Ygor Santos de Santana[1]
27 de junho de 2024
Além dos vinte anos do falecimento de Clóvis Moura, 2023 também marcou os dez anos dos protestos de Junho de 2013 e vinte anos da primeira presidência petista. No texto que escrevi para a revista Confluências, teci conexões entre esses eventos, pelo fio do pensamento de Clóvis Moura. Discuto, como resumirei aqui, a contribuição moureana para complexificar as leituras sobre Junho de 2013 e o contexto atual, ao repor a centralidade da questão racial na formação econômica, política, social e histórica brasileira. Exploro a hipótese da limitação constitutiva nas análises sobre Junho de 2013, que não consideram o papel estruturante do racismo na formação social brasileira e, mais de perto, no acirramento dos conflitos que culminaram nos protestos de massa daquele ano. Para isso, mobilizo os conceitos moureanos de quilombagem e grupos diferenciados e específicos, como chaves interpretativas críticas de dados socioeconômicos do período de Junho de 2013 e das leituras que se fazem sobre os protestos. Concluo, então, que Junho de 2013 manifestou os limites de um projeto liberal de esquerda restrito a renegociar os mecanismos de barragem racial, nunca os superar, e que, dez anos depois, é retomado, ignorando as contradições que ali explodiram e que voltam a se avolumar.
Primeiras palavras
Assim, o texto já mencionado propôs conectar 2003, 2013 e 2023. Tratou-se de pensar o que foi Junho de 2013 e o que será, ou o que poderá ser dele, dez anos depois. O que foi, em dois âmbitos. De um lado, quais as contradições que se acirraram na sua iminência; de outro, como elas manifestam e conectam-se a elementos estruturantes do capitalismo dependente brasileiro, em sua materialidade racista e colonial. Mais de perto, interessa-me discutir como o pensamento de Clóvis Moura ajuda a produzir uma interpretação sobre Junho de 2013 que, de um lado, reposiciona os eventos que levaram à sua emergência e ao seu declínio, bem como, de outro, ajuda a pensar e disputar os rumos da rebelião popular em 2023, dez anos após junho e no início de um novo governo Lula, que abertamente se esforça em reeditar o pacto de conciliação de classes, agora, com o tempero venenoso da austeridade fiscal, além da ampliação das privatizações e a continuação inquestionada – ao menos, jamais efetivamente – do genocídio da população negra, pilar estruturante da formação econômica, política e social brasileira.
Alinho-me, nesse sentido, às perspectivas que interpretam os eventos de Junho de 2013 como protestos que, se iniciados desde uma demanda específica – a carestia e a precariedade do transporte público e dos serviços públicos em geral – rapidamente dinamizam-se em direção a uma desidentificação mais ampla em relação à estrutura política-institucional posta e que, então, passa a ser disputada à esquerda e à direita, saindo esta última vitoriosa, diante das limitações constitutivas da perspectiva liberal de esquerda, encabeçada pelo PT, que se sobressaiu durante os eventos. Alinho-me, portanto, à perspectiva da própria presidenta Dilma Rousseff, que, dez anos depois, reanalisou os eventos e assinalou os limites das respostas do governo petista que liderava, o qual jamais enfrentou “[…] um problema crônico, até hoje não resolvido: o baixo grau de educação política, organização e mobilização das forças populares” (Rousseff, 2023, p. 8).
Ainda, aproximo-me de perspectivas como a de Altman (2023) e Safatle (2023), que retomam as contradições materiais da luta de classes e os limites do conciliacionismo petista, para compreender as causas e os efeitos de Junho de 2013. Contudo, proponho um diálogo crítico com Clóvis Moura (2019; 2021), a fim de explorar a hipótese de que, mesmo aí, escapa um aspecto fundamental na compreensão teórico-política brasileira, capaz de complexificar suas interpretações: o sujeito político fundamental do Brasil é o negro. O racismo é elemento constitutivo da estrutura de classes brasileira. Portanto, a rebelião negra é elemento indispensável à compreensão desses eventos. Ademais, junto com Jones Manoel (2023 ), oponho-me às perspectivas que leem Junho de 2013 como mera manifestação de guerra híbrida, por ignorarem a agência política da classe trabalhadora brasileira e que a ação imperialista é elemento estruturante da luta de classes latino-americana – e nos demais países colonizados[2].
