Felipe Adão[1]
O presente texto tem como objetivo apresentar algumas alternativas teóricas que podem ajudar a pensar os direitos humanos na atualidade (e a atualidade dos direitos humanos) e podem ser fundamentos interessantes para pesquisas e debates contemporâneos nesta área. Em resumo, desenvolvo uma abordagem histórico-crítica sobre os direitos humanos que combina elementos teóricos das obras de Michel Foucault e Jacques Rancière com a sociologia do presente de Robert Castel, propondo a interação crítica entre os conceitos de dissenso (Rancière), ontologia do presente (Foucault), problematização do contemporâneo e transversalidade (Robert Castel). Estes conceitos auxiliam na construção de uma leitura crítica dos direitos humanos na atualidade e servem como ferramenta para repensá-los como instrumento para atuação na cena pública.
Para isso, o texto se divide em três momentos principais: (i) introdução de alguns elementos do debate crítico sobre direitos humanos na atualidade; (ii) apresentação da discussão sobre os conceitos indicados acima em Foucault, Rancière e Castel; e, por fim, (iii) a discussão sobre como a combinação destes conceitos pode auxiliar na construção de alternativa teórica para leitura da atualidade dos direitos humanos, oferecendo elementos para analisar a interação contraditória entre rupturas, continuidades, dissensos e normalizações que marcam a produção institucional dos direitos humanos regional e globalmente.
O debate crítico sobre a história e a relevância dos direitos humanos na atualidade
Sem ignorar a complexidade e diversidade do debate atual sobre os direitos humanos, entendo que há dois desafios ou propostas que marcam as mais diversas correntes críticas sobre os direitos humanos: a necessidade de produzir histórias críticas dos direitos humanos para além de uma história canônica e única sobre eles; e a possibilidade de repensar a efetivação dos direitos humanos a partir da tensão, do dissenso e da contestação política na cena pública.
Quanto ao primeiro desafio, fala-se da necessidade de se pensar em uma história crítica dos direitos humanos que faça um balanço crítico de seu desenvolvimento histórico, a fim de expandir seu horizonte de possibilidades no presente, como visto no trabalho de Stefan-Ludwig Hoffmann (2015, 2018) e outros autores. Eles questionam as grandes narrativas sobre a história dos direitos humanos no século XX e analisam criticamente o papel histórico das instituições globais de defesa e promoção dos direitos humanos, principalmente em relação ao papel que elas exercem no enfrentamento de questões que marcam o contexto político internacional como a propagação da racionalidade governamental neoliberal no sistema de governança internacional, o (re)aparecimento de regimes autoritários e supremacistas ao redor do mundo, a intensificação dos conflitos regionais e a crise migratória que marcou a última década.
Nesse contexto, embora estes autores apontem limitações na atuação dessas instituições nas últimas décadas, eles pontuam que as experiências diversas de organizações e grupos sociais com os direitos humanos nos últimos 70 anos e o arcabouço normativo e institucional construído em volta deles permitem pensar em futuros possíveis, tendo em vista que os direitos humanos têm significado aberto e tem a capacidade de falar às situações do nosso tempo. Os direitos humanos, assim, ainda compõem o léxico da luta política de diversos grupos subalternos que demandam diariamente o reconhecimento público e esse referencial ainda é relevante como padrões a partir dos quais podemos denunciar e combater as mazelas de nossos tempos.
Por tal motivo, estes autores propõem o desenvolvimento de histórias alternativas sobre os direitos humanos que se integrem à história “oficial” ou “canônica” sobre eles; histórias de/sobre atores sociais ou políticos que foram perdidas ou desconsideradas nas narrativas históricas oficiais sobre direitos humanos. As histórias críticas dos direitos humanos teriam como fim reconsiderar os direitos e práticas jurídicas locais que foram substituídos pela ideia prevalente de direitos humanos como direitos individuais universais que superam o ordenamento jurídico dos Estados nacionais.
O segundo desafio trata da necessidade de pensar a produção e efetivação dos direitos humanos a partir da tensão, do dissenso e da contestação política, visando dar suporte à autoprodução normativa dos agentes e coletividades (KOERNER; MAIA, 2018). Essa proposta vai além do debate usual sobre direitos humanos, que enxerga sua efetivação somente pela chave violação x conformidade dos Estados aos direitos humanos ou que compreende a promoção deles necessariamente pela via das políticas estatais ou a partir da maximização da eficácia dessas normas nos mais variados contextos domésticos. A proposta aqui é a de inserir o dissenso político como chave analítica para pensar os direitos humanos, que aparece como aspecto fundamental da autoconstituição dos sujeitos dominados como sujeitos políticos ativos e afirma a potencialidade dos direitos humanos como meio para produzir novas formas de subjetivação e de condução de si mesmo na cena pública.
