Eugênio Mattioli Gonçalves[1]
Esta publicação reproduz a introdução do livro Prudência política: das origens aos golpes de Estado, publicado pela Editora da Universidade Federal de São Carlos (EdUFSCar) em 2023.
Em 1966, no famoso ensaio Educação Após Auschwitz, Theodor Adorno escreveu:
O centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita. (…) [Para isso] seria preciso tratar criticamente um conceito tão respeitável como o de razão de Estado, para citar apenas um modelo: na medida em que colocamos o direito de Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente (Adorno, 1995, p. 137).
Interessado no problema da razão de Estado, desenvolvi durante minha pesquisa de mestrado uma investigação sobre um de seus principais representantes: Gabriel Naudé. Frequentemente identificado como um dos maiores nomes da razão de Estado francesa do séc. XVII, o libertino é responsável por uma ‘teoria dos golpes de Estado’, que autoriza ao soberano mesmo as ações políticas mais extremas, sempre que este julgar necessário. Descumprir a lei, mentir e assassinar, diz o escritor, são escolhas legítimas por parte do príncipe quando este tiver como fim a proteção de seu Estado e de seu próprio poder. Assim, Naudé tece um longo elogio a episódios como a matança perpetrada por Carlos IX no Massacre de São Bartolomeu, justificando-a como uma ação “muito justa e muito notável” (Naudé, 1993, p. 110) para todo o país.
Em Prudência e razão de Estado na obra de Gabriel Naudé mostrei como a famosa teoria dos golpes de Estado proposta pelo escritor francês é formulada principalmente a partir das concepções de prudência de Justo Lípsio e Pierre Charron. Fruto de minha pesquisa de mestrado, essa dissertação traz um cruzamento textual entre o Politicorum libri sex lipsiano e o tratado De la Sagesse, apontando como este último se apropria amplamente do conceito de prudência exposto no primeiro. Da leitura charroniana da prudence, feita a partir dos escritos de Lípsio, surge uma ideia distorcida, instrumentalizada, que abre ao príncipe o caminho para o recurso cotidiano a ações desonestas, quando estas forem úteis na preservação de seus interesses e do próprio poder. E essa prudência política de Charron, por sua vez, é o ponto de partida para a interpretação que Gabriel Naudé oferece ao conceito, alicerce de sua teoria dos golpes de Estado.
O protagonismo da ideia de prudência que se percebe nas referidas obras, contudo, não é um fato isolado. Há já algumas décadas, uma consistente tradição crítica tem observado, no período que abrange desde a publicação da Suma Teológica de Tomás de Aquino até a época de Luís XIII, o que alguns autores entendem como um “momento prudencial” na Europa, uma espécie de apogeu da noção no debate da época[2]. De um modo geral, esse fenômeno se caracterizaria por uma enorme e variada difusão de conceitos e imagens da prudência na iconologia[3] e na literatura política, marcando uma atenção até então jamais dedicada ao tema. Atrelado intensamente a essa discussão aparece o problema do maquiavelismo e da razão de Estado, cuja tratadística, a exemplo do famoso Della ragion di Stato de Giovanni Botero, lhe dedica especial atenção[4].
Assim, ao constatarmos o peso desempenhado pela prudência nas teorias da razão de Estado, surge a questão: de que modo uma das virtudes cardeais da ética clássica se torna no séc. XVI o pilar do debate sobre a manutenção dos reinos e a conservação dos governos? Como a figura do homem prudente, ideal antigo de sabedoria e honestidade, passa a se associar no início da modernidade com a imagem do príncipe astuto, que não vê limites na execução de seus objetivos políticos? Responder a essas questões exige voltar um pouco no tempo.
A investigação que proponho, portanto, visa rastrear as transformações sofridas pelo conceito de prudência, de seu surgimento na Antiguidade clássica até seu auge no debate do Renascimento tardio. Espera-se neste trabalho identificar as principais contribuições do pensamento filosófico a esse percurso conceitual, que acaba por produzir uma noção estritamente política e muito distante de suas formulações originais. Para isso, é necessário reconstituir as principais etapas desse processo.
Primeiramente, precisamos retornar às origens da ideia de phronesis, termo que antecede a noção moderna de prudência. É na obra de Aristóteles que encontramos a formulação decisiva do conceito, e que se torna a principal referência do debate para os a história da filosofia. Entendida como a virtude intelectual responsável pelo planejamento do agir humano, a phronesis aristotélica estabelece o sentido mais conhecido da expressão e sua operação no domínio da política. É a partir dela que nosso percurso se inicia.
