Kenia Antonio Cardoso1
01 de novembro de 2024
Este texto compõe a série especial sobre o Ciclo de Oficinas de Formação 2024 – Eleições em São Paulo: Construindo a Agenda de uma Cidade no Sul Global. Leia os outros textos aqui.
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Há um vínculo íntimo entre uma cultura alimentar, a cadeia produtiva do alimento e as mudanças climáticas. A compartimentalização do conhecimento gera, em muitos sentidos, uma visão limitada sobre a origem e as consequências dos problemas históricos e políticos vividos na contemporaneidade. Se as revoluções verdes difundiram práticas de esgotamento do solo e mudaram a organização do trabalho no campo, é na agricultura localizada que se encontra importante contribuição para um futuro mais justo. A oficina “Segurança Alimentar, Cinturões Verdes e Resiliência Climática” integra o terceiro ciclo de oficinas, fruto de uma parceria entre o Núcleo Democracia e Ação Coletiva e o Desjus, Núcleo de pesquisa em Desigualdade e Justiça, com o apoio da Fundação Tide Setubal.
A atividade foi composta pela pesquisadora Daniele Custódio, atuante nas áreas de combate à fome e agricultura em âmbitos sustentável e familiar e erradicação da pobreza e coordenadora do projeto Frente Alimenta do Instituto Kairós Ética e Atuação Responsável, que visa combater a fome e fortalecer a agricultura urbana e periurbana sustentável; e pelo ativista e pensador Thiago Vinicius, empreendedor social, morador do Capão Redondo, integrante da lista de 50 jovens organizada pela World’s 50 Best Restaurants, considerado o Oscar do setor, e cujo trabalho ajuda a democratizar a alimentação orgânica na periferia de São Paulo, ligando produtores orgânicos com consumidores da região. A mediação foi feita pelo Alexandre Fontenelle-Weber, mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP), diretor executivo do Instituto ZeroCem e participante do Núcleo de Democracia e Ação Coletiva.
A Oficina começou com a análise marcante de Danielle. A pesquisadora pontuou a importância do momento político, o então período pré-eleições municipais, e dos ocorridos ambientais dos últimos meses. Ela ressaltou o fato de que as queimadas terão impacto significativo em nossa alimentação e o quanto as inundações no Rio Grande do Sul geraram um quadro volátil na alimentação de todo o país. Ao ressaltar os dois ocorridos, Danielle buscou mostrar o quanto o modelo produtivo atual, baseado no extrativismo e ciclos longos de produção e consumo, gera consequências graves para a coletividade.
O 1° Inquérito Alimentar na Cidade de São Paulo, ainda nas palavras de Danielle, levantou dados alarmantes sobre a situação: mais da metade da população em domicílios da cidade de São Paulo convive com algum grau de insegurança alimentar. Desses, ¼ milhões de pessoas estão em situação de fome. Esse quadro é composto majoritariamente pela chamada zona 2, que engloba bairros como Grajaú, Capão Redondo, Vila Sônia, Guaianazes, Pirituba, São Mateus, Itaim Paulista, entre outros. Ou seja, a periferia da cidade. Neste mesmo sentido, a pesquisadora apresenta mais dados: em casas de mulheres pretas, a situação de insegurança alimentar chega a ser 3 vezes pior do que em casas chefiadas por homens brancos.
A reflexão dela é importante pois acrescenta elemento fundamental e político ao debate: a fome tem gênero, raça e CEP. Há uma forma de produzir alimentos que beneficia a minoria da população brasileira.
O Instituto Kairós surge da necessidade de repensar a relação das cidades com a produção agrícola, mas, sobretudo, da urgência de propor ações assertivas que devolvam direitos fundamentais, como o da alimentação saudável, ao todo da população. Danielle mostra como os cinturões verdes atuam de forma complementar à produção de alimentos das áreas rurais. Ela nos diz que a agricultura urbana e periurbana têm papel fundamental na produção de alimentos nessas áreas, principalmente porque estão, em sua maioria, em áreas periféricas e são orientadas por práticas agroecológicas.
