Sérgio Mendonça Benedito[1]
No último dia 30 de março de 2023 o fórum permanente Democracia, Direitos e Desenvolvimento (3D) promoveu, em parceria com o Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC) e o Centro Internacional Celso Furtado (CICEF), a primeira mesa de discussão intitulada Desafios da Democracia no Capitalismo Periférico. O convidado para a abertura dos debates foi o professor da Universidade de Brasília (UnB) Luís Felipe Miguel, que lançou recentemente a obra Democracia na Periferia Capitalista (Autêntica, 2022). A mesa contou com a mediação de San Romanelli Assumpção (IESP-UERJ).
O fórum 3D, cujo subtítulo é Desafios do tempo presente, constitui-se como uma rede nacional de pesquisadoras/es, em contato há alguns anos, que trabalham nas linhas de teoria política, pensamento político brasileiro, pensamento econômico brasileiro, entre outras. Seu intuito é manter um projeto comum de reflexão sobre os desafios da atualidade, estimulando a produção intelectual, de memória e diálogo com a sociedade. Atualmente é coordenado pelos professores José Artigas de Godoy (UFPB), Carlos Pinkusfeld Bastos (UFRJ) e a professora Vera Cêpeda (UFSCar).
O objetivo deste texto é apresentar um relato sintético do debate então ocorrido. Por óbvio, não será possível contemplar toda a densidade e os detalhes da discussão, mas pretendo destacar os principais aspectos abordados a partir dos próprios eixos do fórum permanente, ou seja, democracia, desenvolvimento e direitos.
Miguel iniciou sua fala chamando atenção para o tema da crise da democracia, problematizando a maneira como esta questão ganhou destaque recentemente – após a vitória eleitoral de Trump nos EUA e do Brexit no Reino Unido, em especial. Ocorre que este tema vinha sendo debatido há mais tempo, frequentemente relacionado com as democracias do Sul global. Nos países alheios ao centro geopolítico, a desdemocratização sempre foi uma ameaça, dados os altos índices de corrupção, as promessas não cumpridas das elites políticas (após a terceira onda democrática) e a consequente falta de confiança popular nas instituições. Nos últimos anos, porém, o que se observa é que essa precariedade democrática passou a ser uma realidade também nos países do Norte. Com a social-democracia e os liberais cada vez mais aderentes às políticas neoliberais, e o progressivo esquecimento das lutas dos movimentos populares de décadas anteriores pela democracia e direitos mais amplos, a população restou desalentada, o que propiciou a competitividade de partidos extremistas de direita.
Com base nesse diagnóstico, é possível rechaçar a ideia de que teorias e interpretações sobre as democracias do Norte serviriam de modelo para entender as sociedades democráticas da periferia capitalista, e da América Latina em particular. É necessário pensar, de maneira mais detida, as especificidades de cada processo político, porque a democracia é um conjunto de respostas a desafios e conflitos sociais efetivos – não há um padrão a aplicar ou implementar. Ainda assim, a democracia constitui-se, de forma geral, como uma forma de dominação, mas também um horizonte de demandas emancipatórias. A questão está em como lidar com a relação entre processos políticos concretos e o ideal democrático dos grupos sociais. Apresentadas essas premissas, a hipótese central de Miguel torna-se mais evidente, a partir de um contraste entre as experiências do Norte e do Sul: a particularidade das democracias periféricas está em que existe uma dificuldade maior do campo popular para se inserir na política e lutar por direitos sociais e equalização da enorme desigualdade vigente. Como se observa no caso brasileiro, as elites sociais impõem um veto explícito a políticas redistributivas, por mais tímidas que sejam, e independentemente do volume de apoio popular a elas.
Então, se para Przeworski a democracia é o regime da incerteza, neste quadro o processo político passa a ser cada vez mais moderado, limitado em seu campo de possibilidades. Se esse fenômeno era mais evidente e comum no Sul, assistimos hoje a sua generalização no Norte global – um poder de veto permanente, ainda que implícito, frente a políticas econômicas e sociais voltadas para a maioria da população. Daí o desmonte de medidas redistributivas, manutenção de estruturas tributárias regressivas, a austeridade fiscal em detrimento do atendimento das demandas populares e, enfim, a despolitização das instituições e a prioridade aos interesses de agentes do mercado (vide Wolfgang Streeck), conformando democracias menos que formais. Segundo Miguel, essa democracia limitada, que mais recentemente assombra o Norte, é uma velha conhecida na América Latina.
