Wanderson F. Souza1
27 de setembro de 2024
Este texto compõe a série especial sobre o Ciclo de Oficinas de Formação 2024 – Eleições em São Paulo: Construindo a Agenda de uma Cidade no Sul Global. Leia os outros textos aqui.
O orçamento público é um instrumento crucial na distribuição e redistribuição de recursos dentro de uma sociedade. No Brasil, um país marcado por profundas desigualdades sociais, econômicas, raciais e de gênero, ele pode desempenhar um papel essencial na correção de desequilíbrios e desigualdades estruturais históricas.
O evento “Orçamento Público e Combate às Desigualdades“, que integra o ciclo de oficinas de formação “Eleições 2024 em São Paulo: Construindo a Agenda de uma Cidade no Sul Global”, foi organizado pelo Desjus (CEBRAP), em parceria com a Fundação Tide Setúbal e com o Núcleo de Democracia e Ação Coletiva (NDAC-CEBRAP), e contou com a presença de Ursula Peres, professora da EACH-USP e especialista em finanças públicas, e Pedro Marin, coordenador do Programa de Planejamento e Orçamento Público da Fundação Tide Setúbal. A mediação foi realizada por Marsílea Gombata, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP (NUPRI-USP). Os convidados compartilharam suas perspectivas sobre como o orçamento público pode ser utilizado para o combate às desigualdades sociais, territoriais e econômicas, discutindo, também, a importância de uma abordagem interseccional que leve em conta gênero, raça e outros indicadores de vulnerabilidade social.
Tributação e desigualdades em São Paulo e no Brasil
A fala inicial de Ursula Peres destacou o caráter regressivo do sistema tributário brasileiro, que perpetua a concentração de renda. No Brasil, a carga tributária é de aproximadamente 33% do PIB, mas fortemente baseada em impostos indiretos que incidem sobre o consumo e afetam de forma desproporcional as camadas mais pobres da população, que acabam pagando uma parcela maior de sua renda em impostos. Ela ressaltou que o Brasil tributa muito pouco a renda do capital e ainda menos a riqueza acumulada, como é o caso dos dividendos, que sequer são taxados. Esse cenário favorece os mais ricos e aprofunda as desigualdades.
Dados apresentados durante o evento mostram que, na cidade de São Paulo, 1% dos contribuintes concentra 42,5% do patrimônio imobiliário. Além disso, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), que deveria atuar como uma ferramenta redistributiva, muitas vezes não é aplicado de forma adequada, permitindo que grandes proprietários paguem menos impostos do que deveriam, ou até mesmo escapem da tributação dependendo do perfil de seus imóveis.
O impacto regressivo da tributação no Brasil afeta de maneira desproporcional as populações mais vulneráveis, especialmente as mulheres negras. Elas representam uma parcela significativa das camadas mais pobres da sociedade, sendo mais afetadas por esse sistema tributário injusto. Em contrapartida, os homens brancos, que dominam os estratos mais altos de renda, pagam proporcionalmente menos impostos, perpetuando uma dinâmica de desigualdade de gênero e raça. Nesse sentido, Úrsula enfatizou a necessidade de reformar o sistema tributário, priorizando a tributação sobre a renda e o patrimônio, ao mesmo tempo em que se busque mecanismos que possam aliviar a carga tributária sobre os mais pobres.
Orçamento regionalizado: uma ferramenta para reduzir desigualdades territoriais
Outro ponto central abordado por Peres foi a regionalização do orçamento público como uma estratégia para combater desigualdades socioeconômicas e territoriais. Segundo a professora, a descentralização do orçamento permitiria uma alocação mais eficiente de recursos, ajustando-os às necessidades específicas de cada região, tornando o planejamento e a execução das políticas públicas mais condizentes com as necessidades de cada território e, assim, mais eficazes e efetivas.
