Vladimir Puzone[1]
As discussões sobre o fascismo retornaram ao debate público a partir da crise de 2008 e da ascensão de governos de extrema-direita que observamos desde então. No Brasil, a eleição de Bolsonaro em 2018 alarmou muitos e chamou atenção para a possibilidade de processos fascistas em curso no país. Os seguidores do “mito” compartilhariam muitos dos traços com os movimentos e regimes da primeira metade do século XX: ideias conspiratórias, a busca pela aniquilação dos adversários políticos, sobretudo partidos e organizações de esquerda, e o culto à violência.
A intenção deste texto é retomar e reconstruir uma análise que pode contribuir para a compreensão dos processos sociais e históricos que atravessam a discussão sobre o fascismo no Brasil e no mundo – a teoria crítica. Ela é encarada aqui como uma reflexão do marxismo sobre si mesmo diante dos problemas suscitados pela crise da sociedade burguesa e de movimentos de contestação a ela. É verdade que o capitalismo analisado por autores como Max Horkheimer e Theodor Adorno (para citar dois dos representantes mais conhecidos da teoria crítica) não é mais o mesmo, se comparado ao período em que os autores escreveram, entre as décadas de 1930 e 1960. Ainda assim, vale a pena resgatar essa corrente e suas análises do tema, já que as tendências que levaram à constituição do fascismo permanecem presentes nas sociedades contemporâneas. Faço no texto um breve resumo de algumas questões que me parecem importantes para as considerações sobre o fascismo, tanto em sua fase “clássica” quanto atualmente, em contraposição a visões comuns que se tem da teoria crítica. A partir dela, também faço algumas sugestões para compreender os problemas e as crises que têm afetado o Brasil contemporâneo.
Alguns elementos da teoria crítica sobre o fascismo
É comum tratar o exame da teoria crítica sobre o fascismo como uma análise sociopsicológica. Adorno, por exemplo, reduziria o apoio a figuras como Hitler e Mussolini a questões individuais e psicológicas. No entanto, o próprio autor se opôs a essa caracterização. A adesão aos movimentos e regimes fascistas não deveria ser explicada em termos de pré-disposições individuais. Ao contrário, eles deveriam ser entendidos a partir do contexto geral da sociedade burguesa. Esse contexto significa que os pressupostos sociais objetivos que geraram o fascismo em seu período clássico, na primeira metade do século XX, permaneciam mesmo com o fim da Segunda Guerra Mundial. Adorno insistiu na ideia de que a existência de movimentos fascistas depois de 1945 só poderia ser explicada pelas condições que continuavam favorecendo a sobrevivência do capitalismo.
Para a teoria crítica, esses pressupostos objetivos dizem respeito ao fato de que as relações entre os indivíduos assumem a forma de uma lei natural, à qual eles devem se adaptar para poder sobreviver. Forçadas a procurar um emprego para poder ganhar dinheiro e satisfazer suas necessidades mais básicas, as pessoas acabam por encarar essa característica da sociedade capitalista como algo evidente. Por outro lado, essa adaptação implica que diminuam os questionamentos à forma como organizamos nossas relações. É por isso que a teoria crítica se aproximou da psicanálise desde os anos 1930. Apenas uma análise que procurasse compreender como o indivíduo é moldado pela sociedade capitalista poderia mostrar como as pessoas podem aderir a fins destrutivos e irracionais – como foi o caso do nazismo.
Essa ideia central já estava presente nos levantamentos que o Instituto de Pesquisa Social fez na década de 1930 sobre as posições de operários e trabalhadores de escritório a respeito de temas como autoridade e família. As pesquisas mostraram que as atitudes e valores de diferentes camadas de trabalhadores não correspondiam à expectativa inicial de que eles se inclinassem aos partidos de esquerda na Alemanha. A presença de traços autoritários em muitos daqueles que responderam aos questionários indicou, em parte, que os conceitos de Freud ajudariam a entender as contradições entre o modo como os indivíduos percebem os problemas da realidade capitalista e as dificuldades em compreender tais problemas e agir e se organizar de outra forma.
Tal perspectiva continuaria em trabalhos como Dialética do Esclarecimento e Estudos sobre a Personalidade Autoritária. Essas obras foram construídas a partir do seguinte problema: se é difícil às pessoas entenderem as causas objetivas de sua miséria e de seu trabalho alienante, muitas vezes elas tendem a personalizar essas causas, uma vez que se apresentam de forma obscura e abstrata. Daí que as figuras de lideranças fascistas e autoritárias possam ser alvo de identificação. Elas seriam capazes de trazer de volta o sentido de uma ordem social, baseada em contradições e crises cuja apreensão imediata é difícil. As tendências psicológicas funcionam como uma espécie de compensação dos problemas nas relações entre indivíduos. Assim, os conceitos psicanalíticos são um meio de acesso a problemas do modo como a sociedade se organiza no capitalismo. Em seus trabalhos sobre a personalidade autoritária, Adorno destacou em que medida as ideias e práticas fascistas podem ser analisadas como uma revolta contra os resultados do próprio funcionamento da sociedade. A tarefa da teoria crítica consistiria em desvendar as causas dessa revolta.