Assim, após a delimitação destes dois desafios, apresento a seguir elementos teóricos do pensamento de Michel Foucault, Jacques Rancière e Robert Castel que podem ajudar a respondê-los.
O pensamento crítico sobre os direitos humanos a partir de Michel Foucault, Jacques Rancière e Robert Castel
Apresento brevemente a seguir o que penso ser elementos fundamentais das obras de Michel Foucault, Jacques Rancière e Robert Castel que nos ajudam a pensar sobre direitos humanos.
Na obra de Michel Foucault, é possível identificar a produção de direitos a partir da distinção entre Direitos do Homem e Direitos dos governados, categorias que correspondem às duas concepções sobre a política em Foucault: a primeira é a da biopolítica, que inscreve a vida e suas possibilidades dentro do quadro do próprio governo e da governamentalidade e trata dos dispositivos de poder que nos governam e nos conduzem; a segunda, é a política como exercício de resistência, práticas de liberdade e formas do governo de si e dos outros que contribuem para a criação e condução de nossos próprios desejos na cena pública (FOUCAULT, 2010, 1994b; RAFFIN, 2018).
Partindo dessa diferença, Foucault faz uma distinção posterior entre direitos do homem, que emanam do quadro político do governo e da soberania e são fruto da governamentalidade (FOUCAULT, 2008), e os direitos dos governados, que ele chama de “Novo Direito”, que são estratégias jurídicas e políticas para resistência à biopolítica e à governamentalidade por meio da insurgência dos sujeitos aos mecanismos de obediência e normalização que produzem tipos específicos e fechados de subjetividade (FOUCAULT, 1994a; FONSECA, 2012).
Em Michel Foucault, os direitos dos governados consagram as lutas sociais e políticas em frontal oposição aos direitos do homem, que são direitos nascidos do quadro político da governamentalidade e das relações de poder normalizadoras. Esse “novo direito” nasce da resistência aos poderes e aparece como estratégia de contrapoder, ao mesmo tempo em que se opõe ao direito dentro do paradigma do soberano, que entende o direito como legalidade e mecanismos de normalização.
Por sua vez, a proposta de Jacques Rancière é a de pensar sobre quem é o sujeito de direitos humanos (RANCIÈRE, 2004; CARDOSO, 2020). Quem está incluído nesta definição de sujeito de direitos humanos e o que significa ser um sujeito de direitos humanos em nosso tempo?
A posição de Rancière é a de que o sujeito de direitos humanos age em seu contexto para a defesa e construção de seus direitos, pois eles são de natureza política e existem em contextos históricos específicos. Para ele, os direitos humanos, por partilharem do caráter provisório e precário da política, também são um terreno de disputa social e é por meio do dissenso e da contestação política que os sujeitos de direitos humanos ativam esses direitos e se constroem politicamente, em muitos casos apesar do quadro de direitos disponível no momento da ação política.
Em Rancière, o sujeito de direitos humanos não é definido a partir da privação ou do status de vítima do poder estatal, mas como sujeito “formado durante a ação política, no intervalo da identidade que lhe foi atribuída e do novo nome que ele propõe. Deste modo, a categoria é constituída em um momento de agência, e não existe o sujeito fora da ação política.” (CARDOSO, 2020, p. 111).
Por fim, temos a sociologia do presente de Robert Castel, composta por dois elementos fundamentais que incidem na análise de questões sociais: o primeiro é o uso da história para compreender o presente, adicionando às categorias sociológicas a preocupação sobre as trajetórias históricas dos fenômenos sociais analisados; e o segundo é a adoção da perspectiva da transversalidade, que primeiro olha para as questões e problemas daqueles em posição de marginalidade para, em seguida, reexaminar os processos que os conectam ao centro de determinado conjunto social (CASTEL, 2013; GOLDSTEIN, 1994; VARELA, 2012).
Quanto ao primeiro elemento, Castel propõe o desenvolvimento de uma história do presente por meio da qual “o presente pode ser concebido como uma conjunção de efeitos de inovação e de herança” (CASTEL, 2013, p. 95). Assim, ele entende que o presente é composto tanto de rupturas quanto de heranças, continuidades e resquícios do passado que incidem sobre a atualidade e permitem que o presente se configure de determinada forma. Além disso, a história do presente assume que a realidade social possui configurações problemáticas, que são as situações sociais que evidenciam problemas que não são facilmente perceptíveis olhando apenas para o curso normal das sociedades.
O segundo elemento que Castel propõe é a ideia de transversalidade, por meio da qual se parte das questões que afetam as margens da sociedade para poder retraçar os processos que os ligam ao centro do conjunto social (VARELA, 2012). Existe uma transversalidade entre o marginal e o central que auxilia na compreensão da configuração problemática do presente e permite identificar as pessoas, saberes e discursos que ocupam lugares periféricos e instáveis dentro da sociedade e podem a qualquer momento mudar de posição, sofrer alterações ou ser ofuscados pelos elementos centrais do conjunto social.
