Antônio Sérgio Rocha[1]
A Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foi instalada numa estival tarde de domingo, em 1º. de fevereiro de 1987. A sessão solene foi conduzida pelo Ministro Moreira Alves, então presidente do Supremo Tribunal Federal, conforme estipulado na Emenda Constitucional no. 26/85.
A previsão inicial, veiculada em discurso pelo presidente da ANC, deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP), era de que a nova Constituição deveria estar pronta e levada à promulgação em 7 de setembro daquele mesmo ano. Mas não foi isso que ocorreu. O documento que restauraria o Estado Democrático de Direito no país demandaria mais de dezenove atribulados meses para, finalmente, ser promulgado como a Constituição Federal na quarta-feira do dia 05 de outubro de 1988.
Ao todo, o processo constituinte consumiu 613 dias – de longe, o mais extenso período de elaboração de toda a história política do país e um dos mais longos da experiência internacional. Dentre os diversos fatores que contribuíram para um processo constituinte que consumiu quase dois anos, o mais relevante decorreu da mudança do Regimento Interno da Constituinte, patrocinada e levada a cabo pelo dito Centrão — originalmente, o auto-denominado “Centro Democrático” —, que englobava partidos ostensivamente de direita e membros conservadores de diversas outras agremiações políticas do espectro ideológico representado na ANC.
O Centrão surgiu para combater e tentar alterar o Projeto de Constituição que havia sido elaborado na Comissão de Sistematização, concluído aproximadamente em meados de julho de 1987 e considerado pelos parlamentares conservadores como excessivamente estatizante e esquerdista. Mas, para além desse bloco interpartidário, atores externos à ANC contribuíram igualmente para tumultuar e retardar o processo — como a incessante pressão que o Presidente Sarney e sua equipe do Palácio do Planalto fizeram ao andamento e ao conteúdo das atividades da Assembleia Constituintes. E não foi de menor importância os muitos ataques e ameaças provenientes do Ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, aos trabalhos constituintes.
A descrição dessa dinâmica política e dos muitos atores — internos e externos à Assembleia Nacional Constituinte — é o objetivo central da cronologia 1987-1988 que elaboramos e disponibilizamos no ACERVO DIGITAL do Cedec. Para uma visão panorâmica preliminar, apresentamos abaixo um quadro das principais etapas do processo constituinte e de suas ocorrências.
QUADRO I — ETAPAS DO PROCESSO CONSTITUINTE
ETAPA | OCORRÊNCIAS |
1. PRELIMINARES | 1.1 Definição do Regimento Interno da ANC 1.2 Sugestões: Cidadãos, Constituintes e Entidades |
2. SUBCOMISSÕES TEMÁTICAS | 2.1 Anteprojeto do Relator 2.2 Emenda ao Anteprojeto do Relator 2.3 Anteprojeto da Subcomissão |
3. COMISSÕES TEMÁTICAS | 3.1 Emendas ao Anteprojeto da Subcomissão na respectiva Comissão Temática 3.2 Substitutivo do Relator 3.3 Emendas ao Substitutivo 3.4 Anteprojeto da Comissão Temática |
4. COMISSÃO DE SISTEMATIZAÇÃO | 4.1 Anteprojeto de Constituição 4.2 Emendas de Mérito ao Anteprojeto 4.3 Emendas de Adequação ao Anteprojeto 4.4 Projeto de Constituição 4.5 Emendas de Plenário e Emendas Populares 4.6: Substitutivo 1 do Relator (“Cabral I”) 4.7: Emendas ao Substitutivo 1 4.8 Substitutivo 2 do Relator (“Cabral II”) |
5. PLENÁRIO | 5.1: Projeto A (início 1° turno) 5.2: Ato das Disposições Transitórias 5.3: Emendas de Plenário e Emendas do Centrão 5.4: Projeto B (fim 1° turno, início 2° turno) 5.5: Emendas ao Projeto B 5.6: Projeto C (fim 2° turno) |
6. COMISSÃO DE REDAÇÃO | 6.1: Correções de redação no texto constitucional 6.2: Projeto D – redação final |
7. EPÍLOGO | 6.3: Promulgação da Constituição Federal de 1988 |
O exaustivo levantamento dos fatos relevantes ocorridos em cada um dos dias de trabalho do processo constituinte foi realizado recorrendo-se aos jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, O Globo e os semanários Veja, Senhor e Isto É. As lacunas e omissões detectadas foram supridas pela leitura direta dos Anais da Assembleia Nacional Constituinte, baixadas do sítio eletrônico do Senado Federal. A revisão e redação final de todo o material foram feitas por Antônio Sérgio Rocha, coordenador-geral desta pesquisa. À vista da extensão do material e diversidade das fontes utilizadas, não é improvável que persistam falhas — sejam elas de ordem material ou formal —, que tentaremos sanar numa eventual reedição desta cronologia do processo constituinte de 1987-1988.