Há também outra imagem a respeito das análises da teoria crítica a respeito do fascismo. Ao se concentrar em categorias psicológicas e individuais, Adorno e Horkheimer teriam abandonado uma avaliação das relações de classe na Alemanha e na Europa – uma queixa comum entre muitos marxistas. Na verdade, quando examinamos os textos dos autores entre os anos 1930 e 1940, vemos que eles destacam frequentemente o fascismo como uma transformação nas formas das relações de dominação. As considerações da teoria crítica a respeito do nazismo levam em conta as transformações na configuração das classes em decorrência das alterações no capitalismo da época, sobretudo por conta dos processos de centralização e concentração do capital.
Em particular, Horkheimer e Adorno escreveram alguns textos ao redor da noção de racket, tais como “Reflexões sobre a teoria de classes” (Adorno) e “Sobre a sociologia das relações de classe” (Horkheimer). De fato, eles são menos conhecidos do que aqueles a respeito da indústria cultural ou do antissemitismo e que marcaram a trajetória dos autores. Apesar disso, eles contêm indicações interessantes para se pensar o fascismo. O termo racket foi inspirado nas acusações que os capitalistas americanos lançavam a seus concorrentes no início do século XX. Tais queixas alegavam que lideranças sindicais tinham o objetivo de criar e manter posições favoráveis, tanto nos negócios quanto no controle da força de trabalho, em conluio com outros empresários, parlamentares e criminosos, e de modo ilícito. Para Adorno e Horkheimer, esse fenômeno iluminava alguns aspectos da sociedade nazista, sobretudo porque a disputa entre diferentes grupos de empresários pelo controle do estado alemão se assemelhava a uma disputa mafiosa.
Os atos de violência, corrupção e extorsão praticados por bandos a mando de capitalistas pode ser compreendido como expressão da luta entre burgueses por uma fatia maior de mais-valor. Para obter e se apropriar dela, empresários podem usar todos os meios possíveis que estiverem a seu alcance, incluindo aqueles fora da lei. A transição da sociedade burguesa liberal para o capitalismo monopolista assistiu ao crescimento de práticas dos burgueses que lhes garantissem vantagens na luta concorrencial: formação de grupos mafiosos, uso de violência contra adversários e, claro, uso de força direta e crescente contra trabalhadores. Não deveria espantar o fato de que o aparato estatal alemão fosse tomado por grupos cujas ações assumiam feições próximas ao banditismo. O recurso a diferentes formas de violência não é um ponto fora da curva do andamento da sociedade burguesa, mas faz parte dela.
Por outro lado, esse conjunto de transformações a que Horkheimer e Adorno fazem alusão também teve efeitos sobre os trabalhadores alemães e suas organizações. A centralização e a concentração do capital não intensificaram apenas as lutas entre as classes dominantes, mas também tornaram o reconhecimento das relações de exploração menos imediatas. Ao mesmo tempo em que se torna mais difícil identificar objetivamente quem são os patrões, os membros das classes trabalhadoras têm mais dificuldades em se reconhecer como membros de uma mesma classe. Isso não acontece apenas porque o capital se torna cada vez mais um poder objetivo sobre os trabalhadores, que detêm cada vez menos o controle sobre o processo de produção e seus resultados. Conforme os capitalistas se organizaram em bandos para se contrapor à concorrência, organizações de trabalhadores emularam essa forma de organização, de modo a se adaptar às transformações da sociedade burguesa.
Assim, a relação entre lideranças sindicais e partidárias com os operários também assumiria um caráter mercantil. Alguns sindicatos ofereciam proteção a seus membros, tal como os rackets dos grandes negócios. Além disso, eles passaram a estar interessados na continuidade da relação entre trabalhadores e capitalistas, já que seus rendimentos dependiam das relações de exploração. Porém, a contrapartida mais importante desse processo para a teoria crítica consiste no fato de que as próprias organizações dos trabalhadores contribuíam para que a exploração e a dominação capitalista fossem aceitas como naturais.
