Sérgio Mendonça Benedito[1]
O Cedec promoveu no dia 13 de maio de 2022 o seminário de lançamento do livro Quando é preciso decidir: Benjamin Constant e o problema do arbítrio, de Felipe Freller (PPGFil/UFSCar). Publicada pela editora Appris na passagem para o presente ano, trata-se de uma obra proveniente da tese de doutorado do autor, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo, e que recebeu o Grande Prêmio CAPES de 2021 – entre outras premiações. O seminário foi mediado por Eunice Ostrensky, orientadora de Freller no PPGCP/USP, e Ivo Coser (IFCS/UFRJ) ficou a cargo de iniciar a discussão a respeito da obra, a partir de um ponto de vista mais concentrado na teoria política contemporânea e no estudo do conceito de liberdade. Ainda que seja difícil fazer justiça à densidade do debate ali ocorrido, e em tão curto espaço, o objetivo deste texto é apresentar alguns dos principais aspectos da discussão.
Os apontamentos iniciais de Coser se voltaram a duas dimensões: metodológica e teórica. Primeiramente enalteceu o trabalho, cujas premiações vieram pertinentemente a reconhecer a qualidade. A seguir, elogiou a coerência metodológica da obra, que oferece ao leitor ou leitora uma ideia do que se faz em teoria política que lhe é particular se comparada disciplinarmente com a história ou a filosofia.
Freller trata sobre o problema do decisionismo na obra e no contexto político no qual Constant estava presente, na passagem do século XVIII para o XIX na França; e reconstrói esse contexto a partir do problema colocado. As circunstâncias e feitos deste autor, contudo, não são tomados de um ponto de vista instrumental: Freller demonstra como o contexto enriquece e complexifica a obra de Constant. Nesse sentido é importante notar como os acontecimentos e as mudanças políticas de então reverberam nas formulações do autor, escapando a estereótipos que classificam Constant ora como defensor implacável do Estado de direito e ora como autor vacilante à mercê dos ventos políticos da França revolucionária.
Já quanto à dimensão teórica da obra, o debatedor colocou duas questões relacionadas, respectivamente, ao mecanismo romano da ditadura e ao debate contemporâneo sobre a questão dos fins e valores inerentes a uma decisão. Inicialmente Coser sublinhou que a obra de Freller se desliga da literatura sobre o decisionismo na chave dos fins e meios, particularmente se comparado com a abordagem de Isaiah Berlin sobre Maquiavel. Assim, Constant seria um liberal que não expulsa o decisionismo mas busca elaborar formas de controle do elemento arbitrário. No contexto do golpe do 18 Frutidor a questão se tornava mais complicada, e o francês mudou de posição algumas vezes para responder à questão de como conciliar o arbítrio em decisões políticas com uma forma de governo liberal.
Um de seus primeiros recursos, aquele do poder “neutro” concentrado na figura do monarca, chegou inclusive a inspirar o poder moderador no Brasil Império. Uma primeira questão é a diferença entre aquele golpe e o mecanismo da ditadura, tal como tratado por Maquiavel nos Discursos[2], e como Constant pensava essa questão a partir do florentino – ponto que parece ter escapado ao trabalho. A segunda é a possibilidade de estabelecer uma produtiva relação entre a abordagem de Constant com a de Chantal Mouffe, na medida que, para ambos, de fato não pode existir poder neutro – o conflito político está sempre posto. Para o francês, não é possível trazer a verdade à política, mas, apesar disso, busca construir um poder de arbitrariedade controlada.
Então foi aberto espaço para que Freller respondesse às provocações de Coser, e ele manifestou a intenção de recuperar em sua fala, também, alguns pontos fundamentais da obra para as pessoas que não tiveram oportunidade de ler[3]. A princípio, é relativamente comum que Constant seja lembrado a partir de seu clássico texto sobre a liberdade dos antigos comparada à dos modernos. O debatedor, contudo, iniciou sua fala com Berlin mas a partir de um ângulo muito interessante – do decisionismo, dos valores e fins irreconciliáveis envolvidos na tomada de decisão política, e não de seus dois conceitos de liberdade. Ainda que não tenha abordado muito a obra de Berlin, Freller julga que a perspectiva deste último estaria no campo de um liberalismo não racionalista – ocupado também por Schmitt e Mouffe – no sentido de que a decisão não é apenas racional.
Apesar do contexto complicado em que se inseria Constant, seu projeto desde o início possuía uma base racionalista proveniente do Iluminismo, em confluência com Kant, Sieyés, entre outros. O que se percebe acompanhando a trajetória intelectual de Constant é que cada vez mais o arbítrio, rechaçado pela vertente liberal-racional, é tomado como um elemento inevitável, a ser contemplado e controlado na ordem política. Por tudo isso, Freller acredita que se trata de uma perspectiva distante daquela de Berlin e do ponto de vista pluralista.
