Raul Bonfim[1]
Vítor Eduardo Veras de Sandes-Freitas[2]
Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apontam que 87% dos deputados federais eleitos em 2018 irão concorrer à reeleição esse ano. Esse percentual representa um aumento de 8% em relação à legislatura anterior. Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, Joyce Luz destaca que entre 1990 e 2018, em média, 64% dos deputados federais que disputaram a reeleição obtiveram sucesso. Segundo a pesquisadora, caso esse padrão se mantenha, existe alta probabilidade de que mais da metade dos assentos da Câmara dos Deputados sejam novamente ocupados por incumbentes.
As eleições gerais de 2022 acontecerão em um contexto particular em relação às anteriores: após a flexibilização das regras orçamentárias – Emendas Constitucionais (ECs) n° 86/2015 e n° 105/2019 – que balizam a elaboração e execução das emendas orçamentárias individuais dos congressistas brasileiros. Se o percentual de reeleitos já tem sido elevado nas últimas eleições, as novas regras orçamentárias poderiam garantir recursos adicionais nas mãos dos deputados federais na disputa contra os desafiantes. Nesse sentido, esse artigo parte deste questionamento: essas mudanças podem impactar na reeleição para a Câmara dos Deputados? O que a Ciência Política tem a dizer sobre esse fenômeno?
O estudo técnico n° 16/2014 realizado pela Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (COFF) da Câmara dos Deputados acerca das percepções de chefes de gabinete parlamentar e de assessores parlamentares sobre a importância política atribuída às emendas individuais, revela que todos os sujeitos da amostra consideram a apresentação e a execução de emendas individuais como uma atividade política fundamental para o mandato parlamentar. Destes, 51% descrevem as emendas individuais como a atividade política mais relevante desse processo. Em consonância com esses achados, parte da Ciência Política brasileira também trata as emendas orçamentárias individuais como elementos centrais para o entendimento do comportamento parlamentar e, consequentemente, como uma variável preditora essencial para explicar o fenômeno da reeleição no Brasil (PEREIRA; MUELLER, 2002, 2003; PEREIRA; RENNÓ, 2001).
O argumento supracitado foi erguido a partir das teorias distributivistas norte-americanas (CAIN; FEREJOHN; FIORINA, 1987; MAYHEW, 2004) e assume, sobretudo, que as regras eleitorais influenciam no padrão de relação estabelecido entre representantes e representados. No caso brasileiro, o pressuposto adotado é o de que a combinação do sistema proporcional com a lista aberta seria responsável por centralizar as campanhas eleitorais na figura dos candidatos (CAREY; SHUGART, 1995), fornecendo incentivos para a construção de vínculos pessoais destes junto ao eleitorado. Uma vez eleitos, a atuação legislativa dos políticos seria dedicada exclusivamente ao atendimento das demandas locais de seus distritos.
Nesse contexto, as emendas orçamentárias individuais – principal forma de intervenção dos deputados federais no direcionamento dos recursos públicos – funcionariam como uma fonte de conexão eleitoral entre os parlamentares e seu eleitorado circunscrito. Por meio desse dispositivo institucional, os deputados federais brasileiros atenderiam os interesses de seus eleitores, direcionando fatias do orçamento federal para as localidades que mais contribuíram com sua votação no pleito eleitoral anterior (PEREIRA; RENNÓ, 2001). Em outras palavras, o orçamento federal viabilizaria suas chances de reeleição (PEREIRA; MUELLER, 2003).
Todavia, ainda que os argumentos acima estejam presentes no dia a dia do noticiário e, paralelamente, sejam preponderantes na academia, eles estão longe de alcançar um consenso empírico. Pesquisas mais recentes têm questionado se de fato as emendas orçamentárias individuais cumprem um papel estratégico na manutenção de distritos eleitorais e, consequentemente, na reeleição dos deputados federais. Mesquita et al., (2014) apontam, por exemplo, que não é possível identificar um padrão durante o processo de destinação desses recursos orçamentários. Os achados dos autores indicam que, ainda que os parlamentares destinem emendas para aquelas localidades que contribuíram com sua votação o pleito eleitoral antecedente, parte significativa dos recursos também são encaminhados para municípios em que obtiveram votação inexpressiva. Além disso, a maior parte do montante orçamentário é destinada para os governos estaduais e não para a administração pública municipal. Por sua vez, Firpo et al., (2015) e Baião e Couto (2017) apontam que apesar de apresentar efeito eleitoral estatisticamente significativo nas localidades em que são executadas, as emendas, sozinhas, são insuficientes para garantir a reeleição dos parlamentares.