Algumas sugestões para a análise de problemas contemporâneos no Brasil
Tratei aqui de alguns aspectos das análises da teoria crítica sobre o fascismo. Podemos nos inspirar em suas considerações sobre o assunto para pensarmos o atual contexto social e político no Brasil, especialmente a relação entre a crise que vivemos há alguns anos e a ascensão e consolidação do bolsonarismo. Não estou afirmando categoricamente que vivemos em uma sociedade ou regime fascista – até porque se trata de sociedades e momentos históricos distintos. Na realidade, o que importa é levar o raciocínio de Horkheimer e Adorno ao extremo. De tal forma, ele ilumina alguns problemas de nossa realidade. As circunstâncias que levaram à eleição de Bolsonaro e à sua massa de seguidores e eleitores devem ser entendidas pelos problemas trazidos pelo desenvolvimento do capitalismo.
No Brasil, as transformações no processo de acumulação de capital nas últimas décadas levaram a uma reconfiguração das classes e das relações entre elas. A queda da lucratividade a partir dos anos 1980, em sintonia com o declínio das taxas globais de acumulação, indicou uma reorganização interna dos investimentos capitalistas. A indústria cedeu lugar à predominância das finanças e do agronegócio. A crise de 2008 acentuou as dificuldades da acumulação de capital, após um breve período de expansão nos governos Lula. Na sequência, a partir dos mandatos de Dilma Rousseff, assistimos a um aumento da tensão política e do acirramento dos conflitos entre diferentes setores das burguesias, que passaram a contestar cada vez mais a capacidade das administrações petistas em gerir a acumulação de capital. O golpe de 2016 e a posterior eleição de Bolsonaro ocorreram na esteira desses processos.
Ainda que tardio, o apoio ao candidato de inclinações fascistas por partidos da direita tradicional representou um momento de inflexão entre as classes dominantes. Diante das dificuldades em sustentar as taxas de lucro depois da crise de 2008, a escolha por Bolsonaro representou uma tentativa de resolver a crise política que se arrasta desde 2013 e rebaixar ainda mais as condições de vida da maior parte da população, no empenho de recuperar os lucros mediante arrocho salarial, carestia e insegurança no trabalho. Ao mesmo tempo, a ascensão de figuras como Sérgio Moro, Luciano Hang e dos agrupamentos de militares indicam que os grupos burgueses estão dispostos a aceitar diferentes formas de violência e ilegalidade para expandir seus negócios. Ocorre, portanto, uma disputa entre as burguesias no Brasil. Esse conflito ficou expresso na prisão de empresários com a Operação Lava Jato, que mostrou que mesmo alguns grupos empresariais serão alvo de dispositivos jurídicos que transcendem as fronteiras da legalidade.
A descrição desse cenário se assemelha, em parte, às análises da teoria crítica sobre os rackets. Se no período “clássico” do fascismo os grupos burgueses se organizaram como mafiosos e se enfrentaram violentamente, resultado da concentração e centralização do capital, no Brasil contemporâneo as relações entre as classes dominantes denotam uma solução quase improvisada perante as tendências de estagnação econômica e o descontentamento da maioria das pessoas. As burguesias brasileiras seguem à sua maneira as inclinações de suas semelhantes mundo afora. A crise de 2008 fez explodir uma série de revoltas que marcam a insatisfação com as condições de vida e com as soluções institucionais para o aumento da miséria e do desemprego. Diante desse cenário, a ascensão e a escolha de partidos políticos de extrema-direita buscam resolver esses impasses. Tal como seus pares nos Estados Unidos, Hungria, Itália ou Filipinas, Bolsonaro mostrou que o recurso à violência é uma solução possível para resolver a crise brasileira, mesmo que isso represente um risco aos diferentes grupos capitalistas. Ao mesmo tempo, os discursos e as práticas anti-política não se opõem apenas às instituições da democracia representativa. Eles também são resultados das próprias limitações das formas pelas quais a sociedade capitalista tenta apaziguar suas contradições. A insatisfação com a política expressa tais limitações e é apropriada com sucesso por movimentos de extrema-direita.
A referência ao sentimento difuso e generalizado de revolta a que assistimos no Brasil e no mundo permite aprofundar o exame sobre as classes trabalhadoras, as transformações em suas condições de existência e suas formas de organização. Embora a base bolsonarista seja composta principalmente por membros da “classe média”, seria importante compreender por que parcelas dos trabalhadores brasileiros aderem às ideias do atual presidente ou, ao menos, votam nas candidaturas de extrema-direita. Essa discussão passa por aquilo que se convencionou chamar de conservadorismo das camadas populares e dos evangélicos, em particular. Assim, é necessário entender por que existe essa relação entre o suposto conservadorismo daqueles estratos e o apoio a um ideário baseado no culto à violência e na resolução dos problemas da sociedade por lideranças autoritárias. Parte da resposta se encontra nas mudanças do perfil dos trabalhadores brasileiros nas últimas décadas, que acompanharam as transformações provocadas pelas tendências contemporâneas da acumulação de capital.