Quilombagem, grupos diferenciados e específicos: pistas de Clóvis Moura para pensar o dinamismo político da rebelião negra brasileira
Os conceitos de quilombagem e de grupos diferenciados e específicos, elaborados por Clóvis Moura, ajudam-nos a compreender por que é o negro o sujeito político fundamental da formação social brasileira e o papel de sua rebelião na dinamização da luta de classes no país. Além disso, ajudam a entender a limitação constitutiva de interpretações sobre a emergência, o declínio e o que resta de Junho de 2013 que desconsiderem a centralidade do racismo e a rebelião negra.
Nesse sentido, a quilombagem refere-se ao movimento histórico contínuo de rebeldia que os próprios escravizados organizaram e lideraram, ao longo de toda a duração do modo de produção escravista e por todo o território nacional (Moura, 1992; 2019; 2020b). “[O] quilombo foi a unidade básica de resistência do escravo” (Moura, 2020a, p. 25), seja por sua proliferação incessante, seja porque os quilombos materializavam uma negação radical social, econômica, política, cultural e, inclusive, ontológica do escravismo. Ao mesmo tempo, materializavam um espaço outro em que todos esses aspectos eram reorganizados por uma lógica totalmente outra, em que a cor da pele não era utilizada como marca de um processo de hierarquização subjetiva e social, nem a produção era apropriada inteiramente por um pequeno grupo de senhores e orientada para abastecer centros de poder externos. Assim, os negros rebelados constituíram uma força de desgaste permanente daquele modo de produção, dinamizando as forças sociais no sentido de sua destruição e da implementação do trabalho livre. É uma negação radical ao escravismo, como a revolta organizada, caso das Revoltas dos Malês na Bahia, entre 1807 e 1835, e a guerrilha quilombola, praticada com grande êxito em Sergipe.
Além disso, Clóvis Moura (2019; 2021) retoma os conceitos marxianos de classe em si e classe para si e desenvolve os de grupos diferenciados e grupos específicos, que se articulam a eles e os aprofundam. Grupos diferenciados são aqueles que, em uma sociedade de classes, além de explorados economicamente, são diferenciados por outros, a partir de uma marca que possuam, transformada pelas classes dominantes em sinal de uma posição diferenciada, de aceitação ou rejeição, segundo os seus valores. Por sua vez, a noção de grupos específicos desloca a abordagem para a perspectiva do próprio grupo, que passa a reconhecer o processo de diferenciação a que está submetido e o conjunto de características – físicas, culturais, religiosas – que compõem a marca definida como elemento diferenciador pelas classes dominantes. O grupo, então, reconhece a sua própria especificidade, que deixa de ser apenas utilizada como elemento diferenciador por outros, para ser reivindicada pelo próprio grupo, que elabora valores parciais para reafirmá-la positivamente, seja pela criação de valores, seja pela rearticulação de passados.
Nas sociedades de capitalismo dependente, fundadas pelo colonialismo escravista, esse processo é intrínseco à formação de sua classe trabalhadora, que será composta por grupos que, além de expropriados dos meios de produção e da riqueza socialmente produzida, serão rotulados como diferentes, segundo os sentidos dominantes de positivo e negativo produzidos e circulados pelas classes dominantes, que elaboram múltiplos mecanismos de barragem contra esses grupos, de modo a impedir a sua participação no mercado de trabalho e, mais ainda, a sua mobilidade vertical coletiva. Tal é a posição do negro na sociedade brasileira, que se deparou, desde o escravismo, com uma tentativa de não apenas explorá-lo, mas de destruir os seus padrões culturais africanos, a fim de destruir completamente a sua humanidade.
