GT com muita frequência de trabalhos de teoria política, junto com trabalhos empíricos, que é o GT ligado ao pessoal do Demodê na UnB, do Luís Felipe Miguel e da Flávia Biroli.
PHC: Havia também o GT de intelectuais e democracia, que era ligado ao Werneck, Maria Alice, ao Milton Lahuerta. Não era um GT exclusivamente de teoria política, mas era um GT que existia e recebia trabalhos de teoria e pensamento político.
SRA: E, focado na teoria política, temos um único GT, muito frequentado por um grupo que hoje dá suporte ao nosso evento. E é um grupo com muita gente da USP e do antigo IUPERJ, hoje IESP. Álvaro de Vita, Cícero Araújo, Gabriel Cohn, Gildo Marçal Brandão, eram pessoas que frequentavam o GT pela USP. Pelo antigo IUPERJ, hoje IESP, Marcelo Jasmim, Renato Lessa, José Eisenberg, Christian Lynch, César Guimarães. Esse grupo se via como grupo de teoria política e pensamento político brasileiro e era visto como tal.
PHC: Eu acho que tem uma coisa também. Na ABCP, houve um movimento de criação de uma nova AT, que é de pensamento político brasileiro. Isso abriu duas possibilidades: uma separação ampla das subáreas, como na ABCP, ou a manutenção de alguns espaços de interlocução, como o GT da Anpocs e, posteriormente, o Encontro e outros espaços em que isso está ampliado. Eu acho que foi essa a solução que a gente considerou em conversas com muitas pessoas. Não só eu e a San, mas uma conversa ampla, sobre qual seria a solução mais interessante: não fragmentar completamente as áreas, porque isso fragilizaria ambas, mas manter alguns espaços conjuntos e outros espaços mais autônomos.
SRA: Fragilizaria ambas e ofenderia algumas tradições. Para os seniores, essa união de teoria política e pensamento político brasileiro é muito cara, cara por boas razões. Então, tínhamos boas razões para manter um espaço em que continuássemos juntos, o GT na Anpocs, e para criar um espaço ampliado fora da Anpocs, em que também continuássemos juntos, no espírito do GT da Anpocs. E aí tem uma outra coisa que é anedótica: as pessoas que mais estavam reclamando disso éramos eu, Paulo Cassimiro, Ingrid Cyfer, Júlio Barroso, Renato Francisquini. A gente andava reclamando demais. Eu e Paulo somos muito proativos, e nós dois estávamos com um pós-doutorado no IESP, o que nos dava enorme acesso a Christian Lynch e João Feres, que também são muito proativos e disseram “OK, a gente apoia vocês nessa empreitada”. E aí, sob a proteção dos dois, que têm redes muito fortes, a gente conversou com a USP, de onde eu era “filhote”, assim como Ingrid, Júlio e Renato. E aí, Cícero, Álvaro, Bernardo e Eunice falaram “OK, nós também vamos apoiar vocês”. Depois, por articulação do Christian, a Casa Rui nos emprestou um espaço com excelente infraestrutura. Eu queria enfatizar também que o Christian não só arranjou espaço na Casa Rui para a gente, mas, no primeiro evento, precisamos de alguma verba. Foram as pesquisas coordenadas pelo Christian que nos deram essa verba. Christian sempre foi muito generoso conosco.
PHC: E a gente não pode esquecer também, San, do estímulo por parte da coordenação da Anpocs ao Encontro. A Vera Cepêda, sobretudo, teve um papel importante na organização de um espaço que hoje está bem consolidado, que são as Jornadas de Pensamento Político Brasileiro. Ela foi uma das pessoas que nos estimulou e participou da organização do primeiro Encontro com a gente, está sempre presente, sempre dando apoio. Na época, ela era coordenadora do GT junto com o Pedro Villas Boas, que também foi uma pessoa que trabalhou nesse primeiro Encontro. Então as conversas iniciais aconteceram dentro da Anpocs e foram para fora, para o IESP e para a USP.
SRA: Sim, Pedro e Vera eram coordenadores do GT na Anpocs. A única maneira de conseguirmos emplacar um encontro intermediário ligado ao GT, era pelo acolhimento e proteção institucional dos dois. O Pedro e a Vera eram o nosso grande apoio no GT da Anpocs, e o Christian e o João dentro do IESP. Fomos realizando conversas e nos reunimos com o pessoal da Unifesp: Paulo Casimiro, eu, Ingrid, Júlio Barroso e Raphael Neves. Fizemos um monte de reuniões, propusemos um monte de nomes, apresentamos para Vera, Pedro, Christian e João, montamos uma programação, enviamos um convite super cara de pau dizendo: precisamos ampliar espaços, vocês topam vir para o Rio em 2018, pagando do próprio bolso, para abrilhantar esse evento, cuja proposta é constituir espaço comum e amplo para as diversas áreas de teoria e pensamento? E os convidados, super generosamente, aceitaram o convite e abraçaram o evento. Abraçaram e abraçam até hoje. Esse evento é coletivo de verdade, pertence a todo mundo que participa dele com toda essa generosidade.