Nesse sentido, o histórico de São Paulo, por exemplo, mostra que houve tentativas de regionalizar o orçamento durante os governos de Luiza Erundina e Marta Suplicy, que criaram mecanismos de participação local para discutir o orçamento. No entanto, após esses períodos, o processo de centralização voltou a prevalecer. Nos últimos anos, especialmente durante o governo de Fernando Haddad, houve avanços com o programa de metas e o detalhamento da execução orçamentária por territórios. Ainda assim, segundo a palestrante, apenas 60% do orçamento de São Paulo é atualmente regionalizado.
As despesas públicas no combate às desigualdades
Pedro Marin complementou a fala de Úrsula discutindo a distribuição das despesas públicas e o papel do orçamento como um reflexo do conflito distributivo dentro da sociedade. Segundo ele, o orçamento público é o principal instrumento que materializa as disputas políticas sobre quem se beneficia ou não das políticas públicas. Entretanto, a forma como ele é tradicionalmente estruturado no Brasil nem sempre reflete as necessidades reais da população, principalmente dos grupos em situação de vulnerabilidade social.
Segundo ele, a classificação atual das despesas orçamentárias foi projetada com o objetivo de garantir o controle dos gastos públicos, mas falha em fornecer informações mais direcionadas ao combate às desigualdades, como a territorialização dos gastos e a identificação clara dos beneficiários das políticas públicas. Essa limitação dificulta o planejamento de políticas eficazes que levem em conta as disparidades regionais e as necessidades de grupos específicos, como mulheres, pessoas negras e moradores de áreas mais periféricas.
Avanços e boas práticas na regionalização e sensibilidade orçamentária
Embora o Brasil ainda enfrente muitos desafios em relação à regionalização do orçamento, Pedro Marin apontou que já existem exemplos de boas práticas que podem servir de modelo para outras cidades e estados. Um dos exemplos mencionados foi o da Prefeitura de São Paulo, que implementou um índice de distribuição territorial dos recursos com base em indicadores de vulnerabilidade.
Outro exemplo foi o das agendas transversais implementadas pelo governo federal no Plano Plurianual (PPA). Essas agendas focam em grupos específicos, como mulheres, população negra, povos indígenas, crianças e adolescentes e no meio ambiente, buscando integrar diferentes ministérios para atender a esses públicos de maneira coordenada. Essa abordagem transversal já está sendo adotada em alguns estados, como Ceará e Acre, onde relatórios orçamentários e planos plurianuais consideram raça e gênero como critérios prioritários na alocação de recursos.
Desafios na implementação de um orçamento mais justo
Apesar dos avanços mencionados, tanto Peres quanto Marin concordaram que a implementação de um orçamento mais justo e regionalizado enfrenta desafios significativos. Segundo eles, um dos principais obstáculos é a resistência interna da burocracia, que muitas vezes é avessa a mudanças e prefere um sistema mais familiar e menos sujeito a pressões externas. A descentralização do orçamento, por outro lado, exige uma transformação na forma como os gestores públicos pensam e operam, além de demandar uma maior transparência na aplicação dos recursos.
Outro desafio está relacionado à pressão política de grupos que se beneficiam do status quo. A regionalização e a transparência na alocação de recursos podem revelar injustiças que até então passavam despercebidas, gerando conflitos com setores que tradicionalmente concentram poder e riqueza. Foi mencionado, por exemplo, o caso das concessionárias de transporte e de limpeza urbana em São Paulo, que possuem contratos bilionários e resistem à abertura de dados que poderiam expor a desigualdade na prestação de serviços entre o centro e a periferia da cidade.
Além disso, há desinteresse da sociedade em se engajar no debate sobre o orçamento público, seja por desconhecimento, seja pela complexidade do tema. Esse desinteresse pode ser agravado pela desconfiança generalizada na capacidade do Estado de entregar resultados, especialmente em territórios mais periféricos.
Interações entre palestrantes e a plateia
Durante o evento, a plateia presente participou ativamente e levantou questões relacionadas à implementação das ideias discutidas, os desafios políticos e a integração de diferentes instrumentos fiscais para combater as desigualdades. Alguns dos pontos discutidos estão sistematizados a seguir.
