Leonardo Barros Soares[1]
Começo esse texto com duas confissões. A primeira é que fiquei emocionalmente muito abalado com as mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips no Vale do Javari em meados de junho. Por dever de ofício e, sobretudo, por ser humano, acompanhei o drama cujo desfecho trágico é de conhecimento de todos. Não consigo, no entanto, até hoje, conhecer os detalhes de tão pavoroso evento. Tampouco consegui ouvir o vídeo que tanto circulou nas redes sociais de Bruno cantando uma canção indígena. Não consigo e nem sei se conseguirei um dia. Dá para ver, na imagem sem som, que ele está feliz, no meio da floresta. Eu sei que é um momento muito bonito, muito delicado e absurdamente humano. Por isso não consigo. É demais para mim.
Talvez tudo seja demasiado porque – e essa é a segunda confissão – eu tive a experiência de atuar como indigenista especializado da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 2019, pouco antes de começar como docente na Universidade Federal do Pará (UFPA) e, hoje, na Universidade Federal de Viçosa (UFV). Ou seja, por um breve instante, foi inevitável pensar: sim, poderia ser eu. O estômago embrulha e gela por dentro. Conhecemos esse sentimento: é o medo. Medo de morrer violentamente. Tenho quase certeza de que todos os colegas indigenistas sentiram algo parecido naquele momento, e talvez até hoje. Já pensou morrer no exercício do seu trabalho?
Foram poucos meses na função, mas intensos. Aprendi e vi muita coisa. Conheci um mundo, ou melhor, muitos mundos distintos, todos eles muito complexos e desafiadores. A interação com indígenas nunca é trivial. Não é dela, todavia, que me ocuparei nesse texto, mas sim da interação com meus colegas de FUNAI. É notório o grande número de trabalhos acadêmicos com um grande conjunto de povos indígenas no país, em contraste com a exígua atenção dispensada a esses funcionários públicos sui generis.
Ao sair dos quadros da secular agência indigenista do estado brasileiro, minha admiração e curiosidade pelos “sertanistas” – como eram chamados os agentes indigenistas até recentemente – só aumentou. Um dos meus colegas, dos mais experientes, me impressionou com a extensão do conhecimento que detinha sobre a temática indígena em geral; falava fluentemente algumas línguas indígenas da região; conhecia suas organizações sociais, rituais e mitologia; dirigia horas no meio da floresta para apagar incêndios para, na volta, pegar a lancha para alcançar aldeias mais remotas. No caminho, indígenas ofereciam peixes enormes que tinham pescado para ele; conhecia a todos, e todos o conheciam. Riam, conversavam e decidiam coisas juntos, retomadas no escritório da FUNAI, com seus relatórios, pareceres e ordens de serviço. Eu não estava preparado para experimentar um conjunto tão variado de experiências no âmbito de uma atividade profissional.
Quem são esses indivíduos que, muitas vezes, vão trabalhar nas localidades mais remotas deste gigantesco país? Por que se dedicam a proteger e promover os direitos dos povos indígenas brasileiros? O que pensam sobre sua atividade? Que transformações subjetivas ocorrem no decorrer dos anos de interação com cosmovisões radicalmente distintas das suas? Que habilidades desenvolvem? Sentem-se valorizados profissionalmente? Que sugestões teriam para melhorar a gestão da política indigenista? Tantas perguntas a fazer e tão poucos dados disponíveis sobre esses servidores federais que gosto de chamar de “jungle-level bureaucrats”, os nossos burocratas em nível de selva.
O trocadilho é, obviamente, uma brincadeira que faço com um conhecido conceito no campo da análise de políticas públicas. Michael Lipsky, em estudo clássico (1980), cunhou o termo “burocratas de nível de rua” (street-level bureaucrats) para designar aqueles agentes de políticas públicas em contato direto com a população e que, em determinadas situações, aplica de forma discricionária seus parâmetros, reelaborando-os a partir de seu fazer cotidiano. Em outras palavras, um burocrata de nível de rua parece agir conforme o refrão da música – “aqui embaixo, as leis são diferentes”. Policiais são os exemplos mais comuns, mas também há, entre nós, os importantes estudos de Gabriela Lotta sobre os agentes comunitários de saúde, para ficarmos em apenas alguns poucos exemplos (2010). Ao trasladar esse termo, sem muitas mediações teóricas, para os indigenistas da FUNAI, quero ressaltar o aspecto criativo da implementação da política indigenista no cotidiano dos agentes públicos.