PHC: Há mais uma coisa que precisa ser dita, que não é uma crítica, porque é parte de uma dinâmica necessária dentro da construção daquele espaço. A Anpocs é um espaço, digamos assim, oligárquico; sempre foi assim e é assim em todas as áreas, de todos os GTs, não é algo exclusivo da área de teoria e pensamento político, nem da associação Anpocs. Você abre, claro, para uma renovação, de quem está chegando, dos orientandos, seja nos painéis, seja na criação mais recentemente dos SPGs, que abriram novos espaços para quem ainda está no processo de formação, especialmente de doutorado. Mas ainda assim é um espaço restrito, muito mais restrito do que a ABCP. Não só porque a ABCP é uma associação de apenas uma das três áreas que compõem a Anpocs. A ABCP também tinha como tradição sessões concomitantes nas ATs. Isso é uma coisa que não existia na Anpocs, porque esta última possui restrição de espaço por ser muito grande. Você não tem sala para incluir todo mundo, tanto que, agora, nessas últimas Anpocs virtuais, o número de GTs aumentou muito. Então, eu acho que os seniores foram muito receptivos, porque, por mais que eles tivessem um espaço deles garantido na Anpocs, eles sabem que é um espaço restrito demais e foram receptivos porque entendem a importância de se ampliar espaços, ampliar o diálogo com quem está chegando, com quem está terminando o doutorado, com quem é um jovem professor, com quem é um pós-doutorando. Isso é o que faz a capacidade da área continuar, se renovar, se reproduzir, formar novos quadros, discutir pesquisa novas, que depois redundam em publicações, é assim que uma área funciona como uma atividade acadêmica e científica.
O evento aconteceu pela primeira vez em 2018, e desde então ocorreu todos os anos, entre 2018 e 2021. Nas edições têm muitas pessoas que são recorrentes. No primeiro evento, são pessoas que já estavam nessa espera da Anpocs?
PHC: Isso tem a ver com o fato de que o encontro tem origem num grupo de pessoas que trabalham juntas. Ele não é um congresso ou um seminário organizado por uma instituição e totalmente aberto para submissão de resumos de propostas, ele é uma atividade pensada para a área, por um grupo de pessoas que trabalham juntas. A gente citou vários já. Do IESP, Christian Lynch, Pedro Villas Boas, João Feres. Na USP, você tem a Eunice, o Cícero, Álvaro, Bernardo Ricupero. O Marcelo Jasmin na PUC-RJ. O Bernardo Ferreira na UERJ, o Ivo Coser na UFRJ, a Vera Cepêda na UFSCAR, o Ricardo Silva na UFSC, a Fernanda Lombardi e a Gabriela Nunes, Diego Ambrosini, Júlio Barroso, Ingrid Cyfer, Raphael Neves também da Unifesp… Enfim, dos mais jovens aí entram também o Renato Francisquini da UFBA, Luís Falcão na UFF, Jorge Chaloub na UFRJ, Pedro Lima da UFRJ, Diogo Tourino da UFJF, André Kaysel da Unicamp, Hélio Alves na UFRGS, José Artigas da UFPB. Enfim, a gente vai acabar esquecendo nomes, então as pessoas que nos desculpem. Mas a gente se preocupou desde o primeiro encontro, e não pense que é fácil montar uma programação dessas, porque cada pessoa que você escolhe você está deixando um mundo de pessoas fora, porque os espaços são restritos. Mas eu acho que desde o primeiro ano a gente sempre se preocupou em ampliar para pessoas que não faziam parte do núcleo inicial, para pós-doutorandos, doutorandos agora com os GTs… E aí, imagine, selecionar os trabalhos dentro do GTs é outro trabalho. Então eu acho que a lógica inicial era de manter a unidade de um grupo de pessoas que trabalha junto, que trabalha próximo, ao mesmo tempo que ampliar a capacidade desse grupo acolher novos membros.