Por conta disso, como aponta Clóvis Moura (2019; 2021), a população negra brasileira tem se organizado, desde os navios negreiros, para rearticular os seus padrões culturais, recuperando valores de África e criando novos, para reivindicar a sua condição humana. Assim, “os grupos sociais específicos negros foram criados pelos escravos durante todo o transcurso do regime escravista, e pelo negro livre após a abolição até os nossos dias” (Moura, 2021, p. 265). Durante o escravismo, mesmo quando não fugiam, as pessoas negras organizavam diversos tipos de grupos, religiosos ou de lazer, como as irmandades e confrarias, para suportar a brutalidade do sistema escravista e reivindicar a sua humanidade, a partir de seus valores culturais específicos.
Esses grupos específicos existem em uma relação dialética sempre tensa com a sociedade circundante, em uma contradição que se acirra à medida em que esses grupos se encaminhem para questionar as contradições fundamentais de nossa formação econômica, política e social. As classes dominantes, então, por diversos meios, procuram disputar os rumos desses grupos, no sentido de desmantelar o seu potencial de radicalização. Desenvolvo um pouco mais esse ponto no artigo completo.
Junho de 2013 e os limites do liberalismo de esquerda
Os debates sobre os sentidos de Junho de 2013 nunca cessaram realmente e têm se reacendido no seu aniversário de dez anos, com a necessidade de pensar as contradições que explodiram naqueles protestos massivos, os erros do campo da esquerda liberal, que ocupava o governo, na sua condução, bem como os seus efeitos, o que resta daquelas contradições e quais rumos elas podem tomar hoje, dez anos depois. Retomarei alguns elementos analíticos, especialmente aqueles que privilegiam a dinâmica da luta de classes e os limites da proposta petista de conciliação de classes, sua incapacidade de dinamizá-los na direção da radicalidade.
Altman (2023) aponta que a massificação dos protestos surpreendeu estudiosos e, também, militantes que deles participaram. Apoia-se nos dados do IBGE que registravam, naquele momento, o crescimento do PIB, a queda do desemprego, o controle da inflação e o crescimento da renda média da população ocupada, de tal sorte que considera equivocado entender Junho de 2013 como deterioração das condições de vida da classe trabalhadora, embora aponte os índices que revelavam a queda da participação da indústria no PIB, em um processo de desindustrialização que implicou a transferência da geração de empregos para a construção civil, o comércio e os serviços, onde tendencialmente há menores salários e maior precarização do trabalho.
Para o autor, o modelo de conciliação de classes petista produziu uma sensação de desamparo nas classes médias, que se viram comprimidas por uma carga tributária elevada, da qual não percebiam benefícios diretos, uma vez que, de um lado, não se beneficiavam das políticas de redistribuição de renda, voltadas aos mais pobres, e, de outro, viam as taxas de lucro da burguesia elevarem-se, sem que isso implicasse qualquer melhoria nas suas vidas. Ao contrário, eram confrontadas por um aumento da inflação, com uma elevação do Índice de preços ao consumidor amplo (IPCA) de 26,44% entre 2010 e 2013 e os alugueis tendo subido 45,54%. Dentre outros dados, o autor aponta a elevação do preço do trabalho de empregadas domésticas em 56,18%. Em sua leitura, à percepção de desamparo econômico articulava-se um pânico social matizado pelo racismo, provocado pela sensação de perda da exclusividade de acesso a determinados espaços, como universidades e aeroportos, nos quais pessoas negras passaram a transitar, assim como pela maior dificuldade de contratar o trabalho doméstico, “pilar existencial das camadas médias” (Altman, 2023, p. 95).
Contudo, adverte Safatle (2023, p. 103) que “[…] as narrativas que procuram vincular 2013 a uma sedição das classes médias não se sustenta (sic). Classe média não faz nem lidera greve. Essas foram greves de setores espoliados e que entenderam que o projeto de ascensão social do lulismo havia se esgotado”. 2013, aliás, foi o ano com o maior número de greves desde o fim da ditadura empresarial-militar – início da série histórica –, sendo o ápice de uma crescente desde 2010. Um elemento que as particulariza é que frequentemente eram organizadas de forma autônoma em relação aos sindicatos das categorias, como nas greves dos garis e dos bombeiros, já no início de 2013. Isto apontava para um sintoma de desidentificação entre os trabalhadores, que desejavam expor sua indignação e sua precariedade, e suas estruturas de “representação”, que eram vistas como aliadas de um governo limitado a gerir a paralisia social.
