Juliana Aparecida Sousa Carvalho[1]
19 de fevereiro de 2024
O II Seminário de Política Subnacional na América Latina foi realizado nos dias 23 e 24 de novembro de 2023, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Organizado pela Rede de Estudos de Política Subnacional na América Latina (REPSAL) e pelo Núcleo de Estudos sobre Política Local (NEPOL), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Ciências Humanas da UFJF, o seminário foi financiado pela CAPES e pela Fapemig[2], e teve como objetivo difundir as pesquisas dos membros da rede e demais interessados/as no estudo da política subnacional e gerar um espaço para o intercâmbio de ideias. Assim, contou com participantes de dez países – Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Paraguai, Peru, México e Uruguai.
A conferência de abertura foi apresentada pela profa. Marta Arretche, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), com comentários do prof. Juan Olmeda, do Colégio do México (CM), e foi baseada no texto “Estados federativos e unitários: uma dicotomia que pouco revela”, publicado por Arretche em 2020. Inspirada pelo seminal trabalho de Arend Lijphart sobre modelos de democracia, a autora questiona a utilidade analítica de tratar o federalismo como fator preditivo de consociativismo, especialmente no caso dos países latino-americanos. No cerne do argumento de Arretche está a constatação de que estados federativos podem divergir mais entre si do que com estados unitários e vice-versa.
A autora faz uso, então, de uma forma alternativa de classificar os países, aplicando as categorias analíticas da self-rule – a extensão em que as entidades subnacionais têm autoridade em seu próprio território – e shared-rule – a extensão em que esses atores participam das decisões nacionais. A aplicação dessa categorização mostrou que, no que diz respeito à dimensão self-rule, não há um padrão claramente definido. No que tange à shared-rule, um dos pontos que chama a atenção é a existência de casas senatoriais em estados unitários da América Latina, contrariando um dos princípios centrais da teoria de Lijphart. Além disso, assim como observado na categoria anterior, não há um padrão entre os países, de modo que o federalismo não parece ser componente preditivo adequado para definir a dispersão de autoridade.
Sendo assim, Arretche destacou que, no caso brasileiro, não seria possível dizer que as dimensões se diferenciam tanto dos países unitários da região, de modo que qualquer trabalho comparativo deve levar em conta esses achados. Na primeira dimensão, por exemplo, o Brasil seria mais semelhante ao México, ao passo que, na segunda dimensão, estaria mais próximo de países como a Colômbia, o Equador e o Uruguai, todos países unitários A autora conclui dizendo que é possível adotar duas estratégias para resolver a questão: ou encontramos novas categorias para realizar comparações ou orientamos a pesquisa para que ela dependa da pergunta que está sendo feita, de modo a agregar países cujas características institucionais são similares, a despeito de serem ou não países federativos.
Ao fazer seus comentários, Olmeda ressaltou que se depara com os mesmos questionamentos sugeridos por Arretche ao dar aulas sobre o tema, na medida em que essas diferenças são muito claras em alguns casos. O professor apontou também a importância de olharmos para as casas legislativas e para a sua relação com os estados, bem como para a possibilidade de existirem estados federativos não democráticos. Ele finalizou sinalizando a necessidade da desconstrução de tipos ideais, na medida em que as variações institucionais parecem mostrar que dificilmente um Estado se encaixaria plenamente nas condições por eles colocadas.
A mesa de encerramento ficou a cargo da profa. Agustina Giraudy, da American University (AU), e do prof. George Avelino, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O tema da fala de Giraudy foi Subnational Undemocratic Regimes in the Americas: Argentina, Brazil, Mexico, and the United States in Comparative Perspective, escrito em coautoria com o prof. Kent Eaton. O objetivo do texto foi oferecer um estudo comparativo do que a autora chama de regimes subnacionais não democráticos, na busca por possíveis semelhanças e diferenças. O primeiro argumento é que os SURs (subnational undemocratic regimes) da América Latina são bastante diferentes dos encontrados nos Estados Unidos. Isso porque, segundo a autora, os EUA seriam mais “SUR enabling” do que a América Latina, fator que seria contrário ao conhecimento convencional. Essas diferenças seriam explicadas por um sistema federativo mais permissivo, uma forma mais perniciosa de descentralização e a maior saliência de motivações raciais.
E o que seria um subnational undemocratic regime? Um regime político subnacional caracterizado pela presença de estados ou províncias nos quais o sistema eleitoral não é nem totalmente autoritário, nem totalmente democrático. Eles podem ser diferenciados dos regimes completamente autoritários por manter eleições periódicas e multipartidárias, nas quais a oposição pode participar. Entretanto, segundo Giraudy, essa oposição raramente ganha em regimes subnacionais não democráticos. A autora passa então a desmembrar os argumentos para cada explicação fornecida por ela para apontar como um estado pode ser mais SUR enabling do que outro.
Mostrando a maneira por meio da qual foram constituídos os arranjos institucionais de cada um dos países analisados, e como esses fatores incentivam ou restringem a política subnacional não democrática, Giraudy apresenta suas conclusões: os SURs apresentam ameaças importantes para a democracia tanto na América Latina quanto nos EUA, mas isso acontece de maneira diferente. Na primeira, os comportamentos não democráticos estão localizados ao longo do espectro ideológico partidário e, no segundo, eles podem ser associados a um só partido. Por outro lado, ambos restringem a contestação e enfraquecem os freios e contrapesos, ainda que só nos EUA exista uma tentativa adicional de limitação da participação por meio da supressão dos eleitores.
