Silvia Vitorassi1
27 de março de 2024
Este texto é uma amostra da minha pesquisa de doutorado em andamento na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). O Escola Sem Partido (ESP) foi criado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, mas não tomou grande destaque até 2014. O movimento já foi objeto de diversos estudos e não é necessariamente novo em muitos campos do conhecimento, exatamente pela relevância do debate que propõe. Afinal, os estudos a respeito desta temática passam pelo seu caráter fundamentalista, tecnicista, gerencialista – neste caso pelo pressuposto da iniciativa privada em assumir e controlar serviços públicos – e conservador, contribuindo muito para pensarmos a educação e a sua dimensão em diversos ambientes, sejam eles midiáticos, familiares, religiosos ou políticos.
Passei a coletar as minhas fontes no acervo FOLHA2 e consegui reunir mais de 100 editoriais, matérias e textos de colunistas que falavam sobre Escola Sem Partido, doutrinação, perseguição a professores e caminhos para a educação, entre os anos de 2013 e 2020, considerando pontos de efervescência política e um crescimento do conservadorismo de forma “mais explícita”, começando com as Jornadas de Junho de 2013, passando pela conturbada campanha eleitoral de 2014, o processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, a campanha eleitoral de 2018 e a ascensão do bolsonarismo, que impulsionou o ESP.
Doutrinação virou palavra de ordem para a direita nos últimos anos. Uma “ordem” construída em cima da lógica colonialista que há muito se enraizou neste país, uma “ordem” que tem cor, gênero e religião, ressurgindo em 2013 e avançando rapidamente rumo às eleições para a presidência do Brasil em 2018. Refletir sobre doutrinação vai além de pensar a educação, pois toca nos nossos mais profundos problemas sociais.
O negacionismo científico tem promovido grandes retrocessos no debate público e a ascensão de um discurso autoritário e teocrático vêm assustando quem está minimamente preocupado com a democracia brasileira: esse é o resultado de uma combinação de fatores que a nova direita e o bolsonarismo nos trouxeram e, a meu ver, é o discurso doutrinário sobre a educação que vai permitir chegarmos ao atual cenário da educação no Brasil. Analisar os caminhos percorridos pela Folha de S. Paulo neste processo é essencial para compreender dois pontos: 1. Pensar o jornalismo dito “apartidário” da Folha, lançando um olhar sobre sua postura editorial; e 2. A mudança de discurso a respeito da doutrinação na educação quando passam a ser alvo do discurso de ódio difundido pelo bolsonarismo.
Por isso é importante desconstruir qualquer discurso associado à ideia de doutrinação, recentemente movido por grupos que pretendem evitar que a escola seja um desafio aberto e crítico às capacidades e possibilidades de seus integrantes. Mas precisamos também entender como este conceito foi construído e se associou aos discursos de tendência mais conservadora, passando a ser divulgado massivamente na mídia.
De acordo com Tiziano Bonazzi (Bonazzi, 1998) o termo conservadorismo surge dentro do processo de laicização europeu no século XVIII a partir das ideias de Edmund Burke, filósofo e crítico da ideologia da Revolução Francesa. Para Burke, resumidamente, a sociedade deveria se adaptar ao processo de mundanização da vida sem se afastar do ideal moral, o qual estaria ligado a um sistema universal de valores. Neste contexto histórico, o conservadorismo surge como uma alternativa ao progressismo e os dois termos passam a figurar nas teorias políticas. Já o advogado Silvio Luiz de Almeida difere o conservadorismo clássico do neoconservadorismo:
As origens do conservadorismo clássico podem ser encontradas no século XVIII, com destaque para as obras de Edmund Burke, Joseph de Maistre e Louis de Bonald. Esses autores têm em comum essencialmente a defesa de valores e instituições tradicionais diante da ameaça trazida pelas revoluções liberais – no caso, as revoluções americana e francesa. (ALMEIDA, 2018, p.27)
Já o neoconservadorismo estrutura-se como reação ao Welfare State [Estado de bem-estar social], à contracultura e à nova esquerda, fenômenos atrelados ao pós-Segunda Guerra Mundial e ao advento do regime de acumulação fordista. Para os neoconservadores, a crise econômica que atingiu o capitalismo no final dos anos 1960 era antes de tudo uma crise moral, ocasionada pelo abandono dos valores tradicionais que governam a sociedade desde os primórdios da civilização, feito em nome de um igualitarismo artificialmente criado pela intervenção estatal. (ALMEIDA, 2018, p. 28)
Entre pesquisadores que se debruçam no estudo do Escola Sem Partido, Fernando de Araújo Penna3 figura nos debates atuais e nas produções mais recentes a respeito. Em uma entrevista concedida no ano de 2020, publicada na Revista Tempo e Argumento, o professor falou sobre os estudos em torno do ESP:
[…] nós estamos construindo um objeto de pesquisa. Antes de 2015, pelo menos em levantamentos que tenho feito, não encontrei artigos acadêmicos discutindo sobre o Escola Sem Partido, era algo que não se constituía enquanto um objeto do nosso campo, apesar de ser um movimento que já tinha surgido em 2004 (Penna; Vitorassi, 2021, p. 9).