No caso particular do Brasil, as barreiras políticas são mais conhecidas por nós. As classes dominantes, as altas patentes militares e interesses internacionais, como dos EUA, impõem limites a qualquer medida que implique em menor desigualdade social. Há uma contraposição histórica, nos termos de Miguel, entre voto e veto, que muda conforme o tempo e pode ensejar em grandes reações políticas, como no caso dos golpe civil-militar de 1964 e o golpe parlamentar de 2016. Assim, apesar do país ter adotado uma Constituição avançada em direitos em 1988, não chegamos a concretizá-la plenamente, e os avanços promovidos pelos governos de esquerda foram freados pelo processo de impeachment de Dilma e a posterior eleição de Bolsonaro. Nesse contexto, fica evidente como a extrema-direita soube se aproveitar da frustração de uma considerável parcela da população com as promessas não-realizadas da democracia – e a ascensão de pessoas negras, mulheres e LGBTQIA+. E, apesar da vitória do campo democrático em 2022, o extremismo não desaparecerá e mantém poder de organização para travar a agenda progressista. Nessas circunstâncias o risco é que nos contentemos com a defesa da Constituição, e não que ela sirva para instigar a nossa criatividade democrática.
Após a fala de Miguel foi aberto o debate. Carlos Bastos iniciou o comentário parabenizando o autor pela obra, que aborda de maneira instigante uma ampla gama de temas relacionados à democracia em perspectiva global e local. Sua fala centrou-se, grosso modo, em estabelecer algumas comparações entre os EUA e o nosso país, em particular acerca da política da direita e das classes dominantes. Além da interessante tese de que o Norte vive agora o que o Sul sempre viveu, destacou o fato de que as nossas elites são de fato menos tolerantes à agenda de direitos das classes subalternas. Há uma diferença de que, no Brasil, as lutas sociais se dão pela conquista de direitos e redução das desigualdades, enquanto que nos EUA são principalmente contra a redução de direitos. No entanto, uma constante entre os dois países se observa no fato de que o neoliberalismo é um grande produtor de frustração popular – não gera emprego e crescimento, retira direitos, etc. Dada a situação de veto das elites sociais, e a pressão de interesses econômicos, o Brasil lamentavelmente se rendeu não a um modelo de desenvolvimento, mas a um de não-desenvolvimento, o que pode minar ainda mais a democracia.
A seguir foi a vez de San Romanelli fazer seus comentários. Dois aspectos lhe chamaram atenção positivamente na leitura da obra: a maneira como Miguel coloca ênfase nas duas características da democracia (como dominação e como horizonte de demandas emancipatórias), e a ideia de que existe uma intolerância política (veto estrutural) no Brasil frente a avanços da pauta distributiva. No entanto, manifestou uma certa inquietação com a forma como a democracia entendida como forma institucional de dominação pode levar ao reforço de concepções que pensam o poder de uma forma foucaultiana, do poder em todos os espaços – o que torna a defesa da democracia como valor mais difícil. Um pressuposto normativo perpassa a obra, ainda que implicitamente: a igualdade; mas a maior parte das concepções de democracia não adota esse pressuposto. Sua questão foi como lidar com isso e tornar a distinção mais clara. A seguir abordou o problema do conflito entre voto e veto, pensando se este último não seria apenas das elites, mas passaria também para o restante da população no debate público. Enfim, questionou sobre a desdemocratização sob o viés da pauta de costumes, visto que Miguel dá uma ênfase maior (e consciente) ao aspecto econômico.
Foram feitas, ainda, duas perguntas ao autor. Ivo Coser questionou, partindo do pressuposto da capitulação do Estado ao capital financeiro, se não há um pessimismo exagerado quanto à possibilidade de rompimento da hegemonia do capital. Enfim, Leonardo Belinelli indagou se há paralelos entre a leitura que Miguel realizou em sua obra e a produção de Florestan Fernandes, dada a sua visível compatibilidade com a tese do sociólogo em A Revolução Burguesa no Brasil. Além disso, colocou uma segunda questão sobre dependência e globalização: não seria mais propício superar a situação narrada, e aprofundar a democracia, com um movimento de caráter mais internacional?