A classe trabalhadora viu-se diante de um horizonte limitado a preservar e gerir a pobreza relativa. É dizer, a governamentalidade petista tem um de seus elementos constitutivos na redução da miséria absoluta, mas articulada à manutenção de um nível de sofrimento social, à medida em que, se por um lado, as pessoas saíam da extrema pobreza, ainda permaneciam distantes dos padrões de realização material, que se encareciam com o crescimento econômico e, consequentemente, permaneciam inacessíveis pela ampla maioria da classe trabalhadora. Um elemento que ajuda a visualizar essa manutenção da pobreza relativa é o dado de que 93% dos empregos criados durante a década de 2003 a 2013 tinha a remuneração de apenas até um salário mínimo e meio; em 2014, 97,5% dos empregos criados caíam nessa faixa. Assim, a gestão petista reduzia a miséria absoluta, mas mantinha a pobreza relativa e produzia o sofrimento social, com a impossibilidade de realização dos padrões de desejos e a precariedade dos empregos criados.
Safatle (2023) conecta Junho de 2013 a uma sequência insurrecional mundial iniciada na periferia do sistema-mundo capitalista[3] e que se volta contra um padrão de governamentalidade que amplia a pobreza e a acumulação capitalista, ao mesmo tempo em que nega qualquer horizonte político para além dos limites da democracia liberal e da manutenção da pobreza relativa, com alguns programas sociais, mas sem qualquer possibilidade de transformação social, econômica e política. Por essa razão, a negação da conexão entre esses levantes é um elemento fundamental para essa governamentalidade neoliberal, de modo a apresentá-los como movimentos sem sentido político. Foi o que se viu nas respostas dos governos petistas a Junho de 2013, tanto na cidade de São Paulo, com Fernando Haddad, quanto a nível federal, com a presidenta Dilma Rousseff, que faz profundo balanço sobre os limites dessas respostas (Rousseff, 2023). Também aprofundo esses elementos no texto completo.
Pensar Junho de 2013 com Clóvis Moura
Clóvis Moura (2019; 2020b; 2021) e Lélia Gonzalez (2018) ajudam a aprofundar a compreensão do pânico social da classe média apontado por Altman (2023). Retomo aqui o que apontei na primeira seção: a estruturação do capitalismo brasileiro remonta não apenas à acumulação de riqueza produzida ao longo de quase 400 anos de escravidão que lhe precedem, mas na absoluta negação da participação da população negra escravizada nessa riqueza que ela mesma produzia e na articulação de uma série de mecanismos de barragem racial contra o negro no mercado de trabalho livre. É dizer, a nascente burguesia agiu para produzir um trabalhador branco europeu. O negro passou a ser identificado como imprestável para o trabalho livre e, em uma inversão perversa, culpabilizado pelo subdesenvolvimento do país. O atraso tecnológico do país foi jogado sobre as costas marcadas da população negra, rotulada como inadequada para técnicas de produção mais avançadas, não sobre o modo de produção que a transformou em objeto descartável, em que era preferível traficar pessoas a investir em aprimoramento produtivo.
Nesse quadro, a população negra historicamente foi marginalizada e relegada à posição de massa marginal, dificilmente incorporada ao mercado de trabalho livre e qualificado, obrigada a suportar as formas mais degradantes de sobrevivência, juntamente com a perseguição policial constante. Consequentemente, ao considerar-se o papel estruturante que o racismo desempenha na formação dos grupos que compõem a classe média, entendida como aquela plenamente integrada ao mercado de trabalho livre, é possível inferir que o pânico de não poder contratar uma empregada doméstica resulta da desestabilização do componente de classe, raça e gênero que compõem o sentido de ser classe média. Afinal, a transformação em mercadoria das pessoas negras, e particularmente da mulher negra, fez com que se naturalizasse a sua subordinação ao cuidado mal remunerado de famílias brancas de classe média (Gonzalez, 2018; Moura, 2019; 2020b; 2021).