Outro ponto que merece destaque são as regras que balizam o processo de elaboração e execução do orçamento federal. Em especial, as normas fixadas pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei Complementar n° 101 de 2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), estabelecem barreiras para o uso eleitoral das emendas individuais pelos deputados federais brasileiros. De forma mais específica, o texto constitucional garante ao Poder Executivo a prerrogativa exclusiva – derivada da ditadura militar – de elaborar e executar o orçamento federal. Isso significa que cabe ao Presidente da República, junto aos Ministros de Estado, determinar o timing de execução dos gastos discricionários da União, o que inclui as emendas orçamentárias individuais.
Paralelamente, a LRF, ao fixar as âncoras fiscais do governo, impôs limites no processo de execução do orçamento federal: sempre o que o resultado fiscal do governo se distancia da meta estabelecida para o exercício financeiro, cabe ao Executivo contingenciar parte dos recursos discricionários da União. Figueiredo e Limongi (2008) afirmam que os recursos provenientes das emendas individuais correspondem a uma das parcelas do orçamento mais afetadas durante o processo de contingenciamento. De acordo com Luz (2016), entre 1996 e 2010, foram executados por legislatura, em média, 20,5% dos valores aprovados para emendas individuais.
Também merece destaque o fato de que a LRF e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) impedem com que municípios inadimplentes com a União tenham acesso às transferências voluntárias do governo federal. A inadimplência em questão refere-se a pagamento de tributos, empréstimos e financiamentos devidos à União, o que envolve cumprir o dever de prestação de contas no tocante a recursos anteriormente recebidos e ao cumprimento dos limites constitucionais de aplicação de recursos em educação e saúde. De acordo com Baião et al. (2018), durante o exercício financeiro de 2014 menos de 20% dos municípios brasileiros conseguiram executar todas as obrigações fiscais e de transparência exigidas pelo Serviço Auxiliar de Informações para Transferências Voluntárias (CAUC). Em suma, as normas orçamentárias determinam uma série de obrigações que impedem com que as emendas individuais sejam utilizadas na arena eleitoral nos moldes propostos pelos autores da teoria distributivista no Brasil, especialmente a partir do início deste século.
Entretanto, vale destacar que nos últimos anos o Congresso Nacional tem promovido um conjunto de alterações nas regras que balizam a aprovação e a execução do orçamento federal que impactam diretamente sobre sua participação nesse instrumento. Duas delas, em especial, são exclusivas às emendas orçamentárias individuais. A primeira refere-se a EC nº 86 de 2015, que estabelece a obrigatoriedade de execução das emendas parlamentares individuais no máximo de até 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) prevista no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) encaminhado pelo Poder Executivo. Metade desses recursos deve ser destinado para a área de saúde.
A segunda alteração compreende a EC n° 105 de 2019, que cria a modalidade de transferências especiais, permitindo aos deputados e senadores encaminhar suas emendas individuais sem a necessidade de vinculação de convênios com os entes beneficiados. Na prática, essa mudança permite que estados e municípios recebam recursos federais sem a necessidade de nenhum tipo de contrapartida ou mesmo de vinculação com a agenda de políticas prioritárias do governo. O efeito imediato das mudanças nas regras orçamentárias foi um aumento significativo no nível de execução das emendas individuais, especialmente a partir de 2016.
Os dados do gráfico 1 apontam que os valores pagos em emendas individuais após a aprovação da EC nº 86/2015 são os maiores da série histórica. É importante notar também que os valores pagos em 2020 e 2021 – dois primeiros anos após a vigência da EC nº 105/2019 – são os maiores de todo o período. Mesmo os valores pagos em 2022, que englobam apenas o período que vai até junho, já são superiores a todo o valor pago durante o exercício financeiro de 2019. Todavia, ainda que esses valores tenham crescido bastante após 2015, eles nunca atingiram 1,2% da RCL líquida do ano anterior. Isso ocorre, especialmente, devido ao fato de que as regras fixadas pela EC nº 86/2015 determinam que as emendas individuais devem deixar de ser executadas em casos de problemas de ordem técnica e seu contingenciamento deve ser proporcional às outras despesas discricionárias.
Bonfim, Luz e Vasquez (2022) apontam que, entre 2015 e 2018, em torno de 24% dos valores aprovados pelos parlamentares para as emendas individuais englobavam emendas com problemas de ordem técnica. Em geral, os principais problemas apresentados correspondiam: (1) a não apresentação de plano de trabalho ou apresentação fora dos prazos previstos e, (2) a não realização de ajustes solicitados em proposta ou plano de trabalho. Em resumo, a execução das emendas não depende apenas da disponibilidade de recursos federais ou mesmo da boa vontade do Poder Executivo, mas também da capacidade técnica dos municípios.