Para que os/as leitores/as desse texto possam ter um vislumbre do que afirmei, gostaria de mencionar aqui, brevemente, cinco trabalhos recentes que, a meu juízo, fornecem uma visão bastante abrangente do ofício indigenista. Evidentemente não se trata de uma lista exaustiva nem definitiva, mas uma seleção que, penso eu, pode ter o condão de introduzir o/a pesquisador/a interessado/a no universo do indigenismo.
Em primeiro lugar, recomendo fortemente a monumental biografia do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon escrita pelo jornalista norte-americano Larry Rother. Em Rondon: uma biografia (2019), Rother traça, com muita competência, a história de uma das figuras mais importantes do Brasil. Trata-se de um militar de ascendência indígena que se tornou o patrono das telecomunicações, deu nome a um dos estados da federação, fundou e comandou, durante décadas, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Não é exagero afirmar que Rondon – com todos os seus erros e acertos – estabeleceu os parâmetros fundamentais da relação do Estado brasileiro com os povos indígenas que habitam em seu interior e alterou o curso de uma história que seria a esperada para um país que concentra, de forma tão absurda, tantas terras em mãos de tão poucos: o extermínio total dos indígenas. Conhecer a vida e obra de Rondon é fundamental para que entremos em contato com ideias que inspiram o trabalho de indigenistas até nossos dias.
Em segundo lugar, há uma bela obra, organizada pelo professor Felipe Milanez, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), chamada Memórias sertanistas: cem anos de indigenismo no Brasil (2015). Fruto de um encontro realizado em 2010 no SESC Anchieta, o livro condensa histórias de vida de alguns dos sertanistas mais importantes do país, dentre os quais José Carlos Meirelles, Fiorello Parise e Sydney Possuelo, ex-presidente da FUNAI responsável pela demarcação da Terra Indígena Yanomami, a maior do Brasil. É impossível não perder o fôlego quando da narração de algumas situações em que, francamente, a maioria de nós simplesmente não saberia como agir. Meirelles, inclusive, chegou a ser alvejado por uma flecha que atravessou sua bochecha e alcançou sua nuca, tendo escapado com vida por pouco. Esse fato, inclusive, faz relembrar a recente morte de outro indigenista célebre, Rieli Franciscato, atingido no peito por uma flecha de indígenas em situação de isolamento voluntário que, de tão ameaçados por não-indígenas, não conseguem distinguir ao certo quem é aliado de quem é inimigo em situações de perigo. O livro é extremamente recomendado para quem quer ter uma ideia do conjunto de situações desafiadoras em que indigenistas se encontram todos os dias em seu trabalho.
Em terceiro lugar gostaria de recomendar a monografia de conclusão do curso de especialização em gestão pública da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) de Helton Soares dos Santos, intitulada Análise da distribuição da força de trabalho da Fundação Nacional do Índio (2018). Esse trabalho oferece ao público um panorama bastante detalhado da situação laboral dos servidores da FUNAI, demonstrando cabalmente que, em breve, a fundação estaria inviabilizada de cumprir sua missão institucional caso não buscasse remediar o quadro dramático por meio da realização de um concurso público, o que efetivamente aconteceu em 2016. Santos nos relembra das agruras do indigenismo real no cotidiano de uma instituição precarizada, cronicamente subfinanciada e vulnerável a toda sorte de influências políticas.
Também nessa linha, o interessado em conhecer os atuais desafios – e não são poucos – enfrentados pelos indigenistas durante a gestão do governo de Jair Bolsonaro deve se debruçar, sem mais delongas, sobre o relatório de fôlego produzido pela INA- Indigenistas Associados, uma associação de servidores da FUNAI, em parceria com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), e publicado no calor da notícia da morte de Bruno Pereira e Dom Phillips. Trata-se de um documento que mapeia todo o processo de desmantelamento institucional pela qual têm passado a FUNAI nos últimos quatro anos. Os relatos de assédio institucional contra servidores são chocantes, consolidando a “fama” da fundação como um dos mais insalubres ambientes de trabalho em toda a esfera pública federal. Aqui, mais uma vez, o foco recai no indigenismo contemporâneo, que não permite idealizações e se apresenta como uma atividade laboral permeada de riscos.