Ao lado do ressentimento de classe, é preciso considerar a frustração das expectativas de uma geração de jovens, majoritariamente negros e pobres, que se, por um lado, saiu da miséria absoluta, continuou marginalizada, com empregos inferiores à sua qualificação e baixos salários, como discuto mais amplamente no artigo. Safatle (2023) aprofunda a interpretação desse elemento, ao apontar nele um sintoma da gestão do imobilismo social que caracteriza a governamentalidade neoliberal. Ainda quando realizado por partidos da esquerda liberal, o horizonte político posto é o de alguma melhoria social, mas nunca a superação da marginalização.
Desde Clóvis Moura, também se compreende Junho de 2013 como parte não apenas das revoltas da periferia capitalista do século XXI, como aponta Safatle (2023). Ampliando essa interpretação importante, há que se notar que o negro brasileiro, ao longo de toda a sua trajetória, tem se rebelado contra os modos de produção que o exploram e o oprimem. É dizer, para além do contexto global, Junho de 2013 localiza-se em uma longa trajetória nacional de revoltas, que buscam destruir o imobilismo social – que, mais recentemente, passou a ser gerido por uma força liberal de esquerda.
Ademais, a rebelião negra brasileira liga, também, reconfiguração micropolítica e desidentificação macroestrutural. No caso da quilombagem, a passagem do escravizado ao estágio do quilombola é desencadeada por demandas diretamente ligadas à negação da transformação de seus corpos em mercadorias ao mesmo tempo em que socializava sua revolta, materializada no quilombo, não para buscar ser atendido pelas estruturas de poder vigentes, mas para reivindicar sua humanidade fora e contra elas, ao entender que, nelas, jamais poderia ser considerado humano.
Além disso, a intermitência dialética entre diferenciação e especificação ajuda a compreender os rumos que tomou Junho de 2013. Nessa linha, a entrada de movimentos ideológicos conservadores na disputa dos sentidos de Junho de 2013 (Altman, 2023; Monteiro, 2023; Rousseff, 2023; Safatle, 2023) pode ser lida como uma tática de branqueamento do movimento. Tratou-se de afastá-lo do desafio ao imobilismo social e à lógica de guerra a que está submetida a classe trabalhadora e reduzi-lo a um clamor genérico e moralizante contra a corrupção, identificada ao PT, para reafirmar pautas neoliberais, que reforçariam a mesma governamentalidade imobilizante e violenta.
Reconheço que Junho de 2013 não era composto por um grupo unitário, estável, nem tampouco um protesto liderado exclusivamente pela população negra. A leitura da tentativa de branqueá-lo, de fazê-lo degenerar ideologicamente, porém, parece-me válida, quando se considera que o branqueamento, como trabalhado por Clóvis Moura (2019; 2021), concerne à penetração dos valores dominantes no seio de grupos e movimentos que poderiam romper com o sistema de poder imposto. No caso do Brasil, a classe dominante – e os seus valores – pretende-se branca, daí branqueamento. Ademais, quando se leva em conta que as pautas dos transportes, da saúde, da educação, da moradia, além das lutas contra a guerra às drogas, o encarceramento em massa e a violência policial, atingem, sobretudo, a população proletarizada, que tem seus estratos mais subalternizados compostos majoritariamente por pessoas negras, compreende-se que a possibilidade de transformação manifesta em Junho de 2013 é indissociavelmente uma transformação das relações raciais deste país.
Palavras finais, ou um convite à leitura
20 anos depois de nos deixar, Clóvis Moura segue indispensável para pensar a história e as lutas sociais brasileiras, não apenas em sua longa duração histórica, mas, também, em seu acontecimento presente. Seu pensamento arma-nos para pensar como as contradições de Junho de 2013 são expressões da formação social, econômica e política do capitalismo dependente e racista deste país, assentado na acumulação obtida ao longo de quase 400 anos de escravismo e de uma articulação perversamente complexa entre exploração econômica e processos de diferenciação, desde a qual produzem-se os sentidos do ideal de ser humano, e, por conseguinte, apresentam como natural a marginalização da população negra, rotulada como o oposto desse ideal e, como tal, destinada às mais brutais formas de exploração e opressão. É ela o sujeito fundamental da classe trabalhadora e, sabendo disso, as classes dominantes preocuparam-se em branquear, degenerar ideologicamente as possíveis rupturas que Junho de 2013 assinalou. Ele ajuda-nos a entender como, dez anos depois, a esquerda liberal insiste em desmantelar a luta política, aprofundando as condições que marginalizam e matam a classe trabalhadora, fundamentalmente negra. Clóvis Moura ajuda-nos a entender o risco de explosão de uma nova rebelião de massas e de um novo branqueamento.