SRA: Manter e criar. Os dois motores são ampliar espaços e cultivar redes. Porque a gente é uma comunidade de debate. Uma das coisas que a gente sempre falou na organização é que a gente produz melhor teoria e pensamento políticos se a gente conversa, se um está criticando o outro, um está fazendo sugestão para o outro, um está fazendo elogio para o outro. O diálogo é importante e ele vem do seguinte: ampliar espaço para vozes novas e cultivar a rede. E não dá para cultivar a rede convidando a pessoa uma vez e depois nunca mais. A rede e a comunidade exigem uma recorrência. E mais: não nos esqueçamos que éramos um evento pobre. Um evento pobre convida gente que já é ligada ao grupo e aceita vir pagando do próprio bolso. Isso exige rede e comunidade. Você não fala para uma pessoa que você nunca viu na vida, mas cujo trabalho você lê e admira: “venha passar três dias no Rio de Janeiro ou em São Paulo, pagando do seu bolso o avião e o hotel”, isso a gente consegue dizer apenas dentro de uma rede. Então, não só o motor era cultivar rede e comunidade de debate, mas ampliar. Precisamos ampliar sempre, porque uma rede que é sempre composta das mesmas pessoas caduca e morre. Se a ideia era melhorar o debate, precisávamos ter essas duas coisas: acolher pessoas novas sempre, mas, também, ter sempre as pessoas cultivando relações. Inclusive, para todo mundo que já foi, o clima do evento é muito agradável, porque nós vamos aprofundando nossas relações intelectuais pela recorrência da nossa presença e muitas pessoas vão para o nosso evento mesmo nos anos em que elas não apresentam. Elas vão porque elas se entendem como parte. Então é isso, vocês viram as mesmas pessoas com muita frequência, porque é o cultivo de uma rede. E, se vocês prestarem atenção, vão ver que tem um monte de professor recém-doutor e júnior, que não conseguia entrar em todos os espaços tradicionais. A ampliação estava sempre lá; só que começou primeiro com os professores, passando, depois, a incorporar pós-doutorandos, porque a ideia é incorporar pessoas que estarão nos departamentos e programas. A gente precisa de longevidade, rede e comunidade exigem longevidade. Só no quinto evento entraram os pós-graduandos, porque a gente tinha que ter uma história para ser sedutor quando criasse GTs abertos a submissões. No nosso primeiro ano, se a gente lançasse um edital para os alunos virem pagando do próprio bolso, inclusive de lugares que não têm muito dinheiro – não é todo o programa que tem um PROEX, um PROAP – quem viria? Ninguém viria, não é? Então, é isso, o evento está cada vez mais ampliado, como disse o Paulo, mas ele tinha que começar um pouco mais restrito, porque são esses seniores que nos deram um enorme apoio e fizeram com que nós júniores achássemos que valia a pena participar junto. E, completando, para não sermos injustos, os juniores encamparam com a gente. Não nos esqueçamos que o evento não existiria se esses professores juniores e pós-doutorandos Brasil afora não estivessem também dispostos a estar sempre nos acompanhando e fazendo generosas apresentações nas diversas mesas. A Unifesp também foi muito parceira. A Unifesp fez parte de todas as comissões organizadoras e possui um time grande e fundamental de teoria e pensamento: Ingrid Cyfer, Júlio Barroso, Raphael Neves, Maria Fernanda Lombardi e Gabriela Nunes Ferreira, cinco pessoas presentes desde o início. Depois o Diego Ambrosini se reuniu com a gente também, e eu acho que ele veio para ficar, está, inclusive, participando da comissão organizadora de 2022. E teve um ano que teve também o Javier Amadeo participando. Percebam que são muitos jovens professores. Se essa instituição, com tanta gente, não nos abraçasse, não teria dado certo. Outro júnior que nos abraçou muito foi Luís Alves Falcão, que esteve com a gente sempre. Renato Francisquini, André Kaysel,Jorge Chaloub e Roberta Soromenho também.
Então, entre as principais motivações, esteve a demanda por espaço. O que isso revela, na visão de vocês, sobre o espaço que a teoria tem na academia?