Em seguida passamos ao exame da prudentia exposta pelo pensamento ciceroniano. Por meio dele – especialmente através do tratado De officiis – temos acesso à mais influente interpretação antiga do estoicismo, cujo debate agrega à ideia de prudência aspectos que lhe são determinantes, como a inclinação essencialmente prática e o vínculo com a providência divina. Leitor atento da escola do pórtico, Cícero resgata nas filosofias de Zenão e Panécio o problema do conflito entre o útil e o honesto, transportando para o seu tempo – e também para os séculos seguintes – uma discussão que se mostrará indissociável do conceito que norteia nossa pesquisa.
A contribuição de Tomás de Aquino, por sua vez, constitui um elo fundamental do percurso investigado, dialogando com o pensamento antigo e antecipando aspectos que aparecerão com mais evidência em seus sucessores. Ainda que cúmplice desse fenômeno, a filosofia tomasiana representa o último grande sistema de pensamento anterior àquilo que vemos como a ‘ascensão’ da prudência ao seu nível de maior prestígio no debate político.
O legado do humanismo e da obra de Maquiavel pauta o debate renascentista sobre a prudência, que a vincula de maneira indissociável com as teorias da razão de Estado. As interpretações que observamos nesse período são fundamentais para a compreensão do processo de transformação da virtude clássica da prudência em prudência política.
Parte integrante do resgate do pensamento clássico realizado pelos autores do Renascimento pode ser identificada no trabalho realizado por Justo Lípsio. O renomado filólogo é um dos principais responsáveis no período pela difusão dos escritos de autores fundamentais ao pensamento estoico, como Sêneca e Cícero. É inclusive através desse movimento – o “neo-estoicismo” – que podemos observar o resgate do debate ciceroniano do útil e do honesto, grande influência da famosa concepção de prudentia mixta formulada pelo humanista.
Interlocutor de Lípsio, Michel de Montaigne é autor do ensaio Do útil e do honesto, que discute o problema homônimo durante o violento contexto das guerras de religião na França, oferecendo uma resposta clara aos seguidores de Maquiavel a aos defensores da razão de Estado atribuída ao florentino.
Por fim, com o estudo do pensamento de Pierre Charron e Gabriel Naudé, chegamos ao final de nosso percurso. Na obra desses autores encontramos a noção de prudência política que deu origem a nossa pesquisa, e que marca a etapa final de um trajeto pautado pela transformação radical de um conceito de suma importância para o pensamento ético e político.
Iniciemos, pois, nossa investigação.
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Referências Bibliográficas
ADORNO, T. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
BERRIOT-SALVADORE, E., PASCAL, C., ROUDAUT, F. et TRAN, T. (eds). La vertu de prudence entre Moyen âge et âge classique. Paris: Classiques Garnier, 2012.
BORRELLI, G. Ragion di Stato. L’arte italiana della prudenza politica. Napoli: Istituto Italiano per gli Studi Filosofici, 1994.
DE MATTEI, R. Sapienza e Prudenza nel pensiero político italiano dall’Umanesimo al sec. XVII. In: Umanesimo e Scienza Politica, a cura di Enrico Castelli. Milano: Dott. Carlo Marzorati, 1951.
DINI, V. e STABILE, G. Saggezza e prudenza. Studi per la ricostruzione di un’antropologia in prima età moderna. Napoli: Liguori, 1983.
DINI, V. Il governo della prudenza. Virtù dei privati e disciplina dei custodi. Milano: Franco Angeli, 2000.
GONÇALVES, E. Prudência e razão de Estado na obra de Gabriel Naudé. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.
RIPA, C. Iconologia. A cura di Piero Buscaroli. Milano, TEA Arte, 1992.
[1] Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de Storia e Filosofia no Liceo Scientifico italiano do Colégio Dante Alighieri e Pesquisador Colaborador na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: pu2wik@gmail.com
[2] A expressão é de Vittorio Dini. Cf. DINI et STABILE, 1983; DINI, 2000, mas apenas dá nome a uma compreensão compartilhada por outros autores. Cf. BERRIOT-SALVADORE, 2012, p. 8, e cf. também BORRELLI, 1994.
[3] O exemplo mais famoso da época está em RIPA, 1992, p. 368-369.
[4] Em 1951, Rodolfo De Mattei defende a tese de que para esses autores o conceito de prudência desempenha o papel de “esclarecedor” (chiarificatore) da natureza da razão de Estado. A partir de seu comentário, segue-se uma longa tradição de estudos.
Referência imagética: capa do livro “Prudência Política: das origens aos golpes de Estado” (EduFSCar, 2023), publicado pelo autor.