Além de original, o pensamento moureano é generoso, ao continuar fundamental para uma práxis radical. 20 anos após a sua partida, ainda não se insistiu o suficiente: sem Clóvis Moura, não há como pensar o Brasil.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
Referências bibliográficas
ALTMAN, Breno. Ruas em transe: a insurgência das camadas médias contra o petismo. In: ALTMAN, Breno; CARLOTTO, Maria. Junho de 2013: a rebelião fantasma. São Paulo: Boitempo, 2023. p. 84-95.
BRASIL. Decreto 11.498: altera o Decreto nº 8.874, de 11 de outubro de 2016, para dispor sobre incentivo ao financiamento de projetos de infraestrutura com benefícios ambientais e sociais. Brasília, 2023.
GONZALEZ, Lélia. Primavera para rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.MANOEL, Jones. Junho de 2013 e a guerra híbrida: o leninismo contra a idealização da conspiração. In: ALTMAN, Breno; CARLOTTO, Maria. Junho de 2013: a rebelião fantasma. São Paulo: Boitempo, 2023. p. 61-71.MONTEIRO, Lucas. A premência do transporte. In: ALTMAN, Breno; CARLOTTO, Maria. Junho de 2013: a rebelião fantasma. São Paulo: Boitempo, 2023. p. 27-35.
MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992.
MOURA, Clóvis. O negro, de bom escravo a mau cidadão?. 2. ed. São Paulo: Dandara, 2021.
MOURA, Clóvis. Quilombos: resistência ao escravismo. São Paulo: Expressão Popular, 2020a.
MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. 6. ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020b.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019. (Palavras negras).
ROUSSEFF, Dilma. Prólogo. In: ALTMAN, Breno; CARLOTTO, Maria. Junho de 2013: a rebelião fantasma. São Paulo: Boitempo, 2023. p. 7-9.
SAFATLE, Vladimir. O dia no qual o Brasil parou por dez anos. In: ALTMAN, Breno; CARLOTTO, Maria. Junho de 2013: a rebelião fantasma. São Paulo: Boitempo, 2023. p. 97-110.
[1] Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (PPGD/UnB), com bolsa do Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROEX/CAPES). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Graduado pela mesma instituição. Realiza pesquisa sobre movimentos sociais e violência de Estado. Tem interesse especial nos estudos dos movimentos sociais, da criminologia, do abolicionismo penal, do pensamento anticolonial, da biopolítica e dos estudos queer, com foco em questões de gênero, raça e classe. E-mail: yssantana76@gmail.com
[2] Recomendo fortemente a leitura dos artigos de Jones Manoel (2023), Vladimir Safatle (2023) e Breno Altman (2023) que desenvolvem as insuficiências dessa perspectiva. Uma crítica desde a obra de Clóvis Moura ainda está por ser articulada, mas acredito que todo o seu percurso intelectual ajuda a perceber que a ação imperialista é elemento inseparável da formação social dos países colonizados. Especialmente, indico a leitura de História do negro brasileiro, Sociologia do negro brasileiro e Rebeliões da Senzala (Moura, 1992; 2019; 2020b).
[3] “Occupy, Plaza del Sol, Istambul, Brasil, França (gilets jaunes), Tel-Aviv, Santiago: esses são apenas alguns dos lugares nos quais esse processo se instalou” (Safatle, 2023, p. 102).
Fonte imagética: Centro de Documentação e Memória/Unesp. Vinte anos sem Clóvis Moura, estudioso da questão racial. 6 nov. 2023. Disponível em: <https://www.cedem.unesp.br/#!/noticia/637/vinte-anos-sem-clovis-moura-estudioso-da-questao-racial>. Acesso em: 8 abril 2024.