Por fim, mas não menos importante, indico o livro do antropólogo gaúcho Jorge Pozzobon, intitulado Vocês, brancos, não têm alma: histórias de fronteira (2002). As deliciosas – e por vezes, aterradoras – histórias contadas por Pozzobon – que foi chefe de gabinete da presidência da FUNAI -, frutos de seu longo e impactante trabalho com os Hupda do alto Rio Negro, são incontornáveis para qualquer um que tenha interesse no tema. Os relatos que mais me impactaram foram aqueles em que as fronteiras entre o conhecimento dos indígenas e o seu se mesclavam e se potencializavam no trabalho de campo. O “trotskista”, como foi chamado certa vez por Nelson Jobim, tinha o dom da palavra, e nos deixou um belo opúsculo sobre as agruras e delícias de “entrar no mato” com os indígenas.
Contudo, todos esses livros – com a exceção da monografia de Santos – em que pese sua qualidade, não são frutos de pesquisas acadêmicas em sentido estrito. Tenho pensado que é chegada a hora de avançarmos no conhecimento sobre os burocratas de nível de selva. É preciso construir um robusto programa de pesquisa que busque investigar mais a fundo as complexidades inerentes ao exercício profissional do/da indigenista. Sonho, por exemplo, com um survey detalhado a ser aplicado a todos os servidores e a todas as servidoras que possa revelar dimensões inauditas desses sujeitos. Outros desenhos de pesquisa, que lançassem mão de métodos qualitativos e quantitativos seriam, também, muito bem-vindos.
Conhecer os desafios cotidianos enfrentados pelos jungle-level bureaucrats pode ajudar na luta desses servidores por um maior reconhecimento e valorização profissional. Servidores da FUNAI são notoriamente mal remunerados, acumulam muitas funções, passam longos e extenuantes períodos de trabalho de campo longe de suas famílias e trabalham em condições precárias de infraestrutura e segurança. Traçar um perfil mais claro desse grupo poderia dar respaldo a propostas de reforma de carreira calcadas em diagnósticos mais precisos.
Espero que esse texto ajude a despertar, no âmbito da comunidade de cientistas políticos e analistas de políticas públicas, o interesse pelo assunto. Indigenistas continuam trabalhando, cotidianamente, em situações de extrema vulnerabilidade à violência. A morte de um indigenista, como Bruno Pereira, não pode, de modo algum, se repetir. Creio firmemente que o potencial de compromisso ético inerente às ciências humanas e a capacidade transformadora do conhecimento científico podem ser pilares de nossa aproximação, enquanto acadêmicos, dessa atividade tão importante – e tão desconhecida – para o estado brasileiro e seus povos indígenas.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
INA; INESC. Fundação anti-indígena: um retrato da FUNAI sob o governo Bolsonaro. Junho de 2022.
LIPSKY, Michael. Street Level Bureaucracy: Dilemmas of the Individual in Public Services. Russell Sage Foundation, 1980.
LOTTA, Gabriela Spanghero. Implementação de Políticas Públicas: o impacto dos fatores relacionais e organizacionais sobre a atuação dos burocratas de nível de rua no Programa Saúde da Família. Tese de doutorado em ciência política. Universidade de São Paulo, 2010.
MILANEZ, Felipe (Org.). Memórias sertanistas: cem anos de indigenismo no Brasil. Edições SESC São Paulo, 2015.
POZZOBON, Jorge. Vocês, brancos, não têm alma: histórias de fronteira. Belém, EDUFPA: MPEG, 2002.
ROTHER, Larry. Rondon: uma biografia. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Objetiva, 2019.
SANTOS, Helton Soares dos. Análise da distribuição da força de trabalho da Fundação Nacional do Índio. Monografia de conclusão do curso de especialização em gestão Pública. Escola Nacional de Administração Pública, 2018.
[1] Leonardo Barros Soares é mestre e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará. É coordenador do Grupo de Pesquisa POPIAM – Política e Povos Indígenas nas Américas. Contato: leonardo.b.soares@ufv.br.
Fonte Imagética: O indigenista Bruno Pereira (ao centro) vinha sofrendo ameaças por combater invasões a território (Créditos: Bruno Jorge/Funai). Disponível em<https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2022/06/14/o-que-fazem-indigenistas-como-bruno-pereira-desaparecido-na-amazonia.htm>, accesso em 17 ago. 2022.