A participação social foi um dos temas mais discutidos, de forma transversal, durante todo o seminário, sendo inicialmente colocada como um potencial e uma dificuldade na pergunta de Carolina Requena (FESPSP). Ao abordar o tema, os palestrantes afirmaram que a regionalização e a transparência no orçamento só terão impacto real se houver uma participação ativa da sociedade civil no processo decisório.
Úrsula Peres destacou que territorializar o orçamento não significa simplesmente descentralizar a decisão para as subprefeituras, mas sim garantir que os recursos sejam distribuídos de forma equitativa, com base nas necessidades locais e nas características socioeconômicas dos territórios, amplamente discutidas com a sociedade e com grupos representativos de cada localidade.
Pedro Marin sugeriu que minipúblicos e conselhos participativos poderiam ser utilizados como ferramentas para facilitar a participação da população na discussão do orçamento. Ele citou experiências anteriores de participação popular, como o orçamento participativo, que foi implementado em São Paulo durante os governos de Marta Suplicy e Fernando Haddad, mas que enfrentou desafios devido às restrições orçamentárias e a diferentes formas de resistência política.
Adrian Lavalle (CEBRAP) levantou uma questão sobre os interesses que podem surgir em torno da marcação do orçamento e a sua relação com a participação de atores sociais no processo, destacando que, por um lado, a marcação orçamentária permite a participação da sociedade, o que é fundamental. Porém, por outro lado, isso também pode abrir espaço para que grupos com maior capacidade de pressão influenciem o processo de forma desproporcional.
Úrsula reconheceu que a pressão de grupos mais poderosos é uma realidade que não pode ser ignorada e que, quando se abre o orçamento à marcação, surgem novas disputas políticas que podem ser capturadas por grupos com maior influência, como grandes empresas ou organizações com mais recursos. Pedro reforçou que, embora isso seja um risco, ela acredita que a marcação orçamentária, com mais transparência, também pode gerar maior participação popular e pressão de grupos historicamente excluídos.
Mônica de Oliveira (CEBRAP) levantou uma preocupação sobre como garantir que a regionalização do orçamento e a alocação de recursos para áreas com maior vulnerabilidade socioeconômica não leve a um discurso de que os impostos pagos por regiões mais ricas estariam sendo “desviados” para áreas mais pobres.
Pedro e Úrsula concordaram que essa preocupação é válida, destacando a importância de desmistificar a ideia de que as regiões mais ricas “perdem” com a regionalização, e que ela deve ser acompanhada de uma estratégia de comunicação robusta, para que a população entenda os benefícios dessa redistribuição de recursos.
Lucas Petroni (CEBRAP) levantou uma questão sobre a possibilidade de utilizar a política fiscal de forma mais criativa para reduzir desigualdades no nível subnacional, destacando o imposto sobre heranças, o uso de incentivos fiscais à filantropia, entre outras possibilidades.
Em resposta, Peres concordou com a necessidade de repensar o imposto sobre heranças (ITCMD), observando que ele tem uma alíquota relativamente baixa no Brasil (média de 4%), o que perpetua a concentração de riquezas. Ela também mencionou que o IPTU em São Paulo é um exemplo de como ajustes podem tornar os impostos mais progressivos, e que há espaço para melhorar essa arrecadação em muitos municípios. Pedro complementou, ressaltando que o imposto de transmissão de bens imóveis (ITBI) também tem potencial para ser mais explorado como ferramenta redistributiva, e reconheceu que a filantropia e os incentivos fiscais para empresas que atuam em áreas de interesse público podem ser caminhos importantes.
André Leirner (NDAC-CEBRAP) levantou a questão sobre como o legado da arquitetura de dados e orçamento impacta a implementação de políticas públicas transversais que envolvem múltiplas áreas de atuação, perguntando, ainda, se o orçamento baseado em projetos poderia ser uma solução.