Miguel iniciou respondendo às questões de Belinelli. Florestan é de fato uma das referências que mobilizou, particularmente em um aspecto, aquele da impotência da nossa classe dominante e sua relação subalterna frente às elites internacionais. Nesse quadro aquela classe exige a manutenção de uma hierarquia social bastante extensiva, e a necessidade de manutenção do seu status social, o que implica em veto a políticas igualitárias. A respeito da questão sobre como superar esse quadro, articulando as perguntas de Coser e Belinelli, realmente não há uma resposta fácil para a superação da hegemonia do capital e do mercado financeiro. Existem margens para produzir avanços, que precisam ser trabalhadas politicamente. Para começar, é preciso superar a visão de que não há alternativa, a esquerda precisa ampliar seu horizonte e retomar a construção de um projeto econômico de amplo apelo, esforço este que foi abandonado quando aderiu às pautas reformistas e defesa da democracia.
Em seguida passou a responder San Romanelli. Destacou que é curiosa a instigação de um sentimento antissistema contra grupos vulneráveis que conquistam direitos. Seria incompreensível racionalmente, mas a política é perpassada por afetos e emoções. Assim, concorda que deu mais ênfase ao aspecto econômico, mas articulado com outras expressões de preconceito. Existe de fato uma confluência entre liberalismo econômico e conservadorismo de costumes, como dão provas figuras como Amoêdo e Zema, do partido Novo. Não poderá ocorrer uma construção democrática com a exclusão de pessoas negras, mulheres, indígenas e LGBTQIA+, mas há uma confluência forte entre defesa da desigualdade material e manutenção dessas hierarquias. Enfim, sem dúvida existe um componente igualitário central para a ideia de democracia. A igualdade política, formal, depende do saneamento de outras formas de desigualdade – para que as pessoas possuam as mesmas condições de intervir na tomada de decisões. A democracia como ideal mantém esse núcleo, mas quando se cristaliza não consegue superar as barreiras vigentes. Ao final, destacou que tudo o que escreve sobre democracia está em contraposição a Giovanni Sartori, que defendia a ideia de que seria necessário manter separados o regime real daquele ideal. Temos na verdade de lembrar o tempo todo o que o ideal democrático promete, e promover esta aproximação.
O debate seguiu com mais perguntas ou comentários. Bernardo Ricupero retomou alguns pontos colocados por Carlos Bastos a respeito da comparação entre Norte e Sul e a ‘brasilianização do mundo’. Nos países centrais as classes baixas também votam na direita populista (EUA), e frequentemente a esquerda encontra dificuldades em se conectar com a população em geral (França, Itália). Já na América Latina estamos vivenciando um novo ciclo de esquerda. Nosso problema não seria o inverso, a falta de penetração da esquerda nas elites sociais? Carla Curty ressaltou que o livro de Miguel tem muito a ver com o projeto do fórum 3D. A partir da sua perspectiva de economista, ela observa uma confluência entre crise econômica e ascensão da extrema-direita – o período entre Dilma 2 e Temer ficou marcado pela austeridade, por exemplo. No livro e na apresentação, Miguel expôs que as elites sociais se rebelam contra qualquer medida de combate à desigualdade. Mas a austeridade não seria também um elemento no acirramento do conflito político?
Na sequência, Sérgio Montalvão fez uma pergunta sobre a relação entre desesperança popular na democracia e fortalecimento político do conservadorismo, dadas as expectativas frustradas na Nova República. Enfim, Carlos Bastos fez um comentário sobre a suposta inevitabilidade dos acontecimentos históricos, desde o fim do socialismo real, dos trinta anos gloriosos e ascensão do neoliberalismo – que geraram a afirmação de que não há alternativa, pois as soluções de esquerda, incluindo o desenvolvimentismo, restaram esgotadas. Para ele, os limites atuais são mais políticos do que econômicos, e algo pode ser feito, mesmo sob o sistema capitalista – ou seja, mesmo sem aderir a uma política socialista de fato.
