Nossa Constituição Federal completará, em outubro deste ano, 34 anos, o que faz dela uma constituição inusualmente longeva, quando comparada com a média de idade dos documentos brasileiros que lhe precederam (no século XX, nenhuma das outras quatro constituições durou mais do que 21 anos) e, mais ainda, com o tempo médio de vida das constituições sul-americanas (15 anos, com uma mediana de 7). O Equador, por exemplo, elaborou 23 constituições em sua história e nenhuma delas durou sequer 25 anos. Este é um caso exacerbado de um fenômeno comum nesta região do planeta: a elaboração de novas constituições como alternativa ou complemento à agenda governamental ordinária. Ou, ainda mais típico, como sintoma de uma outra tendência historicamente observada na região: a instabilidade de seus regimes. O elevado número de constituições observadas na América Latina seria, neste sentido, a consequência de uma vulnerabilidade política sistêmica.
Considerando este contexto regional, pode parecer um capricho acadêmico, quase irrelevante e distante de nossos interesses mais imediatos, discutir um processo constituinte ocorrido há mais de trinta anos. Afinal, além do que já foi dito, desde que foi promulgada, nossa constituição já foi emendada mais de cem vezes, de modo que modificá-la para adequá-la à agenda governamental de ocasião consiste numa atividade corriqueira. Então, por que nos interessa regressar a 1988, quando seu texto original foi produzido? Entendo que há pelo menos duas razões principais: a primeira se deve, justamente, ao fato de que a constitucionalização no Brasil se tornou um processo contínuo – Couto (1998) fala em “longo processo constituinte” – e seu ponto de partida, ou seja, o processo constituinte de 1987-88, definiu as cartas à disposição dos jogadores – o jogo muda a cada rodada, mas 1988 consolidou, senão limites insuperáveis para a atuação dos atores políticos e sociais, fortes constrangimentos que se definem como referência a partir da qual articulam suas estratégias. Levado ao limite, a própria constituinte de 87-88 é, em parte e de forma direta ou indireta, consequência de desdobramentos históricos que lhe precederam. Houve, por exemplo, no início dos anos 1990 um debate acalorado sobre as semelhanças e diferenças entre a Carta de 1988 e a de 1946, substituída pelo regime burocrático-autoritário, instalado a partir do golpe de 1964, que produziu sua própria constituição, em 1967 (emendada quase que por completo em 1969). Acontece que hoje é consenso entre analistas políticos que nossa constituição vigente combina características destas duas constituições: por um lado resgata o poder do legislativo, solapado pelos militares, por outro mantém poderes do executivo, edificados pelos mesmos militares. A consequência é um presidente forte, capaz de induzir cooperação com o Congresso (Figueiredo e Limongi 2001).
Não me interessa, particularmente, desenvolver estes argumentos aqui, mas espero convencer o(a) leitor(a) sobre este caráter de constitucionalização permanente. Por isso, embora possamos falar em constituições brasileiras, uma análise sobre o encadeamento de causas e efeitos que nos levaram ao que somos hoje, deve partir da ideia de uma única história constitucional brasileira. Esta é uma das razões que justifica o regresso histórico aos anos 1980 (e, inclusive, para além deles). A segunda diz respeito às singularidades de 1988, quando comparado com a própria história brasileira, mas principalmente com o resto do mundo. Análises baseadas em estudos comparados entre poucos casos, ou mesmo coleções de pesquisas de caso já sugeriam, há muito tempo, que a Constituição de 88 e o processo que lhe criou, senão únicos, combinavam um conjunto de características que acentuavam processos observados alhures e/ou estabeleciam procedimentos e tendências que seriam replicados, especialmente, na América Latina. Destaco duas delas, pois sustento que se relacionam como causa e efeito: o constitucionalismo participativo (e a influência do lobby,em particular) e a constitucionalização de direitos sociais e econômicos.