Marin respondeu que a adoção de um orçamento baseado em projetos é uma solução que pode ajudar a superar os desafios impostos pela arquitetura orçamentária herdada. Ele afirmou que, em termos técnicos, já existem ferramentas como os sistemas de BI (business inteligence) que poderiam cruzar informações de gastos territoriais e por público-alvo, mas que o maior desafio continua sendo político e organizacional, especialmente em convencer a burocracia de que abrir esses dados pode resultar em uma gestão mais eficiente e transparente.
Álvaro Pereira (UNIFESP) questionou sobre como gerenciar as despesas de custeio, mencionando que as despesas de capital e investimento são mais fáceis de regionalizar, mas as despesas obrigatórias, como aquelas relacionadas ao funcionalismo, são mais complexas. Marin concordou que as despesas de pessoal são um desafio para a regionalização, mas explicou que, na Prefeitura de São Paulo, há ferramentas que permitem monitorar a lotação e os salários dos funcionários públicos.
Raíssa Ventura (DesJus – CEBRAP) fez uma indagação sobre a concepção de justiça que fundamenta as propostas apresentadas no evento, além de perguntar se já existem dados que mostrem os efeitos da regionalização e da alocação de recursos sobre a redução das desigualdades. Peres respondeu que sua concepção de justiça está ligada ao direito à cidade e ao desenvolvimento de territórios periféricos com protagonismo e autonomia. Para ela, a alocação de recursos públicos deve ter como foco a redução das desigualdades territoriais, de raça e de gênero, sempre considerando uma abordagem interseccional. Ela mencionou que algumas políticas regionalizadas, como as implementadas durante o governo Haddad em São Paulo, já mostraram avanços na redução das desigualdades, mas que ainda é necessário um trabalho contínuo para tornar essa abordagem mais sistêmica.
Adrian Lavalle (CEBRAP) também levantou uma questão sobre como a transparência territorial no orçamento poderia transformar a lógica de participação política nas eleições, sugerindo que a regionalização e a abertura de dados podem permitir que atores políticos mobilizem suas comunidades em torno das discussões orçamentárias de maneira mais ativa, além de processos participativos específicos, potencialmente alterando a distribuição de poder nas eleições e nos processos de alocação de recursos, que passariam a mobilizar toda a máquina pública. Peres concordou que a transparência no orçamento pode, de fato, gerar maior mobilização social em torno das questões distributivas, levando a uma distribuição mais justa dos recursos públicos. No entanto, ela destacou que a mudança na lógica eleitoral exigiria um esforço contínuo de engajamento e de educação política, para que a população compreendesse a importância de discutir o orçamento e como ele afeta diretamente suas vidas.
Marin complementou, afirmando que a regionalização e a transparência no orçamento poderiam ter um efeito importante na dinâmica eleitoral, especialmente no nível local. Ele também mencionou que a criação de planos de ação por subprefeitura seria uma maneira eficaz de vincular as metas orçamentárias às demandas locais, permitindo que a população cobrasse compromissos concretos dos gestores públicos e candidatos durante as eleições.
Caminhos para um orçamento público mais justo
O debate sobre o orçamento público e o combate às desigualdades é central para o desenvolvimento de políticas públicas mais eficazes e mais justas. As discussões no evento mostraram que há um longo caminho a ser percorrido para tornar o orçamento uma ferramenta efetiva de redistribuição de riqueza e poder.
As iniciativas de regionalização e sensibilidade orçamentária mencionadas pelos palestrantes oferecem exemplos concretos de como é possível avançar nessa direção. A regionalização do orçamento, aliada à maior transparência e participação social, pode ser uma estratégia efetiva para reduzir as desigualdades territoriais, raciais e de gênero na cidade de São Paulo e no Brasil. Contudo, para que essas mudanças ocorram, é necessário enfrentar resistências internas e externas, além de investir na capacitação das burocracias públicas e na conscientização da sociedade sobre a importância do orçamento público na promoção do bem-estar social.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova.
** Este texto foi elaborado com auxílio de inteligência artificial.
- Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: wanderson.souza@usp.br ↩︎
Referência imagética: Cartaz de divulgação da oficina de formação “Orçamento Público e Combate às Desigualdades.