Igor de Carvalho Leocadio[1]
29 de fevereiro de 2024
Tomando a fala de Macunaíma “muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são” como inspiração, o professor João Antônio de Paula (UFMG) elaborou o texto “muita… e pouca… os males do Brasil são”: contradições da formação social brasileira, que serviu de base para a discussão da mesa de mesmo nome e sobre o qual ele discorreu na primeira parte do debate realizado dia 31 de agosto de 2023 pelo Fórum Permanente de Discussão do Projeto Pró-humanidades, Democracia, Desenvolvimento e Direitos (3D): desafios do Tempo Presente, com mediação do professor José Artigas (UFPB).
Por um lado, as lacunas do título fazem uma provocação ao leitor quanto aos males do Brasil, frequentemente interpretados por pensadores do século XX a partir das suas insuficiências e excessos, mas ao mesmo tempo servem de ponto de partida para a proposição do autor. De forma bastante original e estabelecendo correlações entre fatores econômicos, políticos e socioculturais, João de Paula dá destaque a três eventos cronologicamente próximos da história brasileira que, em geral, ganham centralidade como elementos da formação da sociedade brasileira mas são tratados como independentes: a abolição da escravatura, o modernismo e o desenvolvimentismo. Para ele, as políticas públicas, instituições, avanços legislativos e transformações sociais têm girado em torno desse eixo tríplice há mais de cem anos, ditando os rumos da modernização do país.
O autor propõe que vários países da periferia do capitalismo se debruçam sobre supostas falhas em seus processos de desenvolvimento, incluindo aí latino-americanos e países ibéricos – ou seja, nações que teriam uma percepção de potencial subaproveitado ou que experimentaram um apogeu seguido por uma decadência prolongada. Já no século XIX, essa certa fixação por uma explicação para o estado de coisas de países periféricos se observa em hipóteses propostas por diferentes autores e, partindo desse exercício recorrente de tentativas de explicação dos déficits do Brasil, De Paula aqui começa a recuperar seu diagnóstico.
O primeiro pilar dessa radiografia é o processo abolicionista, que para ele foi uma transformação social profunda, mas uma revolução incompleta. pois resultou de lutas sociais pela emancipação da população escravizada, porém não se articulou com as lutas pela reforma agrária e, por causa disso, a população recém-liberta não teve oportunidades de se emancipar por meio do acesso à terra.
O segundo componente da construção da nação brasileira foi o modernismo em suas diferentes facetas, manifestas em movimentos da direita e da esquerda brasileira, assim como, ao mesmo tempo, na literatura regionalista e na arte antropofágica. Essas iniciativas dialogam com outros movimentos e manifestações culturais de outros países e absorvem o que se valoriza sem meramente mimetizá-las, e ainda com o movimento espiritualista do Grupo Festa e suas raízes religiosas. Contudo, a efervescência das diferentes vertentes modernistas não teve sucesso em se conectar com a cultura popular, salvo poucas obras, traçando assim uma linha divisória entre a erudição modernista e as manifestações culturais da maioria da população, numa impermeabilidade que diminuiu o potencial transformador do modernismo, a exemplo do seu impacto inócuo no sistema educacional brasileiro.
O desenvolvimentismo é o último elemento descrito por João Antônio de Paula, sendo compreendido em toda a sua complexidade a partir da perspectiva de Celso Furtado, com destaque para a obra Criatividade e dependência na civilização industrial (1978). Desenvolvimento refere-se aqui a transformações emancipatórias, processo que vinha em curso no Brasil do meio dos anos 1950 até ser interrompido com o golpe de 1964. Nesse período, as ligas camponesas e o movimento estudantil participavam ativamente do debate político em torno dos temas que atendiam as necessidades básicas da população brasileira e, mesmo após essa parada traumática nas transformações do país, Furtado reitera a necessidade de um desenvolvimentismo para o Brasil em diferentes obras.
O autor resgata um ponto-chave do argumento de Celso Furtado e que pode ser aplicado aos três pontos discutidos até então, que é a necessidade de implementação de reformas que, em sua profundidade, acarretam processos revolucionários. Há uma incompletude tanto no processo da abolição quanto no modernismo e no desenvolvimentismo. Há uma erosão desses pilares do Brasil como nação por uma resistência obstinada das classes dominantes brasileiras em abrir mão de quaisquer privilégios desde o século XIX até a atualidade, como pudemos observar no apoio ao governo Bolsonaro (2019-2022).
O professor Bernardo Ricupero (USP/CEDEC) abriu os comentários ressaltando o caráter salutar dessa conexão entre os elementos destacados por João de Paula, articulando esses três momentos históricos em sua afinidade como esforços por um projeto nacional.
O abolicionismo buscava integrar a maioria da população à participação efetiva na vida no país, algo que é evidenciado por propostas como a reforma agrária e a abolição sem indenização aos ex-escravistas, defendidas por reformistas como André Rebouças e Joaquim Nabuco. O modernismo, visto como um movimento de ideias, a exemplo do discurso de Graça Aranha em 1924 e da obra de Mário de Andrade, assim como o desenvolvimentismo, em seu foco econômico industrial como visto nas obras de Celso Furtado, tinha claro caráter de construção nacional e de força política. O apontamento final de Ricupero relembra a crítica que mais tarde Furtado faz ao modelo desenvolvimentista inserido na lógica capitalista global, que não se sustenta sem uma periferia, sem uma hierarquia geopolítica. Isso significa que, antes de uma internacionalização acrítica, há a necessidade de uma integração da população nacional em um projeto popular.