A partir de 2020, no entanto, os parlamentares contornaram esse problema. O Congresso Nacional aprovou a EC nº 105/2019, que criou a modalidade de transferências especiais para as emendas orçamentárias individuais. Com as novas regras, os entes beneficiados não precisam mais apresentar um plano de trabalho para uso dos recursos, além de retirar a necessidade de que as emendas individuais sejam vinculadas às ações orçamentárias do Executivo federal. Com a nova regra, os recursos das emendas podem ser gastos com os programas temáticos das áreas de competência do Poder Executivo do ente federado beneficiado. Em suma, a EC nº 105/2019 permite com que qualquer governo municipal ou estadual – independente da sua capacidade técnica – recebam recursos federais via emendas orçamentárias.
Além de ampliar os recursos pagos, outro efeito imediato da EC nº 105/2019 foi o aumento da capilaridade das emendas orçamentárias individuais sobre os municípios brasileiros. Mesquita et al. (2014) afirmam, por exemplo, que, durante a 27° legislatura (2007-2010), em torno de 57% dos municípios brasileiros foram agraciados com ao menos uma emenda. Entre 2020 e 2022, o número de municípios beneficiados aumentou, de forma relevante, quando consideradas apenas as transferências especiais. De acordo com os dados do Ministério da Economia, os valores encaminhados no período por meio dessa modalidade transferência foi de R$5.889,00 bilhões, correspondendo a 19,5% do total autorizado para emendas individuais. Apesar de pequena, essa parcela dos recursos conseguiu alcançar, sozinha, 4.636 municípios (83% do total). Além disso, a maior parte dos recursos foram destinados para governos municipais e não mais para governos estaduais.
Resumindo, as mudanças recentes na legislação orçamentária propiciaram as condições ideais para que os pressupostos da vertente distributivista no Brasil sejam testados. Em geral, as ECs nº 86/2015 e nº 105/2019 garantiram aos legisladores maior liberdade durante o direcionamento de suas emendas individuais, reduzindo a capacidade do Executivo de controlar esse processo. Os parlamentares não apenas passaram a controlar mais recursos, como também conseguiram aumentar a capilaridade de suas emendas no território nacional. Agora, os congressistas são os únicos atores políticos que controlam a destinação de suas emendas, sem a influência de outros atores institucionais. Mas, afinal, o que podemos esperar para 2022?
Caso os argumentos da vertente distributivista estejam corretos, e as emendas individuais sejam um forte indutor de conexão eleitoral, é esperado que as taxas de reeleição alcançadas em 2022 sejam superiores ao percentual apresentado no período anterior. Dados do TSE mostram que os partidos de direita e centro-direita, principalmente aqueles ligados ao “Centrão”, são responsáveis pela maioria das candidaturas a reeleição esse ano. Isso significa que existe uma alta probabilidade de que a Câmara dos Deputados eleita em 2022 seja composta majoritariamente por partidos de direita e centro-direita, garantindo a manutenção do caráter conservador da última legislatura.
Os dados do gráfico 4 nos mostram que seis partidos mais alinhados à direita (PL, União, PSD, PP, MDB e Republicanos) são responsáveis por quase 60% das candidaturas a reeleição para a Câmara dos Deputados. Vale lembrar que além das mudanças nas regras de elaboração e execução das emendas individuais, desde o ano de 2020 o Congresso Nacional tem inserido no orçamento federal, por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), as emendas de relator-geral. Dados do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) mostram que essas emendas têm correspondido a maior parte do volume liberado pelo Executivo para emendas orçamentárias (individuais, coletivas, e de relator) em um mesmo exercício financeiro desde 2020. Paralelamente, a maioria das indicações têm sido realizadas por parlamentares ligados aos partidos do “Centrão”, garantindo maior vantagem para esses atores políticos durante a disputa eleitoral.
Assim sendo, a forma como as emendas parlamentares têm sido destinadas e, sobretudo, executadas, podem fortalecer a conexão eleitoral entre parlamentares e suas bases. No entanto, se as tendências encontradas nas pesquisas eleitorais estiverem corretas, no próximo ano o país será governado por um presidente filiado a um partido e pertencente a uma federação partidária à esquerda do espectro ideológico. Isso quer dizer que, para o Executivo implementar sua agenda de políticas, deverá equilibrar entre se articular com membros do “centrão” e tentar recuperar parte do status quo perdido, caso queira reassumir o controle do orçamento discricionário, implementar sua agenda e, a partir disso, realizar políticas públicas a partir de instrumentos de planejamento definidos constitucionalmente.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
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[1] Doutorando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – IFCH/UNICAMP. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, Processo nº 140566/2018-0). E-mail: raulbonfim16@gmail.com
[2] Professor Adjunto de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: vitorsandes@ufpi.edu.br
Fonte Imagética: Emenda constitucional foi promulgada em sessão solene no Congresso nesta quinta-feira (12) e vai beneficiar estados, municípios e o Distrito Federal. (Créditos: Jefferson Rudy/Agência Senado). Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/12/12/promulgada-emenda-que-permite-transferencia-direta-de-recursos-por-palamentares. Acesso em 03 set 2022.