Em artigo publicado na revista Lua Nova, em 2021 (volume 112), mostrei como os lobbies influenciaram a adoção de dispositivos relacionados à educação pública, aos direitos do trabalho e da saúde na Constituição de 1988 (Costa 2021). Naquele artigo não defendi que nossa constituição seria estritamente liberal (não teria acolhido nenhuma forma de direitos sociais e econômicos) caso os grupos de interesse não tivessem atuado de forma tão intensa. Embora seja muito difícil chegar a conclusões definitivas a partir deste tipo de exercício contrafactual, é razoável supor que estes tipos de direitos, ainda que a partir de formulações reduzidas, estariam presentes na constituição de qualquer forma, pois o contexto de negação do recente passado militar incluía, além da óbvia agenda democrática, o combate à desigualdade social, atribuída como mazela do regime autoritário. Meu artigo mostra, na verdade, como este lobby favorável à constitucionalização de direitos sociais atuou de forma a orientar a agenda estatista avançada pelos partidos de esquerda e, com mais importância, pelas lideranças mais progressistas do PMDB, que conseguiram, por meios procedimentais estratégicos, virar um jogo que sugeria uma resistência conservadora majoritária contra o estabelecimento de um modelo de social constitucionalismo mais avançado.
Ainda que de forma indireta, meu artigo, e outros trabalhos de forma mais direta (Gozetto 2004; Mancuso and Gozetto 2012), demonstram como o lobby pode ocupar um papel importante em nossa democracia, traduzindo interesses legítimos da sociedade, seja a partir do fornecimento de informações qualificadas sobre as matérias sob debate, ou pela articulação de estratégias que permitem a participação da sociedade no processo de decisão política. O alegado sequestro de valores democráticos, quais sejam a prevalência das preferências populares majoritárias, pelo poder do capital, que caracterizaria a prática do lobby na visão de seus críticos, é contestada pela própria experiência brasileira, durante o processo constituinte de 1987-88, tal qual mostro em meu trabalho. Isso não equivale afirmar que o dinheiro é irrelevante na prática do lobby e que a desigualdade social não se reflete na desigualdade política, inclusive a partir do lobby. Mas, neste sentido, concordo com Przeworski (2018) quando diz que não deveríamos criar expectativas irrealistas sobre a democracia.
As eleições democráticas são um instrumento de tomada de decisão, preferível a outros, pois permitem a resolução de conflitos de forma pacífica. Mas seus resultados dependem da estrutura da sociedade que a opera e se esta sociedade é desigual do ponto de vista social, deverá produzir resultados que reproduzem esta desigualdade. Ou seja, é verdade que o lobby atende aos interesses de quem lhe emprega e que o capital exerce influência importante sobre a capacidade de fazer um lobby bem-sucedido, mas este é o resultado da lógica segundo a qual funciona nosso sistema econômico e não uma deficiência do próprio lobby. Rejeitar o lobby porque ele pode reproduzir desigualdades equivale a rejeitar a democracia porque ela, por si só, é incapaz de combater a desigualdade. Em certas circunstâncias o lobby promove interesses progressistas e contribui com a proteção da população mais vulnerável e, em todos os casos, é um potencial instrumento democrático.
Além do papel do lobby, outra alegada particularidade do caso brasileiro diria respeito à forma como avançou na constitucionalização de direitos sociais. É sabido que México, em 1917, e Alemanha, em 1919, iniciaram um amplo processo de definição de direitos sociais e econômicos como direitos fundamentais e, mais importante para nossa análise, direitos constitucionalizáveis. Estas experiências influenciaram um processo contínuo e crescente de constitucionalização de direitos sociais ao redor do mundo, principalmente após a Segunda Guerra Mundial e a adoção da Declaração dos Direitos Humanos, em 1948. Mas, do ponto de vista metodológico, sempre foi muito difícil posicionar um caso particular em relação a outros. Por exemplo, podemos dizer que a constituição brasileira de 1988 é, comparativamente, singular ou apenas um ponto em uma linha ascendente que traduz o processo descrito acima?