PHC: Essa pergunta é muito complexa, daria um bate papo longo apenas sobre isso. Tem três pontos que eu poderia mencionar para vocês. Um é a complexidade temática e de abordagens da teoria. A teoria não tem um objeto único. Outro, é uma certa dificuldade que a teoria tem, que outras áreas não têm, de se enquadrar em certos critérios de avaliação científica. E, terceiro, é uma certa “síndrome do patinho feio”. Se você pensar nos últimos cinco anos de Prêmio Anpocs, de Prêmio Capes, a teoria ganhou duas vezes e ficou uma vez com o vice-campeonato, que fui eu. Os campeões foram Roberta Soromenho e Felipe Freller no último prêmio. Então assim, cinco anos você tem dois títulos e um vice para a teoria, não é? Antes, teve a Thaís Aguiar levando o Prêmio Capes. Além disso, quase todo o curso de graduação e pós têm cadeiras de teoria obrigatórias, o que faz com que os departamentos tenham que ter professores capazes de ofertar disciplinas de teoria. Então a teoria tem uma importância para o campo, que não é tão desprezível como muitas vezes a gente parece pensar que é, ou agir como se fosse. Dito isso, eu acho que a teoria tem problemas internos muito grandes e que dificultam a criação de redes. Porque, primeiro, a gente não tem um problema único, um objeto único de pesquisa, menos ainda uma metodologia única. O nosso objeto não é o legislativo, políticas públicas, as relações sul-sul, enfim, que podem unificar.
Acrescento também que eu acho que a teoria, num certo sentido, mas não toda ela, é reticente em se adequar a questões como: a necessidade de você ter produtividade, da publicação, de que você tenha a originalidade, de que você formule um problema de pesquisa teórico, que seja um problema de pesquisa, que não seja uma análise exegética, uma interpretação ou monografias sobre autores, que seja um problema. Você pode estudar autores, é claro, todos nós aqui fazemos isso em algum nível; mas que a sua pesquisa na área de teoria parta de problemas é algo a que muitos de nós não querem se adequar. Muitas vezes as pessoas não são capazes de ter a mesma clareza que outras áreas têm a respeito disso. São problemas de natureza da pesquisa científica que a teoria muitas vezes tem dificuldade em enfrentar. Além da dificuldade que há com financiamento, com os critérios que existem hoje para você conseguir uma bolsa. Com esse desmonte do CNPq, por exemplo, mesmo pesquisadores com produtividade não estão conseguindo certas bolsas. Enfim, a teoria enfrenta esses problemas com uma certa resistência, que não deveria existir, mas ao mesmo tempo é correto que ela seja crítica. Não é como se a teoria tivesse que aceitar tudo também, todas as imposições de financiamento etc., de modo acrítico. Mas, ao mesmo tempo, ela tem também de ser capaz de se avaliar criticamente. Porque se trata de uma atividade exercida no interior de instituições públicas, de instituições que recebem recursos públicos; a gente precisa justificar nossa relevância. A nossa relevância não pode ser dada de barato, como se diz aqui no Rio de Janeiro. A gente tem obrigação, sim, de prestar contas à sociedade, porque estão sendo gastos recursos públicos com professores universitários que se dedicam a pesquisar teoria política.
SRA: E de prestar contas à comunidade. A atividade científica e teórica é uma atividade entre pares. Tem uma justificativa para a sociedade mais ampla, mas tem uma justificativa dentro do campo das ciências sociais e da universidade. E, no caso da teoria política, além de ser plural, ela se liga às zonas de fronteira entre campos disciplinares. Então, é teoria e pensamento políticos junto com história, filosofia, direito, economia e teoria literária. A gente tem muitas conversas inter e transdisciplinares. Eu gosto de dizer, seguindo uma forma meio anglo-saxã de entender, que nós somos do campo das humanidades. As ciências humanas não são necessariamente do campo das humanidades. A gente participa de muitas conversas disciplinares e inter/trans-disciplinares e a gente tem que se justificar perante as diversas comunidades nessas conversas. Eu acho que a teoria política tem uma enorme relevância. A teoria política faz parte de reflexões que iluminam conceitos, iluminam articulações entre os conceitos e iluminam tudo aquilo que está implícito em qualquer produção nas humanidades e nas ciências humanas. Digo implícito em qualquer produção, porque existem ontologias, epistemologias e normatividades implícitas em todo o pensamento humano, inclusive naquele construídos nas ciências duras, pensem, por exemplo, em quanto tempo a humanidade achou que os corpos celestes tinham que se movimentar em círculos perfeitos. Isso vem do fato de que nós, humanos, pensamos com pressupostos inescapáveis. E há uma particularidade sempre discutida a respeito do caráter do conhecimento construído nas humanidades e nas ciências humanas, que é o fato do sujeito do conhecimento e do objeto do conhecimento serem igualmente humanos – feitos de linguagem e sociedade – o que traz um monte de complexidades específicas. E a teoria política e pensamento político, assim como a filosofia, são os lugares por excelência da reflexão sobre o que é pré-científico e científico e, acrescento sobre aquilo que foi cientificizado, certo? Pós-científico, não no sentido de contra a ciência, mas depois da ciência. E aqui eu estou citando a Vera Cepêda, porque teve uma vez, numa mesa da Anpocs, em que ela me falou algo como, “San, você está falando muito sobre aquilo que é pré-científico no pensamento e aquilo que é científico no pensamento; mas há também aquilo que é feito depois que a ciência é feita.” Eu sempre me lembro dela argumentando sobre isso e já citei várias vezes, espero ter entendido corretamente, vai que um dia ela me ouve e me diz “San, não foi isso que eu quis dizer…”