Os cinturões verdes são feitos em territórios de propriedade concessionária: linhões de energia e sobre dutos de água e gás. Eles estão dentro da cidade de São Paulo, são mantidos por agricultores e agricultoras com alta capacidade técnica para a produção de alimentos, mas que, não raro, vivem quadros de insegurança alimentar. Danielle nos revela o absurdo: o Frente Alimenta, um projeto do Instituto Kairós, entende ser importante comprar alimentos de agricultores urbanos justamente para estimular essa cadeia curta de produção e consumo e dar sustentabilidade financeira à produção agrícola urbana.
Este quadro revela uma contradição profunda na lógica de funcionamento de uma cadeia: o produtor não consome sua própria comida. Ela evidencia como o Frente Alimenta dedica-se a sustentar soluções que sejam capazes de reverter este cenário. É necessário garantir a segurança alimentar de quem está na cidade e dos agricultores urbanos enquanto pessoas que desenvolvem uma atividade econômica fundamental à vida. Existe uma limitação relacionada à agrourbania – tamanho das áreas de cultivo e frequência da remuneração – que exige conciliação com os alimentos produzidos em áreas rurais: hortaliças vêm da cidade, frutas e legumes vêm do campo, diz Danielle.A coordenadora do Frente Alimenta, também nos diz que o tempo da natureza é diferente do nosso tempo e ilustra a ideia com um caso simples de nossa cultura alimentar: durante o verão, consumimos mais salada, mas janeiro é a pior época para plantar hortaliças por causa da chuva. O melhor momento para plantá-las é o inverno, momento em que ninguém come salada. Durante as ondas de calor em setembro, os agricultores da zona leste tiveram uma hiperprodução. O Frente Alimenta comprou esse excedente para levar às cozinhas comunitárias. São sempre alimentos agroecológicos, orgânicos e biodinâmicos. A iniciativa também promove feiras em parcerias no horário em que trabalhadores e trabalhadoras estão retornando a suas casas, no ponto de ônibus. Eles pegam apenas o que precisam e escolhem – isso traz dignidade, pois têm autonomia no consumo.
Danielle ressalta que é necessário fazer as provocações para que o serviço público pense políticas orientadas por ciclos curtos de cultivo e consumo. Neste sentido, podemos pensar a territorialização do ciclo: é possível fazer aproveitamento integral de alimentos que são agroecológicos. O hábito alimentar começa a se modificar dentro dos territórios. É um processo de tentativas e adaptações, e cada território tem suas características, que são únicas, e exigem tentativas diversas para mudança da cultura alimentar.
Diante da realidade das mudanças climáticas, a tendência é que vivamos ondas de calor mais intensas e longas. Como isso vai impactar o agricultor? Teremos que nos adaptar a comer outros tipos de alimentos, como as PANCS (Plantas Alimentícias Não Convencionais), ou teremos problemas porque fomos educados a comer uma baixíssima variedade de alimentos. Precisamos fazer esse exercício de conhecer e inserir gradualmente essa variedade em nosso dia a dia, ela ressalta. Fazendo esse trabalho em parceria com a agricultura urbana e periurbana ajudamos a manter esses espaços mais verdes. Não se pode, porém, relegar à agricultura urbana a responsabilidade de “tornar a cidade verde e respirável” porque as queimadas são originadas em outros lugares.
Enfim, Danielle encerra sua fala dizendo como é possível ter uma alimentação de qualidade nas periferias, bem como fazer com que os agricultores sejam reconhecidos, mas é necessário suporte da prefeitura para isso. É importante que a conversa entre a prefeitura e as concessionárias seja efetiva para facilitar a vida dos trabalhadores e trabalhadoras.
Na sequência, Thiago Vinicius, da Agência Solano Trindade, relata suas experiências com as iniciativas desenvolvidas em Campo Limpo e apresenta diagnósticos muito lúcidos sobre o esvaziamento do debate em instâncias públicas e fóruns internacionais sobre mudanças climáticas.
O pensador começa sua fala dizendo o quanto as tecnologias sociais desenvolvidas localmente levam para a quebrada qualidade de vida. O corpo favelado é um corpo de direitos, diz ele. Thiago elabora seus pensamentos enquanto exibe a apresentação que preparou, rica de imagens e informações sobre todos os eventos, projetos e vivências que organizam o mundo mais justo que ele e sua comunidade viabilizam em Campo Limpo. Foram mais de três milhões de renda geradas com os eventos culturais, shows com rappers como os Racionais e Emicida, entre outros(as) artistas.