Nessa entrevista, Penna falou sobre sua experiência pessoal no combate ao ESP, as dificuldades do campo e da análise das fontes, bem como o impacto nas salas de aula e no dia a dia de professoras e professores que se autocensuram por falta de apoio. Além disso, falou também sobre a atuação do grupo nas redes sociais, aproveitando-se da ascensão conservadora recente. De acordo com Meneses (2008), o fim do século XX trouxe uma consciência histórica difusa, modificando percepções de tempo e espaço, e neste contexto os recursos midiáticos proporcionaram uma “espetacularização do acontecimento”.
Utilizando-se do trabalho de Jurgen Habermas (2003), Meneses afirma que desde os séculos XVII e XVIII aconteceu, junto de uma acelerada produção de impressos e um número maior de pessoas em eventos públicos, a sistematização de uma opinião pública4 estabelecendo uma comunicação em larga escala e, consequentemente, formando opiniões. A partir deste momento a informação como mercadoria tornar-se-ia uma prática comum.
Educação, doutrina e ideologia
Para compreendermos como o debate sobre doutrinação ganha espaço e vai se transformando na Folha de S. Paulo, é necessário realizar uma análise do percurso narrativo do periódico a respeito do tema. O critério de escolha dos textos foi um só: os que traziam a noção de doutrinação atrelada ao marxismo ou à esquerda, fossem eles defensores da suposta doutrinação ou contrários a esta noção.
O que pude perceber ao iniciar a análise é bastante significativo: o fato de que, no período 2013-2018, a escolha de colunistas que atacavam a suposta “doutrinação marxista” nas escolas e universidades, bem como os que se consideravam partidários do movimento Escola Sem Partido foi muito maior do que no período 2019-2020; o que fica mais evidente aqui é o mês de novembro de 2018, que sugere uma “virada de chave” na postura narrativa da Folha. Não à toa novembro, pois é no final de outubro do mesmo ano que a nova direita consagra seu favoritismo nas urnas com a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil no mandato 2019-2022.
A primeira matéria que encontrei no acervo Folha que falava sobre doutrinação marxista é de outubro de 2013, escrita pela pecuarista Katia Abreu, ex-Ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento no segundo governo de Dilma Rousseff (2015-2016). O texto versa sobre a predominância do marxismo nas universidades e como são “as únicas ferramentas conceituais aceitas nas instituições”. No mesmo texto, Abreu discorre sobre como essa predominância colocaria o produtor rural como “explorador” e como a “causa ambiental foi absorvida pelo marxismo cultural”, descontextualizando a defesa e as causas do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), além de apontar autores de livros didáticos como “opinativos” quando defendem que o Brasil tem “abundância produtiva e fome generalizada” e que a questão fundiária estaria sendo distorcida, apesar de não apontar em seu texto fatos que demonstrem o suposto “equívoco” dos autores.