Miguel começou a sua resposta concordando com Bastos, no sentido de que o fechamento dos horizontes torna o trabalho de imaginação política muito mais difícil. Um exemplo disso é o senso comum anti-Estado e contra a intervenção na economia – algo que mudou um pouco nos últimos anos, até devido à pandemia de Covid-19, mas que nos anos anteriores era um dogma. No Brasil, contudo, essa ideia permanece muito forte, e o debate sobre ideias econômicas é muito restrito, pautado por ideias absolutas. Assim, precisamos pensar em algo diferente do que já existe e, recuperando Gramsci, sem perder os pés no chão. Quanto à pergunta colocada por Montalvão, de fato existe um déficit de expectativas em grandes parcelas da população. A direita soube se aproveitar dessa conjuntura e assumir um papel antissistema. Daí o sucesso do populismo de direita, pois o discurso anti-establishment torna-se sedutor a pessoas que perderam a confiança na política comum.
Passando à questão de Ricupero, sobre por que os pobres continuam com a esquerda na América Latina, diferente do Norte global, o fator tempo é um elemento central, entre outros. Quem promoveu grandes mudanças na vida da população foi a esquerda, e as pessoas possuem uma memória disso, pois trata-se de um fato recente. Já na Europa e nos EUA essa mesma memória não existe, social-democratas e liberais aderiram ao neoliberalismo. Enfim, respondendo Curty, Miguel concordou que a austeridade é um fator que leva ao desalento da população e a aderência a discursos antidemocráticos. Pontuou ainda, comparando a extrema-direita na Europa com o Brasil, que no Norte seus partidários se colocam claramente contra medidas econômicas impopulares – ainda que tragam no discurso outros elementos, como a pauta anti-imigratória. Já no Brasil, Bolsonaro adotou Paulo Guedes e o discurso de elite voltado à redução de direitos e de políticas sociais. E, assim, o candidato foi chancelado pelos grupos sociais que intentavam manter-se acima do resto da população.
Enfim, a última pergunta do debate foi feita por Robson Reis, que apresentou um histórico do uso das mídias sociais pela extrema-direita na Europa, incluindo o caso da Cambridge Analytica. Assim, perguntou o que Miguel pensava sobre o peso das novas mídias nesse processo de desdemocratização. O palestrante começou enfatizando a dificuldade do cenário, pois hoje a assim chamada polarização não se baseia em opiniões ou posições políticas distintas, substantivas, mas em mentiras e fatos alternativos – universos de sentidos completamente distantes entre si. O que se perdeu na democracia recentemente foi o plano comum de diálogo, e por isso o espaço de debate público se aviltou e deteriorou de uma forma muito ampla. A extrema-direita soube se aproveitar das tecnologias a seu favor, criando pseudo-problemas para a mobilização política. Nessa conjuntura, precisamos centrar a nossa reflexão sobre esse tema e pensar alternativas. Por isso precisamos ter clareza desse desafio, político e normativo, de reconstruir as condições do debate público frente ao que foi propiciado pelas novas mídias e as redes sociais.
Concluo com a impressão de que a profícua discussão promovida pelo fórum Democracia, direitos e desenvolvimento veio a calhar neste momento de início de um novo ciclo de esquerda no governo federal. Os desafios são enormes, mas a principal mensagem que fica das falas e do livro do professor Luis Felipe Miguel é a de que democracia não combina com desigualdades. Em suma, ela não pode ser efetiva com um elevado grau de disparidades sociais. O futuro da democracia passa necessariamente pelo pleno atendimento de demandas sociais negligenciadas pelos governos irmãos de Temer e Bolsonaro, a reconstrução da economia e do debate público, este último baseado em propostas políticas factíveis. Apesar das resistências das elites econômicas e sociais, precisamos avançar a um ponto em que o racismo, a misoginia e a lgbtfobia sejam atacados de maneira efetiva, para que uma parcela mais ampla da população tenha voz no debate e possibilidade de intervir nas decisões concernentes às políticas públicas de seu interesse – e que lhes afetam. Assim, esperamos, será possível estimular um novo fôlego de criatividade democrática e pautar maneiras alternativas de pensar a política para além dos dogmas atuais.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Doutorando em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Bolsista CNPq, membro do grupo de pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica e da equipe editorial do Boletim Lua Nova. E-mail: sergiombk@gmail.com