Thiago é extremamente certeiro ao levantar o reconhecimento da terra como o ponto de partida da sustentabilidade e da prosperidade nas periferias. Ele conta o quanto a Agência Solano Trindade se organizou financeiramente durante anos para levantar duzentos mil reais e comprar uma “fazendinha”, a partir da qual desenvolvem duas atividades de agricultura e cozinha.
Ele também nos oferece uma reflexão crítica à lógica de funcionamento das instâncias internacionais: elas acabam estimulando a criação de grandes nomes da sustentabilidade que, muitas vezes, estão desconectadas da inovação real nas periferias. Thiago parece dizer sobre um glamour sem concretização prática e sem apoio aos que estão propondo e atuando em prol de transformações reais no clima. Portanto, há uma tensão e desconexão entre o que é organizado pela sociedade civil e as respostas do Estado.
Thiago conta bastante sobre a iniciativa Organicamente Rango, que divulga listas semanais de disponibilidade de alimentos diversos ofertadas por uma rede agricultora parceira. A iniciativa coleta os pedidos e realiza as entregas durante a semana, a preços adequados à realidade socioeconômica de públicos variados. Sua apresentação mostra muitas fotos tanto das entregas realizadas por essa iniciativa, quanto dos alimentos preparados na cozinha da Agência, organizada pela sua mãe. São pratos que aproveitam a diversidade de alimento ofertada pelas hortas. Nada se perde. A cozinha funciona, na prática, como um espaço de garantia da segurança alimentar e socioeducativo, pois estimula a conscientização da comunidade, sobretudo dos mais jovens, sobre a riqueza alimentar que nossa terra é capaz de ofertar.
Na sequência, o mediador Alexandre traz algumas provocações e pergunta sobre o que é importante aparecer em termos de política pública nesse assunto.
Ambos os pensadores, Danielle e Thiago, pontuam inicialmente que a filantropia tende a ser limitada na elaboração do tema e que seus apoios financeiros são oriundos de famílias, poucas organizações internacionais e restritas verbas públicas.
Danielle conta do trabalho da candidata à vereança, Claudia Vizoni – ambientalista e agricultora, que integrou o Frente Alimenta. Ela busca levar ao poder público as pautas trabalhadas dentro da organização, de forma geral: a questão da poluição, da alimentação saudável para todes, a necessidade de ações adequadas à resiliência climática para a cidade, como os jardins de chuva.
Thiago e Danielle trouxeram também as barreiras do ativismo, um espaço que tende a negligenciar o reconhecimento de pessoas que estão na luta no dia a dia. O Instituto Kairós, por exemplo, está na luta para o cumprimento da lei n. 16.1 de 2005, que institui a obrigatoriedade para que toda alimentação escolar do município de São Paulo seja orgânica a partir de 2026. Não é uma luta fácil porque o embate político se camufla por pretensos argumentos técnicos, como o de que não terá agricultores suficientes para a oferta. Danielle ressalta que é importante juntar forças para mostrar que é possível!
Quanto às concessões de uso das terras urbanas, elas são feitas por um prazo de 10 anos, com possibilidade de renovação, mas há disputas para uso. Por exemplo, existem pessoas interessadas em fazer estacionamentos nesses terrenos e, estranhamente, o fiscal responsável por garantir segurança às hortas as proibiu do acesso à água. Portanto, as hortas urbanas são também espaços de resistência e elas precisam de apoio.
Thiago, por sua vez, denuncia a falta de integração entre as instâncias governamentais e suas políticas. Não há solidariedade, ele afirma. Cada um quer fazer seu projeto para autopromoção. Os editais exigem excesso de formalização e um fluxo financeiro muito equilibrado, cadastros que são difíceis de conseguir. Ele considera que esse enrijecimento administrativo vai minando as boas iniciativas. Para receber emenda parlamentar, “tem que estar certinho”. O partidarismo acaba com a energia dos projetos bons. O pensador ainda faz provocações lúcidas sobre o cenário político: ele declara publicamente voto ao Boulos (Partido Socialismo e Liberdade – PSOL), mas confessa que anda muito difícil votar na esquerda.