E por que os EUA são mais SUR enabling? Para a autora, porque, em primeiro lugar, a sua versão de federalismo é mais propícia aos SURs do que qualquer lugar da América Latina. Em segundo lugar, a descentralização norte-americana permite que os SURs desenhem seus próprios regimes de exclusão, enquanto na América Latina a única permissão dada aos estados é referente às transferências fiscais. Por fim, nos EUA, a questão racial foi a força motora por trás da formação dos SURs, em contraste com os SURs latino-americanos, nos quais as minorias raciais e étnicas foram incluídas. Agustina Giraudy finalizou sua exposição levantando questões em aberto no texto, como a periodização do estudo, a possibilidade de que o autocrata seja o presidente e o democrata seja o governador (o que é especialmente interessante no caso brasileiro) e a utilidade de pesquisar países unitários na América Latina.
A apresentação de Avelino, intitulada Estratégias Eleitorais e Políticas Públicas: qual a importância dos municípios?, faz parte de seu projeto temático com foco em observar a atuação dos brokers partidários – intermediários eleitorais locais, normalmente os prefeitos – para analisar o desempenho eleitoral de partidos e candidatos nas eleições legislativas e na produção de políticas públicas. Avelino justificou a pesquisa baseado no argumento de que o Brasil pode contribuir com essa área do conhecimento devido ao nosso sistema proporcional de lista aberta, e também por conta da importância política dos municípios. O primeiro argumento endereça o problema de que, por conta do tamanho dos distritos eleitorais brasileiros, é praticamente impossível para um candidato se eleger fazendo campanha em todo o território. O segundo ponto diz respeito ao fato de que a literatura internacional sobre brokers tende a focar em países cujo poder local não é tão institucionalizado como no Brasil, de modo que o nosso caso pode jogar luz sobre o comportamento desses atores na esfera subnacional. Sendo assim, a intenção é analisar os brokers que são candidatos nas eleições locais, com interesse nas informações e nos votos por eles recebidos.
No seguimento da apresentação, Avelino ressaltou as oportunidades abertas para a carreira política local: ainda que sejam derrotados nas eleições, ainda é possível atuar nas prefeituras ou em outros órgãos públicos. Além disso, os brokers locais podem trabalhar em campanhas, sendo contratados inclusive por deputados, para servir como elo com os eleitores locais. Os dados e registros administrativos coletados no TSE, no Censo, na RAIS e na Câmara dos Deputados permitiram, portanto, comparar a probabilidade de contratação no setor público dos ex-candidatos com outros três grupos: não filiados, filiados e contratados de campanha. Além disso, o banco possibilita uma avaliação mais precisa dos efeitos da patronagem sobre as políticas públicas, a partir de algumas perguntas: ter mais contratados políticos afeta o desempenho do governo municipal? Em que circunstâncias? Em algum tipo de política pública específica? O município recebe mais recursos do governo estadual ou federal?
Como a pesquisa ainda está em andamento, o autor usou os minutos finais de sua fala para apontar as questões em aberto, como a necessidade de uma estimativa melhor das áreas de influência. Isso porque, a partir da triangulação dessas áreas, será possível analisar, com dados do Censo, se os resultados eleitorais locais se relacionam com candidaturas passadas dos brokers em determinadas áreas e se as políticas públicas urbanas guardam relação com o desempenho eleitoral.
Além das mesas de abertura e encerramento, foram realizadas cinco mesas temáticas compostas por trabalhos de professores/as e pesquisadores/as, cujos temas foram Instituições, eleições e elites a nível subnacional, Eleições e partidos políticos a nível subnacional, Federalismo, desigualdade e relações multinível, Democracia, conflito e vínculo eleitoral e Instituições políticas subnacionais. Além disso, foram promovidos quatro painéis de estudantes de pós graduação, cujas pesquisas foram comentadas pelos pesquisadores membros das mesas temáticas, fornecendo, assim, retornos importantes para estes alunos. Entre os temas discutidos por professores/as, pesquisadores/as e alunos/as figuraram a participação dos eleitores nas eleições municipais no Uruguai, a organização partidária e a volatilidade eleitoral nos estados brasileiros, a relação entre governadores e candidatos em Buenos Aires, as reformas eleitorais no âmbito municipal na Costa Rica, um estudo sobre a violência do Estado nas províncias argentinas, uma avaliação da democracia municipal no Chile, duas análises sobre as instituições judiciais subnacionais no Brasil e no México, uma proposta de índice subnacional de direitos políticos das mulheres na Argentina, as relações intergovernamentais e capacidades estatais subnacionais no municípios do Uruguai etc. O breve levantamento realizado acima mostra como a agenda de pesquisas sobre política subnacional é multifacetada, possível em diferentes níveis e por meio de diversos países, não se limitando, portanto, àqueles países federativos ou mais descentralizados.
A realização do II Seminário de Política Subnacional na América Latina, para além de fornecer aos/às participantes uma oportunidade de compartilhar conhecimento e dividir seus estudos com os pares e demais interessados/as no tema, mostra também a urgência dessa agenda de pesquisa, sinalizando a diversidade de questões a serem investigadas. Além disso, foi uma oportunidade também para a discussão de como a política e as políticas públicas têm sido produzidas e analisadas nos últimos anos, gerando contribuições que vão além do conhecimento puramente científico.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), bacharel e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Bolsista do CNPq e membro da REPSAL. E-mail: carvalho.juliana@usp.br
[2] O evento contou também com os seguintes apoiadores: Grupo de Investigación sobre Política y Gobiernos Subnacionales de América Latina (GOPSAL-ALACIP), Grupo de Partidos y Sistemas de Partidos en América Latina (GIPSAL-ALACIP), Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG (PPGCP-UFMG), Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT).
Referência imagética: cartaz de divulgação do II Seminário Internacional de Política Subnacional en America Latina.