Paulo Bittencourt[1]
Ocorreu na terça-feira, 13 de setembro de 2023, o lançamento do livro “Polarity in International Relations: Past, Present, Future”, editado por Nina Græger, Bertel Heurlin, Ole Wæver e Anders Wivel, todos professores do Departamento de Ciência Política da Universidade de Copenhague (Dinamarca). Além dos quatro editores, o evento contou com a presença da professora Lene Hansen (Departamento de Ciência Política da Universidade de Copenhague) como mediadora, além de falas de dois autores de artigos compilados na obra: Camilla Sørensen (Instituto de Estratégia da Real Escola de Defesa Dinamarquesa) e Øystein Tunsjø (Instituto Norueguês de Estudos de Defesa).
Tanto o livro quanto sua sessão de lançamento foram dedicados à memória e ao legado da saudosa professora Birthe Hansen, falecida em 2020. Se, por um lado, Kenneth Waltz poderia ser considerado o Grand Old Man do Neorrealismo nas Relações Internacionais, Birthe Hansen, com seu interesse em temas como terrorismo e política no Oriente Médio poderia ser, sem dúvidas, considerada a Grand Young Woman do Neorrealismo, disse Lene em tom espirituoso ao se lembrar da colega de departamento. De fato, contribui para isso o fato de Birthe Hansen ter um interesse ainda mais acentuado em um conceito específico: o de unipolaridade. Isso fazia com que Birthe fosse, nas palavras de Lene Hansen, ainda mais neorrealista do que o próprio Kenneth Waltz.
A palavra foi passada aos editores do volume, que em poucos minutos puderam pontuar o que acreditavam ser pontos fortes e importantes da obra conjunta.
Ole Wæver em primeiro lugar, homenageou Birthe Hansen, sua contemporânea no Departamento de Ciência Política da Universidade de Copenhague, com quem pode acompanhar o desenvolvimento das Relações Internacionais como empreitada teórica e acadêmica no mundo e, mais especificamente, na Dinamarca. Seu legado se dá sobretudo na cultura de ativamente engajar em debates com pessoas de diferentes backgrounds de vida e teóricos. Para ele, Birthe demonstrava como um campo pode ter tantas teorias diversas que podem, respeitosamente, coexistirem.
Wæver passou a se questionar, pois, qual é o conceito de polaridade. Segundo ele, ao fim da Segunda Guerra Mundial, teóricos das Relações Internacionais passaram a se perguntar qual diferença fazia, afinal de contas, o sistema internacional ter transitado de um cenário com vários polos de poder para um cenário em que havia apenas dois deles (Estados Unidos e União Soviética). Embora houvesse um consenso tácito de que havia uma diferença, não foi senão até os anos 1960 que essa diferença começou a ser sistematicamente explorada. E o nome do teórico que se dedicou a dar uma resposta adequada a essa pergunta foi o americano Kenneth Waltz.
Waltz desenvolveu diversos trabalhos ao longo dos anos 1960 de forma coesa, mas não foi antes de 1979 que uma teoria da política internacional foi de fato proposta pelo autor, com seu livro Theory of International Politics. Aqui, o esforço de Waltz foi em categorizar as polaridades existentes, e explicar qual era a lógica de cada configuração estrutural: afinal, segundo a fala de Wæver, se a anarquia e a não-diferenciação dos Estados são constantes, é na distribuição de capacidades e, portanto, na polaridade do sistema, que encontramos as grandes diferenças entre sistemas internacionais.
Após o fim da Guerra Fria, novamente passou-se a se questionar quais as dinâmicas existentes. E isso envolve a questão da polaridade do sistema, uma vez que, sabendo a polaridade, é possível que saibamos quais dinâmicas políticas esperar. A polaridade, pois, só faz sentido se diz respeito a um sistema, e se afeta as dinâmicas naquele sistema. Não é suficiente dizer que a polaridade é tão-somente um movimento de balanceamento – antes, isso seria praticamente instintivo para os Estados, nas palavras de Wæver.