A seguir destaco a publicação de Guilherme Boulos na Folha em outubro de 2014 sobre o resultado eleitoral daquele ano. Nele, afirma que o recente período democrático brasileiro “não viu um Congresso tão atrasado” quanto o que havia sido eleito, mais um sintoma da tal “onda conservadora”. Isso pôde ser percebido com as críticas à “predominância de esquerda” no ENEM, tanto na edição de 2014 quanto na de 2015. Em ambos os casos, políticos conservadores como Jair Bolsonaro e o pastor Marco Feliciano, reeleitos no pleito de 2014, se posicionaram denunciando o desequilíbrio das questões do exame, argumentando que textos e ideias de autores “não marxistas” não aparecem.
Em 2015, mesmo ano em que o PL 867/20155 foi protocolado pelo deputado federal Izalci Lucas (PSDB/DF), foi publicada matéria6 a respeito de críticas ao conteúdo da redação do exame nacional que, ao trazer o trecho de um texto da filósofa feminista Simone de Beauvoir e tratar sobre o tema A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira, gerou grande repercussão nas redes sociais. A matéria tem um tom alinhado à ideia que de fato seria uma abordagem ideológica, ao apontar que “candidatos do ENEM que não conhecem Simone de Beauvoir devem se preocupar” (SANT’ANA, 2015, f. B8).
Em uma outra publicação, de setembro de 20167, o lema “Escola Sem Mordaça”8 serviu como título de um texto do economista Gustavo Ioschpe. Porém, ao ser utilizado como recurso narrativo e apresentado de forma irônica, o autor demonstrou sua posição favorável ao ESP ao longo do texto. Mobilizando um lema de oposição ao ESP no título, o conteúdo em si põe em xeque essa postura ao abrir o diálogo com o leitor dizendo que existe uma “problemática” na ideia de querer “formar cidadãos conscientes” e não em querer “transferir conhecimento”.
Esse tipo de publicação vai estar presente nas páginas da Folha ao longo dos anos seguintes, mas, em níveis menores, o ponto de vista oposto começa a surgir também, demonstrando que os opositores ao ESP começaram a enxergar naquele movimento um problema real, levando em consideração todo o aparato político e religioso por trás da questão.
Textos como os citados anteriormente, e que eram frequentes na Folha antes do período eleitoral de 2018, demonstram uma postura que reafirma a intimidação aos professores, que não debate a tal “doutrinação” sob outras perspectivas, como a religiosa por exemplo, e que se alinham à onda conservadora já citada. Nesse viés, vemos de forma recorrente jornalistas, economistas e administradores escrevendo sob um ponto de vista marcadamente liberal e alinhado aos anseios de uma classe média, mas pouco vemos espaço para diretores/as de escolas, professores/as de ensino fundamental e médio, pedagogos/as e até mesmo historiadores/as a mostrarem a realidade do processo de ensino escolar no Brasil.
Os anos de 2017 e 2018 foram marcados por perseguição e extremismo, resultado da ascensão do ESP e da campanha política à presidência respectivamente. Os textos publicados neste período trazem temas como: a intolerância nas universidades, xingamentos direcionados à Editora de um dos selos do jornal por publicar um livro com o tema do comunismo e o debate sobre o retorno de disciplinas da Ditadura Militar como EMC (Educação Moral e Cívica) e OSPB (Organização Social e Política do Brasil). É neste momento que os textos publicados mudam: a escolha dos colunistas e jornalistas, a preocupação em trazer outros pontos de vista e principalmente mais pessoas que se posicionam contrárias ao ESP demonstra uma mudança de postura.
Ao fim do ano de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, há mais espaço nas páginas da Folha a textos críticos ao ESP. Ainda em novembro daquele ano foram três textos publicados que criticavam a ideia de “doutrinação marxista”. Questionamentos como “há doutrinação nas salas de aula?” e “como há doutrinação se elegeram em peso candidatos de direita?” tornaram-se mais frequentes e convidavam o leitor a refletir sobre os motivos que impulsionavam a perseguição. Em 2016 o ESP vivia seu auge, alimentado principalmente pela crise política que ascendia no Brasil e tencionando temáticas importantes para o desenvolvimento de um ensino crítico e plural.