Mas, voltando à riqueza da teoria e pensamento políticos, no nosso caso, essa riqueza toda vem do fato de que ocupamos zonas de fronteira. Além disso, essa importância toda que a teoria possui é reconhecida, inclusive, em lugares que a gente normalmente não suspeita. Se vocês forem olhar as áreas prioritárias do CNPq, vocês vão ver que algumas dessas áreas envolvem reflexões conceituais que só a teoria consegue fazer. Por exemplo, desenvolvimento sustentável: o conceito de sustentabilidade e o conceito de desenvolvimento são conceitos altamente teóricos. Conceitos como qualidade de vida, avaliação de políticas públicas… Como é que você pensa avaliação de políticas públicas sem teoria? O próprio nome “avaliação” já coloca um pé da coisa fora do campo da ciência; a ciência explica, ela não avalia. Quando fazemos avaliação de algo, estamos conversando com o campo da teoria. Outra coisa, os desenvolvimentos de inteligência artificial dependem de várias coisas que são estéticas e filosóficas, segundo os próprios matemáticos. Enfim, a teoria é importante, e ela precisa começar a se afirmar como importante. Precisamos perder essa “síndrome do patinho feio”, que muitas vezes a teoria política brasileira e o pensamento político brasileiro têm – eu acho que o pensamento político brasileiro tem menos. Ela tem que ceder espaço a esse reconhecimento da importância da teoria. No ano passado, o tema do encontro, por proposição do Paulo Cassimiro, foi o que a teoria política e o pensamento político têm a contribuir para os grandes temas da ciência política. A ideia do Paulo, abraçada por toda a comissão organizadora, se inspirou na quadrienal, que nada mais é do que uma grande conversa entre pares para decidir sobre a nossa avaliação e que tem consequências sobre a distribuição do financiamento público. Esse financiamento tem que ser guiado por uma política pública de larga escala, como é a avaliação quadrienal, e que é um processo que tem a participação de pares em muitos momentos fundamentais. Normalmente, nós pedimos para as pessoas convidadas falarem sobre o que elas estão produzindo, porque a ideia é colocar em circulação aquilo que está em andamento, de modo a fazer a teoria andar. A ideia do working paper tem muito a ver com as nossas conversas. Mas, nesse evento específico de 2021, a ideia foi de uma afirmação positiva e não reativa a respeito do valor do campo. Uma afirmação positiva da importância da teoria do pensamento políticos para falar dos temas da ciência política. Além disso, nós somos o maior evento anual de uma subárea da ciência política brasileira. Não existe nenhuma subárea da ciência política que tenha um evento maior. A história, a educação, a sociologia têm uns eventos gigantescos, mas a ciência política é mais modesta. Então, dentro da nossa modéstia da ciência política, não existe nenhum evento maior que o nosso anual. Parte da nossa relevância se mostra tematicamente, mas ela se traduz no fato de que nós somos, modéstia à parte, numericamente, um evento mais importante e mais nacionalizado. Tem gente do Brasil inteiro.
Paulo e eu fizemos um levantamento para pensar com vocês esse tamanho e essa pluralidade: em nossos cinco eventos, tivemos 26 pessoas nas comissões organizadoras, vindas de nove instituições. Isso é bem amplo e precioso. E já tivemos apresentações de 75 professores vindos de 31 instituições diferentes, no que incluímos diferentes universidades, programas de pós-graduação, departamentos, centros de pesquisas.
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A programação do V Encontro de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro, que ocorrerá entre os dias 6 e 8 de julho, no IESP-UERJ, pode ser acessada aqui.
Referência imagéticas:
Colagem feita a partir das imagens cedidas pelos entrevistados.
[1] Doutor e Pesquisador de Pós-Doutorado no Departamento de Ciência Política da USP e no Grupo de Pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica (CNPQ-USP) e membro da equipe editorial do Boletim Lua Nova/Cedec
[2] Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), com bolsa FAPESP (processo n. 2020/14387-8), e membro da equipe do Boletim Lua Nova. E-mail: afressatticardoso@gmail.com. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
[3] Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), bolsista CNPq, membro do grupo de pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica e da equipe editorial do Boletim Lua Nova. E-mail: sergiombk@gmail.com.