Ele retorna à questão da filantropia e diz que seu objetivo é sair dela, e faz um paralelo com o Programa Bolsa Família. Thiago cita vários exemplos não apenas de falhas pontuais nas políticas, mas as engloba em uma reflexão maior sobre o quanto a lógica clientelista de funcionamento acaba por drenar a energia das iniciativas boas. Ele exemplifica sobre como o Adesampa poderia cadastrar negócios para servir comida nos eventos da prefeitura, pergunta por quê a prefeitura não usa a TV para se comunicar com o povo e conta, inconformado, que tem um OXXO em Campo Limpo.
No momento das perguntas do público, Uvanderson, coordenador do programa de Democracia e Cidadania Ativa da Fundação Tide Setubal, faz resenhas importantes a partir das falas de Danielle e Thiago. Ele pontua que, diante de todos os relatos, pode-se entender que há uma relação tensa entre o Estado e as organizações sociais de origem periférica e que o clientelismo continua sendo uma moeda corrente na condução de políticas e recursos públicos nas margens da cidade. Diante deste cenário, Uvanderson explica que há uma área na Fundação que se dedica a pensar os sistemas alimentares a partir das periferias, e que o principal desafio, entre tantos, dessa estratégia é encontrar um caminho para a permanência econômica da produção periférica de alimentos. Ele pergunta quais caminhos os debatedores vislumbram neste sentido.
Por fim, Raissa e Lucas, ambos pesquisadores do DesJus também direcionam perguntas ao debate. Raissa, primeiro, exaltando o início da fala de Thiago, quando nomeia o corpo periférico como um corpo de direitos, e pergunta se ele, a partir dessa chave, não enxerga o trabalho filantrópico não como solidariedade, mas sim como um dever de reparação histórica. Lucas, por sua vez, traz a agricultura urbana como algo que aponta para um novo modelo político, e não apenas uma atividade para contenção das mudanças climáticas – portanto permanência do velho modelo.
Danielle contribui novamente para a reflexão trazendo dados sobre a produção agrícola no Brasil: a agricultura familiar abastece mais de 70% da alimentação brasileira. No entanto, o assédio promovido pela indústria de ultraprocessados é uma das maiores estratégias de expropriação da história, afinal ela promove esvaziamento de um conhecimento ancestral de reprodução da vida. Thiago é novamente certeiro ao denunciar a realidade de festivais de alimentação saudável em São Paulo: “a galera só faz essas coisas no parque Villa Lobos, no Ibirapuera”, diz ele. A alimentação vai virando algo distante para a quebrada. O pensador segue dizendo que quanto mais pobres as pessoas são, melhor alimentação elas têm. “Quem ensina a cidade comer bem é a favela. As cozinhas do mundo estão na favela.”
Ficam muitas provocações e reflexões desta oficina, brilhante em suas participações. Como pensar o desenvolvimento econômico periférico para que seus sujeitos não estejam dependentes de pingos de editais, públicos e privados, e da indústria em que se transformou o microcrédito. É necessário pensar o acesso à terra. Pensar a produção em suas instâncias mais primárias. A reparação só será possível quando a inteligência periférica tiver caminho fértil para existir.
Todas essas reflexões e perguntas são fundamentais para conduzir os rumos da política sobre sistemas alimentares no país. Não há como alienar nossos modelos produtivos do fazer político. O processo é complexo e passa por diversas instâncias do conhecimento, mas sobretudo pela reflexão sobre nosso lugar político. Quando Thiago ressalta, inconformado, a lacuna que há entre espaços de poder e a produção de soluções reais pela sociedade civil, não se pode esquivar da reflexão mais profunda sobre o quanto o projeto político hegemônico tem lugares bem marcados de raça, classe e gênero. Há uma tecnologia social gestada nos territórios que precisa ocupar os espaços de produção da política.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
- Economista, mestre em economia política mundial pela Universidade Federal do ABC. Editora adjunta da rede tricontinental de pesquisa Agrarian South Network e coordenadora do programa de Nova Economia e Desenvolvimento Territorial da Fundação Tide Setubal. ↩︎
Referência imagética: Cartaz de divulgação da oficina “Segurança Alimentar, Cinturões Verdes e Resiliência Climática”, ocorrida em 23 de setembro de 2024.