Em Castel encontramos ferramentas úteis para uma análise crítica dos direitos humanos na atualidade que possibilitam pensá-los como resultado histórico de um processo complexo e multilocal de rupturas e heranças ao invés de algo puro e homogêneo que emerge de forma estável de macroprocessos históricos. Além disso, oferece um ponto de vista alternativo por meio do qual a análise parte das margens para, a partir daí, religá-las ao centro e trazer à luz as configurações problemáticas dos discursos e práticas oficiais das instituições de direitos humanos.
Como será visto a seguir, as ideias de Foucault, Rancière e Castel apresentadas brevemente nessa seção servem de fundamento para desenvolver alternativas teóricas para (re)pensar os direitos humanos na atualidade.
Alternativas teóricas para (re)pensar os direitos humanos na atualidade: aplicação das ideias de Foucault, Rancière e Castel
A discussão sobre a questão dos direitos humanos em Foucault, Rancière e Castel nos leva a algumas alternativas (ou tarefas) teóricas e práticas para pensar os direitos humanos na atualidade:
1. Reescrever a história dos direitos humanos para que inclua não somente os marcos normativos e o trabalho das organizações internacionais e regionais, mas também a história dos movimentos sociais e políticos que lutaram pelos direitos que vieram a ser assegurados nos mais diversos tratados de direitos humanos. Pensar essa história com múltiplos pontos de partida, deslocamentos, rupturas e continuidades, inclusive a partir da perspectiva de indivíduos e coletivos do Sul global.
2. Reexaminar os pressupostos jurídicos e teóricos utilizados para definir o que são os sujeitos de direitos humanos e pensá-los como indivíduos (e grupos) capazes de produzir novos direitos a partir da sua ação política na cena pública.
3. Repensar teoricamente a interação entre Estados, organizações e indivíduos/grupos, a fim de deslocar o discurso sobre direitos humanos do centro para a margem. Este ponto é consequência lógica dos dois anteriores, pois repensar a interação entre Estados, organizações e indivíduos/grupos significa (i) repensar as formas de conceber e contar a história dos direitos humanos e (ii) repensar o papel dos sujeitos de direitos humanos nos contextos institucionais e políticos em que Estados e organizações aparecem como atores privilegiados/centrais.
4. Repensar as relações entre política e produção dogmática do direito no campo dos direitos humanos. Aqui, trata-se de olhar de forma crítica para a forma pela qual as correntes doutrinárias majoritárias do direito internacional dos direitos humanos pensaram os sujeitos de direito, as formas de vida, as expectativas e demandas em relação eles, a fim de repensar como poderíamos expandi-las com o objetivo de introduzir formas de vida mais plurais nas práticas das organizações e instituições de direitos humanos.
Conclusão
Este artigo buscou trazer brevemente as contribuições teóricas de Michel Foucault, Jacques Rancière e Robert Castel para pensar as alternativas teóricas para os direitos humanos na atualidade. Os elementos teóricos desses autores podem ajudar no enfrentamento dos desafios políticos da atualidade, principalmente em países do sul global em que a proteção e promoção dos direitos humanos ainda é precária e sofre constantes revezes no cenário político internacional. As contribuições deste artigo são complementares às práticas políticas e podem ser vistas como o conteúdo teórico possível para diversos tipos de prática social.
Por fim, a análise realizada neste artigo é apenas uma parte do debate crítico sobre os direitos humanos, que tem o objetivo de revitalizar e aprofundar a proteção e promoção desses direitos como instrumento disponível para ação no mundo. O artigo pressupõe os direitos humanos como aposta, entendendo-os como instrumento de luta e avanço da humanidade, apesar das suas limitações históricas e políticas.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências
CARDOSO, Andréia Fressatti. Quem é o sujeito dos direitos humanos? A constituição dos direitos na cena pública em Hannah Arendt, Giorgio Agamben e Jacques Rancière. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP: [s.n.], 2020.
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[1] Doutorando em Ciência Política pelo IFCH-UNICAMP, onde realiza pesquisa sobre a questão racial no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Versão resumida e adaptada do artigo de apresentado no 46º Congresso da ANPOCS (2022) no SPG10: Direitos humanos em xeque: retrocessos e potencialidades. O artigo foi o vencedor da categoria SPG do Prêmio “Lia Zanotta Machado em Direitos Humanos para Papers” do 46º Congresso da ANPOC (2022). Disponível em: https://www.encontro2022.anpocs.com/arquivo/downloadpublic?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6IjkxNDMiO30iO3M6MToiaCI7czozMjoiZTFlMDIwMmI5YzYxNmVlYzkwOTBjOWMzNzU0NmJlMmIiO30%3D.
Fonte Imagética: Black Power. Photo by Gayatri Malhotra on Unsplash. Disponível em <https://unsplash.com/photos/WzfqobnrSVc>. Acesso em 21 nov 2022.