Inspirado no discurso do ESP e aproveitando para introduzir a pauta religiosa neste debate, a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro explicitou o interesse em alterar a configuração do ensino no país, seja pela intenção em militarizar as escolas, seja por introduzir o “Programa Escola Sem Partido” – este mesmo que se diz 100% sem partido mas se aliou aos grupos políticos mais extremados em uma “caça às bruxas” tendo como alvo professores/as.
Como este estudo está em andamento, ainda não é possível traçar grandes rotas para pensarmos os problemas e desafios diante do que foi apresentado. O fato é que o campo conservador, que inclui a bancada BBB no Congresso – do Boi, da Bíblia e da Bala – solidificou seu discurso a partir do projeto do ESP, da fragilização social frente à crise econômica (que atingiu não só o Brasil) e do esgotamento da população frente às lideranças progressistas, impulsionando uma descrença generalizada no sistema político e fazendo emergir um grupo controverso, problemático, reacionário e violento: a nova direita.
A cada novo ataque e escândalo do governo Bolsonaro, bem como os ataques diretos a jornalistas da Folha, os textos passam a conter mais posicionamento e preocupação em relação ao futuro do Brasil a partir de 2019, ou seja, ao fato de que em um regime democrático, a possibilidade de entrar em contato com ideias diversas e plurais nas escolas é um privilégio. Eis a virada.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Neoconservadorismo e liberalismo. In.: O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil / Esther Solano Gallego (organização. 1ª ed. – São Paulo: Boitempo), 2018, p. 27-33.
HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural na esfera pública. São Paulo: Col. Biblioteca do Tempo Universitário, 2003.
BONAZZI, Tiziano. Conservadorismo. BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et al; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1ª ed., 1998.
PENNA, F. de A.; VITORASSI, S. Movimento Escola Sem Partido e a escalada da direita no Brasil: entrevista com Fernando de Araújo Penna. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 13, n. 34, p. e0601, 2021. DOI: 10.5965/2175180313342021e0601. Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180313342021e0601.
MENESES, Sônia. A OPERAÇÃO “MIDIOGRÁFICA”: Lugares, fazeres e problemas na produção do conhecimento midiático. XIII Encontro de História Anpuh-Rio – Identidades, 2008, p. 1-9.
1 Mestra em Ensino de História e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: vitorassi.silvia@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3446-4984. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3514005107352549.
2 O Acervo Folha é a compilação digitalizada do jornal Folha de S. Paulo. Com 1,8 milhão de páginas, abrangendo 90 anos de exemplares publicados sobre o Brasil e o mundo. O serviço foi lançado em fevereiro de 2011.
3 Doutor em Educação pela UFRJ, atualmente é coordenador do Movimento Educação Democrática e líder do grupo de pesquisa “Núcleo de Estudos em Educação Democrática” (NEED) e tem dedicado suas pesquisas recentes aos temas: educação democrática, ensino de história e “escola sem partido”. Para saber mais: http://lattes.cnpq.br/9967596498287478. Acesso em: 18 fev. 2024.
4 A opinião pública é um termo que se forma a partir do debate público em torno da construção do Estado Moderno e de questões políticas. Tem por função permitir aos cidadãos uma participação política eficaz, além de fornecer condições de poder manifestar e debater opiniões sobre questões de interesse geral.
5 O PL apresentado pretendia incluir, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”.
6 Emílio Sant’Ana. Terça-feira, 27 de outubro de 2015. Cotidiano. Fla-Flu do ENEM.
7 Gustavo Ioschpe. Domingo, 04 de setembro de 2016. Ilustríssima. Escola sem mordaça.
8 A “Frente Nacional Escola Sem Mordaça”, foi criada em 2016 em referência à luta contra o Projeto de Lei (PL) 7180/2014, conhecido como “Escola sem Partido”.
Referência Imagética: Agência Brasil. Manifestantes contra o projeto de lei sobre a Escola sem Partido protestam durante reunião da Comissão Especial da Câmara que discute a matéria. 13 nov. 2018. Fotografia de Marcelo Camargo/Agência Brasil. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/foto/2018-11/manifestantes-contra-escola-sem-partido-protestam-na-camara-1581289720#>. Acesso em: 20 fev. 2024.