Uma Assembleia, duas Constituintes
Foram 613 dias de atividades – o mais longo processo constituinte que se tem notícia. Operante para a longa jornada, a ausência formal de anteprojeto a lhe balizar os trabalhos. Mas a implosão e o desmanche da Aliança Democrática foi sua causa eficiente, que aconteceu logo após o início dos trabalhos da ANC. Exauriu-se ali o pacto político que havia criado a Nova República — perempto o seu intento originário e heterogêneos em demasia os parceiros. Ao cindir-se, a aliança fez do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e do Partido da Frente Liberal (PFL) os dois principais polos políticos na Constituinte, em torno dos quais orbitaram aliados preferenciais ou circunstanciais. De modo a destacar essa que nos parece ter sido a clivagem essencial dos trabalhos da Constituinte, simplificaremos e estilizaremos as duas forças políticas em confronto sob a denominação de Sistematização e de Centrão.
Desde suas prístinas atividades, essas duas forças travaram embates, confrontos, blefes, ameaças e impasses. Os “buracos negros” – matérias do Projeto de Constituição nas quais nenhum dos dois blocos tinha força e voto para aprovar ou rejeitar cabalmente, implicando a paralisação do processo constituinte — seriam sua mais perturbadora expressão. Mas igualmente ocorreram composições, convergências e conciliações, quando os dois ex-sócios políticos se viram obrigados a transigir, a negociar e a firmar acordos sobre as questões em disputa — sob a pena capital de não conseguirem produzir Constituição alguma. A fusão de emendas coletivas seria o seu mecanismo preferencial de avença. O padrão decisório da ANC se constituiu, assim, num modelo conflitivo-consensual, pelo qual os confrontos passaram para o texto final da CF 88 sob forma de compromissos agenciados pelas lideranças partidárias que representavam os dois blocos dominantes – numa espécie de casamento-na-polícia dos antigos parceiros aliancistas.
À dinâmica conflito-consenso dos dois blocos nos trabalhos da Constituinte se associou uma escansão temporal a vincar os dezenove meses, demarcando duas amplas fases e padrões de atividades, nítidas a ponto de merecerem distintas nomeações. Viveu-se, de início, a etapa da “Constituinte Popular”, resultante de um arcabouço de funcionamento altamente descentralizado, consagrado pelo Regimento Interno da ANC, ensejando e trazendo para o interior do Congresso Nacional a participação de vasto rol de atores extraparlamentares: movimentos sociais os mais diversos, frenética atividade de lobbies e acutilante pressão dos interesses organizados sobre os legisladores. Esse período recobre o trabalho das 24 subcomissões e 8 comissões temáticas, cujo arremate se dará na “Grande Comissão” – a instância agregadora que regimentalmente elaborarou o Projeto de Constituição. Capitaneado, sobretudo, pelo senador Mário Covas, o bloco da Sistematização comanda essa primeira fase, que transcorre do início de fevereiro a fins de 1987.
Na virada do ano, a insatisfação latente e dispersa da massa de constituintes deixados à margem dos trabalhos da “Grande Comissão” dá corpo a um núcleo de parlamentares hostis ao primeiro Projeto de Constituição, dando origem ao Centrão. O novo bloco levou o Congresso à fase da “Constituinte Partidária”. Aí, perdem nitidez os alinhamentos ideológicos e as demandas corporativas da etapa anterior, e, a partir de então, os acordos demandaram minudentes, laboriosas e exaustivas negociações entre os principais líderes de partidos. Da Mesa Diretora, a sobrepairante figura de Ulysses Guimarães arbitrou as contendas e induziu os parlamentares ao rito do voto. Esse período recobre o ano de 1988, quando as votações nominais do 1º e 2º. turnos se desenrolaram no Plenário do Congresso Nacional.