Hoje temos condições de afirmar empiricamente a magnitude dos avanços brasileiros em comparação ao resto do mundo. Desenvolvi, a partir de pesquisa financiada pela FAPESP (nº processo: 2018/05607-4), o Constitutional Social Score Model (CSSM), ferramenta que atribui pontuações (de 0 a 10) a sete grupos de direitos sociais, em função da probabilidade de os dispositivos constitucionais favorecerem a implementação destes direitos. A média da pontuação destes sete grupos define o Constitutional Social Score (CSS), atribuído à cada constituição (Costa, 2019). O gráfico abaixo mostra como o CSS médio de 27 países evoluíram ao longo do tempo[2].
Gráfico 1: evolução do CSS para 27 países
O gráfico ilustra o meu argumento acima: a constitucionalização de direitos sociais e econômicos consiste, com efeito, em um fenômeno contínuo e crescente. Mas e a constituição brasileira de 1988? Ela pontua 6,31, então, o maior CSS da história. Hoje, após uma série de emendas que modificaram seu texto original, seu CSS é de 7,46, o segundo maior do mundo, inferior apenas ao da constituição do Equador, com pontuação de 8,52. Ou seja, os avanços metodológicos, em termos de pesquisas sobre constitucionalismo comparado, permitem-nos visualizar de forma quantitativa a apregoada singularidade brasileira.
Duas questões orientam os próximos passos da agenda de pesquisa: entender a relação entre a constitucionalização de direitos sociais e a qualidade da democracia e da diminuição da desigualdade social (isto é, constitucionalizar direitos sociais importa?); entender o impacto do lobby na constitucionalização de direitos sociais em outros países e, com isso, avançar o debate sobre lobby como um instrumento democrático legítimo.
Referências
Costa, Lucas Nascimento Ferraz. 2019. “Um Modelo de Social-Constitucionalismo Comparado.” in 43o Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu.
Costa, Lucas Nascimento Ferraz. 2021. “ANÁLISE COMPARADA DAS ESTRATÉGIAS ORGANIZATIVAS DOS LOBBIES NO PROCESSO CONSTITUINTE DE 1987-88.” Lua Nova: Revista de Cultura e Política 112(112):283–316. doi: 10.1590/0102-283316/112.
Couto, Cláudio Gonçalves. 1998. “A Longa Constituinte: Reforma Do Estado e Fluidez Institucional No Brasil.” Dados 41(1):1–11. doi: 10.1590/S0011-52581998000100002.
Figueiredo, Argelina Maria Cheibub, and Fernando Limongi. 2001. Executivo e Legislativo Na Nova Ordem Constitucional. 2a ed. Rio de Janeiro: Editora FGV.
Gozetto, Andrea Cristina Oliveira. 2004. “Lobby e Representação de Interesses: Lobistas e Seu Impacto Sobre a Representação de Interesses No Brasil.”
Mancuso, Wagner Pralon, and Andrea Cristina Oliveira Gozetto. 2012. “Lobbying: Instrumento Democrático de Representação de Interesses?” Organicom 8(14):1–13.
Przeworski, Adam. 2018. Why Bother with Elections? Cambridge: Polity Press.
[1] Pesquisador de Pós-doutorado em Ciência Política na Escola de Administração de Empresas de São Paulo, na Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP). É pesquisador do Centro de Estudos em Política e Economia do Setor Público (Cepesp). Site pessoal: https://sites.google.com/view/lucasnfcosta
[2] São todos os países para os quais tracei a história constitucional completa, isto é, todas as alterações do CSS em função de novas constituições ou emendas às constituições. São eles: Andorra, Angola, Antígua e Barbuda, Argentina, Armênia, Austrália, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Egito, Fiji, Guiana, Índia, Irã, México, Nepal, Palau, Paraguai, Peru, Portugal, Rússia, África do Sul, Suriname e Venezuela.
Fonte Imagética: Fernando Bizerra/ Arquivo BG Press. Agência do Senado: Lobby do Batom: marco histórico no combate à discriminações. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/03/06/lobby-do-batom-marco-historico-no-combate-a-discriminacoes> Acesso em 15 fev 2022.