Em seguida, a professora Maria Mello de Malta (UFRJ) levantou um questionamento sobre as fortes reações das classes dominantes aos movimentos reformadores e revolucionários discutidos por De Paula. Ela também pediu um comentário sobre a tensão entre um projeto de nação com integração da grande maioria da população brasileira a partir da proposta do PCB e, mais tarde, um do PT, que apresentam modelos de formação econômico-social distintos.
Wilson Vieira, parte da audiência, reforçou como a concepção de desenvolvimento de Celso Furtado é interdisciplinar e calcada na social-democracia europeia, ao mesmo tempo que amadurece a necessidade de uma radicalização da democracia e de um Estado planejador em contraponto àquilo que se dava durante a ditadura ainda sob a alcunha de desenvolvimentismo. Matheus Manhães perguntou em que medida é possível falar em um nacionalismo modernizador.
Lucas Baptista pediu para que a dimensão cultural da luta democrática fosse mais esmiuçada, dando os exemplos de abolicionistas que lutavam contra um nacionalismo por excelência racial, de Lênin e sua preocupação com a mudança cultural na construção da revolução, além de Celso Furtado e seu enfoque nas transformações culturais necessárias para o desenvolvimento. Por fim, Jaime Leon questionou como os três momentos debatidos impactam a democracia no Brasil e qual o papel da reforma agrária nessas discussões.
A partir das questões relevantes trazidas pela mesa, De Paula retomou a noção de que as reformas necessárias propostas por Furtado não se encerram em si mesmas, pois ensejam mudanças profundas de médio e longo prazo. A realização de tais reformas é próxima da ideia de revolução permanente defendida por socialistas como Trotski. Florestan Fernandes também converge em seu discurso, ainda que fale abertamente de uma superação do capitalismo para que um desenvolvimento brasileiro seja verdadeiramente possível. Em suma, João de Paula observou que esses intérpretes do Brasil defendem a importância de reformas revolucionárias. A reforma agrária como um projeto antilatifundiário é um exemplo fundamental no processo de democratização do Brasil com efeitos mais duradouros.
O autor relembrou como ainda, antes da formação do Estado alemão, pensadores como Fichte e Marx se depararam com as questões da desigualdade e de um atraso econômico-social em comparação à França e à Inglaterra do século XIX, superáveis apenas por meio de reformas ou revoluções, portanto, formas de desenvolvimento, distribuição de renda, riqueza, poder e informação. Ao analisar o vocábulo “desenvolvimento” e suas traduções para o espanhol, desarrollo (“tirar a rolha”), e francês développement (“tirar do envelope”), ele ilustra como a natureza desse processo passa por uma revelação de identidade nacional e de exploração dos potenciais de cada nação em escala internacional.
Dois comentários fecharam o debate: uma crítica de Jean Costa aos desdobramentos do pensamento alemão no século XX, enquanto Ronaldo Tadeu de Souza questionou o papel da intelectualidade brasileira na concretização dessas reformas revolucionárias diante de uma alegada incorporação dos intelectuais brasileiros ao Estado, em contraste com intelectuais russos, que operam com mais autonomia e dispersão.
Por fim, João Antônio de Paula concordou com a centralidade da intelectualidade no papel de educadores populares para a promoção de revoluções e de identidade nacional, a exemplo de José Martí para a América Latina. No caso brasileiro, ele afirma que não faltaram ideias, e sim capacidade política de organizá-las em torno de um projeto de país, mas ao mesmo tempo admite que o projeto que já existiu envelheceu e falhou, logo é preciso pensar em uma nova solução.
De fato, carecemos de uma compreensão clara de como retomar e concluir as reformas revolucionárias debatidas aqui que não tiveram fruição plena até hoje. Mas me parece que a única forma de dar frescor a um modelo de desenvolvimento seja criticar mais abertamente esse sistema-mundo e propor um modelo mais equitativo, sem hierarquia entre periferia e centro, que supere o modelo capitalista como o conhecemos na sua forma tardia. Celso Furtado já apontava para a insuficiência de um mero rearranjo nos polos geopolíticos, talvez mais viável hoje num mundo que abre a perspectiva para uma multipolaridade real com o esgotamento do modelo neoliberal, a mudança do eixo produtivo e econômico para fora dos EUA e da Europa e um possível fortalecimento do Sul Global para um novo movimento de não alinhamento automático, ou seja, mais autonomia e menor subordinação a interesses do capital internacional.
*Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referência imagética: Cartaz de divulgação da mesa 4 do evento “Fórum Permanente de Discussão” do Projeto 3D: Democracia, Desenvolvimento e Direitos.
[1] Graduando em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor de inglês de cursos livres e particulares desde 2007. E-mail: icleocadio@gmail.com