A longa sombra da Presidência da República se projetaria sobre essas duas etapas da ANC. Desde a sua instalação até os derradeiros momentos da ANC, o Governo Sarney atuaria de molde a condicionar, interferir e mesmo a pautar o processo constituinte. O Congresso Nacional reagiu de forma oscilante, ora cedendo às pressões do Executivo, ora confrontando-o e rejeitando a sua agenda. Não é um enigma menor atinar com o que efetivamente pretendia Sarney. Para que ele queria os cinco anos de mandato? Por que a insistência na preservação do presidencialismo? A conquista dessas duas reivindicações, note-se, não aplacou as críticas e pressões que ele seguiu movendo contra a ANC. Não é desconhecido que, em contextos de transição política, as forças da velha ordem tendem a convergir para o Executivo — sobretudo para o Presidente da República —, em busca de garantias de que seus interesses serão preservados (O’Donnell e Schmitter, 1988) Assim havia ocorrido com Tancredo Neves, nos acordos explícitos e implícitos que patrocinou. Que garantias buscavam então com Sarney, a ponto de levá-lo a um ativismo pontuado por mudanças de estratégias, e até mesmo de estrategistas, no cerceamento sistemático aos trabalhos da Constituinte?
Ao enigma-Sarney se acresce a charada fundamental acerca dos trabalhos constituintes: como uma assembleia de majoritária composição conservadora logrou produzir um documento final de natureza indubitavelmente progressista? Na literatura dedicada ao tema, autores avançaram a hipótese de que as regras de funcionamento da ANC instituídas pelo PMDB no Regimento Interno privilegiaram a decisão de membros da centro-esquerda em postos-chave do processo, atuando em aberta dissonância com as preferências da maioria que compunha o corpo coletivo (cf. em especial Gomes, 2002). Os dois períodos da Assembleia Nacional Constituinte, porém, transcorreram sob bases institucionais muito distintas, e mesmo as novas regras regimentais patrocinadas pelo Centrão não lhes conferiu capacidade de remover do texto constitucional as inovações progressistas. A explicação institucionalista não parece suficiente para solver o quebra-cabeça.
Há também hipóteses que pretendem explicar a extensão, o grau de detalhamento e de particularismos e as inconsistências presentes na versão final da Constituição pela combinação de uma sistemática de trabalhos legislativos ultra descentralizados com a lógica do cálculo político dos deputados e senadores — na pele de constituintes mas com interesses eleitorais inabalados e prevalecentes em sua atuação na ANC. O texto final – extenso, detalhista, no qual atendimentos corporativos são visíveis a olho nu — expressa cabalmente o efeito dessas duas lógicas a operar nos trabalhos constituintes.
Tais questões remanescem inconclusivas até hoje. Passemos então ao consabido, aos episódios estelares de cada período do processo constituinte e suas vicissitudes, pela via de duas cronologias: “1987 — A Constituinte “Popular”, já disponível no ACERVO DIGITAL do Cedec, e “1988 — A Constituinte “Partidária”, em breve igualmente acessível no Acervo.
REFERÊNCIAS
GOMES, S. N. A Assembleia Nacional Constituinte e o Regimento Interno. Dissertação de mestrado, DCP-USP, 2002.
O’DONNELL, G. e SCHMITTER, P. Transições do regime autoritário. Primeiras conclusões. São Paulo: Vértice, 1988.
OLIVEIRA, M. M. de. O processo histórico da elaboração do texto constitucional. Brasília: Subsecretaria de Edições do Senado Federal, 1993.
[1] Docente do DCS/Unifesp e pesquisador do Cedec. E-mail: sergio.rocha@unifesp.br.
Fonte Imagética: Fonte: Arquivo Câmara – Povos indígenas em plenário: brasileiros participam ativamente da construção da nova Carta. Disponível em <https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/constituinte/index.html>. Acesso em 31 ago 2022.