A seguir, passou a se dirigir mais especificamente para as questões levantadas. Freller reconheceu a complexidade do momento do golpe do 18 Frutidor, as mudanças ocorridas nas posições de Constant e a questão do poder neutro que veio a influenciar o Brasil um pouco mais a frente. O problema passa pela dificuldade de estabelecer um governo liberal ou republicano em uma sociedade de valores e costumes tradicionais – tal como naquele contexto da França, às voltas com os simpatizantes da monarquia. Em relação ao mecanismo da ditadura, Madame de Stael, que foi uma colaboradora intelectual, concebeu uma forma de lidar com o problema a partir dessa noção. Ela propunha uma “ditadura das instituições” em oposição à “ditadura das perseguições” empreendida pelo governo republicano do Diretório. No entanto, considerando as categorias clássicas de Schmitt, avalia que ela se encontrava em um limbo entre conservar (ditadura comissarial) e criar a ordem (ditadura soberana).
Enfim, a respeito da questão sobre o político e a relação entre Constant e Mouffe, de fato o primeiro postulava um poder acima do Executivo e do Legislativo que preservasse o regime republicano – um poder dito neutro, mas que de fato não pode ser. Houve concordância, então, de que Constant levantava uma questão pertinente, duradoura, e ajudou a revelar uma das antinomias constitutivas dos regimes políticos modernos. Mais do que alguém que ofereceu uma fórmula exata para a manutenção da liberdade, Constant buscava pensar em como ela pode ser perdida. Ao incorporar o arbítrio, o Estado de direito deixa de ser uma questão bem resolvida no pensamento do francês.
Após a fala de Freller, foi aberto espaço para perguntas do público presente. Bernardo Ricupero (DCP/USP) observou uma questão interessante no debate, em proximidade com o pensamento de Oliveira Viana no Brasil: como erguer instituições liberais em uma sociedade que não é liberal? Aparece aí o problema dos costumes e das leis, tal como aborda Tocqueville, que estabelece uma comparação entre os Estados Unidos e o Antigo Regime francês. Sua dúvida está na possível relação entre a produção de Constant e de Tocqueville, a despeito das diferenças de geração e de contexto entre os autores.
Ronaldo Tadeu de Souza (DCP/USP) colocou três questões ao autor. A primeira foi se o problema do arbítrio em Constant não seria, tal como desenvolvido por Leo Strauss, aquele de “como se governa”, de que não há como evitar o decisionismo. A seguir, a dúvida foi como funcionam as instituições políticas inglesas para Constant, e se havia alguma influência em seu pensamento. Enfim, podemos concordar que a relação de poder é assimétrica, e as decisões afetam grupos sociais de maneira desigual; assim, não haveria sempre grande risco de decisionismo?
O último do bloco a colocar novos elementos para o debate foi Coser. A partir de um diálogo estabelecido com Roberta Soromenho Nicolete (ICS/UERJ), ele observou que que Constant articulou uma proposta de júri para julgamento de ministros de modo a disseminar o arbítrio socialmente, e por esse meio controlá-lo. Contudo, em outro momento, o francês buscou concentrar esse poder na figura do monarca. Sua dúvida é como se daria essa transição, e se seria aceita pela sociedade – afinal, a politização do poder neutro inevitavelmente abre margem para a contestação.
Respondendo inicialmente a Ricupero, Freller comentou que Constant era fonte intelectual importante no contexto francês e, apesar de ser difícil levantar as fontes de Tocqueville, pode ser que o primeiro tenha influenciado este último. Júris e poderes locais, por exemplo, já podem ser encontrados em Constant – em uma relação entre instituições e formação de costumes. A ênfase de Constant, de fato, está no fator institucional, que ocupa mais espaço no livro de Freller, mas o francês considera a opinião pública e os costumes como fundamentais para um regime liberal, em sua obra de maneira geral. O foco no institucional talvez tenha a ver com a dificuldade envolvida na mudança das instituições de modo voluntarista, que assim permanecem mais seguras. Os costumes caberiam ao lento progresso, enquanto que as instituições servem para proteção em momentos de crise, reações, ameaças à liberdade. Enfim cabe notar que, ao contrário de Constant, Tocqueville já se encontrava em um contexto de pessimismo com relação aos valores iluministas.