Mais do que uma simples manipulação e ocultação de interesses, o apoio de subalternos a Bolsonaro e seus representantes envolve a identificação com partes das manifestações ideológicas atuais. Quando trabalhadores incorporam valores como empreendedorismo e competição, isso está ligado ao modo como eles encaram e respondem às mudanças em suas vidas nas últimas décadas. Traços como informalização acentuada do emprego, financeirização da vida cotidiana, aumento das dívidas e desemprego permanente ajudam a entender como as dificuldades dos trabalhadores em se verem como tais se referem à própria reorganização do processo de produção capitalista.
Um exemplo significativo dessas tendências reside no fato de que trabalhadores de aplicativo como o Uber vejam a empresa como uma colaboradora, e não como uma agência de sua exploração. Sob a pressão de sair do exército de desempregados, esses trabalhadores colocam sua força de trabalho à disposição em todas as horas do dia e, mesmo assim, podem se enxergar como autônomos em busca de um bônus e em competição com seus colegas. Tais características também se associam a um processo de desorganização política, já que a experiência de se constituir uma classe torna-se menos inteligível, e que tem como contrapartida a associação a grupos religiosos conservadores e reacionários. A religião funcionaria como um lugar onde as pessoas ainda podem manter laços comunitários e de vizinhança, um contrapeso à brutalização da realidade da maioria daqueles que só tem sua força de trabalho para sobreviver. Ao mesmo tempo, há um vínculo entre o sentimento difuso de desagregação e degradação contínua da vida cotidiana, por um lado, os traços apocalípticos e revelacionistas de muitas das igrejas evangélicas, por outro. Se o mundo parece mesmo desabar sobre nossas cabeças, então, só restaria a muitos dos trabalhadores buscar alguma espécie de salvação – mesmo que ela implique aderir à exclusão física de outros.
Por isso, não se pode falar em uma relação causal simples entre classe social e apoio às extremas-direitas. Se o fascismo fosse encabeçado apenas pelas pequenas burguesias, ele não teria sido capaz de angariar apoio em todas as classes sociais. O exame da teoria crítica sobre os rackets sugere que as formas de organização dos trabalhadores, especialmente se elas se adequam à organização da produção capitalista, é um aspecto importante a ser levado em conta. No caso brasileiro, a mistura entre adesão a valores neoliberais, manifestações religiosas com fortes traços patriarcalistas, mudanças no perfil da força de trabalho, enfraquecimento das organizações autônomas de trabalhadores e a paralela adaptação de muitas delas aos processos produtivos e políticos institucionais fez com que experiências de lutas não tivessem continuidade e forte enraizamento.
Diante desse quadro, a experiência sobre a realidade e uma possível contraposição à atual forma de organização social se tornou algo dramático. O asselvajamento da experiência cotidiana no Brasil se intensificou nos últimos anos e atinge consideravelmente as classes trabalhadoras. Elas também podem se transformar em sujeitos brutalizados e que aderem a soluções violentas para as crises atuais. Quanto mais os problemas econômicos e políticos se arrastam, quanto menos as pessoas conseguem estabilidade em suas vidas e quanto menor é o controle e o acesso às decisões que as afetam, mais a violência direta parece ser uma solução razoável diante da incapacidade da acumulação de capital trazer de volta os empregos perdidos ou diante do fechamento das instituições politicas em relação à vontade dos eleitores e representados.
No momento em que escrevo, ainda paira no ar a ameaça de que Bolsonaro seja reeleito. Contudo, mesmo sua derrota eleitoral não representa o fim das articulações dos movimentos da extrema-direita brasileira. É preciso levar a sério a insistência de Adorno e Horkheimer a respeito das causas objetivas do fascismo. A situação de “salve-se quem puder” a que estão submetidas a maioria das pessoas no país, a persistência de uma solução pela política institucional e a limitação das forças emancipatórias indicam que soluções violentas e irracionais ainda são uma possibilidade. As práticas sociais burguesas e suas formas de representação encontram ampla aderência, ao mesmo tempo em que os indivíduos se defrontam com sua irracionalidade, o que reforça o delírio da sociedade capitalista. Enquanto tais problemas permanecerem presentes, uma saída para a crise brasileira semelhante ao fascismo persistirá no horizonte.
A versão completa do texto pode ser lida na página da Revista Lua Nova: https://www.scielo.br/j/ln/a/L7jv5hgRcXBDLG83yRLs8BH/*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC
[1] Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e Professor Substituto pelo Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Fonte Imagética: Photo by Jon Tyson on Unsplash. Disponível em <https://unsplash.com/photos/bif0W08qQk8>. Acesso em 14 out 2022.