Passando às questões de Souza, o autor manifestou dúvida se “como governar” não seria uma questão perene, mais do que contextual, de forma genérica. O principal, e que sua obra aborda, é que a atenção ao contexto permite melhor entender as tensões do pensamento em uma determinada conjuntura. A respeito das instituições inglesas, de fato Constant foi um apologista do sistema inglês, ainda que na sua obra de maneira geral essa seja uma questão mais complicada. Para o francês a estabilidade inglesa no longo prazo esteve mais associada à contingência do processo político do que baseada em princípios. Enfim, concordou quanto à última questão que sempre existe o risco de intervenção do poder em contextos de crise política. Daí a necessidade de montar uma estrutura institucional para tentar controlar o abuso, o decisionismo. Por último, respondendo a Coser, Freller reconheceu que há uma diferença entre o poder difuso na sociedade e concentrado no monarca. Mas, no livro, buscou mostrar que a concentração do poder neutro ainda estava no quadro de um governo republicano. O júri proposto por Constant seria uma forma tardia em sua obra, associada com a responsabilidade dos ministros.
A questão derradeira do debate foi de minha própria autoria. Observei que Freller concluiu sua fala inicial declarando que “o Estado de direito não é uma questão bem resolvida na obra de Constant”. Existe uma impressão duradoura de que, no pensamento liberal, Constant é considerado como um dos pais do Estado de direito, contra o arbítrio, etc. Mas a questão é: Constant lega algo para a discussão contemporânea a respeito do arbítrio na vertente liberal? A impressão geral que se tem é que esse campo intelectual acabou por se aferrar – com todas as ressalvas e contextualizações necessárias – ao instrumento da prerrogativa lockeana, agora concentrada não no monarca mas no Executivo, no presidente[4]. Assim questionei se, a partir do seu ponto de vista, Constant possui alguma participação neste debate mais recente.
Freller manifestou primeiramente curiosidade, pois a solução de Locke seria mais perigosa do que aquela proposta por Constant – abrindo margem maior para ações arbitrárias com base no “bem comum”. Em seu juízo, a popularidade da prerrogativa e dos poderes de emergência tem a ver com uma certa centralidade do poder Executivo, que foi se estabelecendo com o tempo e ainda não era fato na época de Constant – o poder central naquele período era o Legislativo. É possível compreender esse acontecimento a partir do que Rosanvallon chama de “presidencialização das democracias” no século XX. Quanto ao legado, resta a visão convencional de Constant da condenação do arbítrio em nome do império da lei, a proteção do âmbito pessoal e das liberdades individuais – ainda que, como demonstrado, tenha tentado domar o arbítrio em uma forma de governo republicana. Mas outro seria a permanência de outros elementos de discricionariedade pontuais, como o indulto – ainda que alguns acreditem que se trate de uma instituição de raiz medieval[5]. Constant buscou teorizar o mecanismo e o propôs como um possível contrapeso que poderia ser benéfico politicamente.
Este profícuo debate promovido pelo Cedec faz parte de uma série de eventos realizados para lançamento e divulgação da obra de Freller que incluem um evento presencial na Livraria da Travessa (16/03), lives no PPGCPRI/UFPB (20/04), no IFCH/UFRGS (27/04) e no DCP/UERJ (28/04), e um debate no IESP/UERJ (23/05). O autor também participou de um episódio do podcast da Lua Nova, já disponível no YouTube. Para além do competente e qualificado trabalho de Freller, vale fazer menção à abertura para o diálogo e a sua habilidade em responder às mais diversas questões do público. Concluo este relato com um agradecimento pela oportunidade de discutir a obra, e faço votos de sucesso para os próximos eventos e produções – que aguardo com grande expectativa.
Este texto foi atualizado em 21 de junho de 2022.
[1] Doutorando em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Bolsista CNPq, membro do grupo de pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica e da equipe editorial do Boletim Lua Nova. E-mail: sergiombk@gmail.com
[2] Confira-se ao menos os capítulos 33 a 35, livro primeiro, da obra. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 102-111.
[3] O prefácio e a introdução da obra foram recentemente publicados pelo Boletim Lua Nova. Disponível em: <https://boletimluanova.org/quando-e-preciso-decidir-benjamin-constant-e-o-problema-do-arbitrio>. Acesso em: 30 maio 2022.
[4] Frankenberg trata sobre o que classifica como “método Locke”, paradigma que dita as ações possíveis e pertinentes em estados de emergência, regulando o arbítrio no Estado de direito. FRANKENBERG, Gunter. Crítica da técnica de Estado. In: _____. Técnicas de Estado: perspectivas sobre o Estado de direito e o Estado de exceção. Tradução de Gercelia Mendes. São Paulo: Unesp, 2018. p. 15-44.
[5] O autor publicou recentemente um texto sobre o tema no blog Estado da Arte, d’O Estado de São Paulo. Disponível em: <https://estadodaarte.estadao.com.br/felipe-freller-graca-constitucional-primordios>. Acesso em: 25 maio 2022.
Fonte Imagética: Cartaz de divulgação do seminário de lançamento (Créditos: Cedec).