Nina Græger, por sua vez, pontuou os fatos recentes da política internacional que contribuem para a necessidade de reflexão sobre a polaridade nas Relações Internacionais. Para a autora, o aumento das tensões entre os Estados Unidos e a China, a transformação dos BRICS para um grupo mais amplo, os avanços tecnológicos recentes da Índia, e a violação russa à soberania ucraniana (pondo fim à já delicada e frágil cooperação entre a Rússia e o Ocidente) são pontos importantes para começarmos a compreender qual ordem está em curso. Como conceituá-la? Para a autora, um conceito que poderia ser melhor desenvolvido e explorado é o de multipolaridade, a existência de múltiplos polos de poder internacionalmente. Diz a autora, contudo, que mesmo as capacidades que compõem os polos políticos internacionais têm passado por modificações. Embora o avanço tecnológico seja importante, um aspecto crucial permanece sendo a população. Por outro lado, as mudanças climáticas impõem novos desafios às capacidades estatais em lidar com suas dinâmicas sociais por meio do acesso à água potável, e da prevenção e medidas paliativas para eventos como tempestades, enchentes e terremotos: esses aspectos devem ser pensados na chave das capacidades que compõem o poder de um Estado.
Anders Wivel, explorando os textos do livro, ressalta a diferença de abordagens que permeiam a obra. Contudo, pontua o autor que, de maneira geral, uma das conclusões que se pode tirar é a de que o mundo hoje pode ser considerado bipolar – mas a bipolaridade não é o que foi durante a Guerra Fria. Se no conflito do século XX havia disputas de agendas e de sistemas de organização política dos assuntos mundiais, atualmente os dois polos parecem concordar com o sistema existente. Contudo, a forma de gestão desse sistema – a “ordem internacional” – parece ser questionada tanto dentro do próprio Ocidente, como fora dele. Isso, contudo, não transforma o sistema: uma ordem volátil não é necessariamente uma ordem multipolar, nas palavras de Wivel. O autor termina sua exposição pontuando que a persistência da política de poder é uma condição para a vida no sistema internacional.
Bertel Heurlin, o último editor do livro a falar, demonstrou, de fato, a pluralidade do departamento ao posicionar-se a partir do ponto de vista de que o sistema internacional contemporâneo é unipolar. Para ele, baseado em artigo recente de Stephen Brooks e William Wohlforth, não há necessariamente um declínio do poder estadunidense, e, portanto, não há algo como um sistema multipolar. Os policymakers nos supostos outros polos do sistema, Rússia e China, ainda se referem ao momento presente como um de unipolaridade (estadunidense). Heurlin segue: os Estados Unidos e a China permanecem em categorias necessariamente diferentes, especialmente no que diz respeito a aspectos militares e tecnológicos, o que impede qualquer análise que proponha o fim da unipolaridade. Ressalva o autor, contudo, que há, de fato, limites ao poder dos Estados Unidos quando o comparamos a outros momentos do passado, mas isso não aponta necessariamente para o fim da unipolaridade. Conclui Heurlin: a unipolaridade ainda permanecerá por décadas.
Em sentido contrário ao que disse Heurlin, Øystein Tunsjø sustenta a tese de que o mundo atualmente é bipolar: há dois polos de poder, China e Estados Unidos. A distância em termos de poder de ambos os polos ainda existe, mas foi marcadamente reduzida nas últimas décadas, tanto em termos de PIB como em termos de gastos militares. A China ascendeu muitíssimo relativamente a outros Estados, como a Rússia ou qualquer outro parceiro dos BRICS. Logo, a distribuição de poder atual é comparável com a da Guerra Fria. Naquele momento do século XX, a União Soviética e os Estados Unidos também não possuíam exatamente os mesmos recursos de poder, mas isso não impedia que o sistema fosse bipolar.
Hoje, também estamos presenciando as dinâmicas de uma estrutura bipolar. No contexto do sudeste asiático, prossegue Tunsjø, tudo o que há é balanceamento. O ponto de diferenciação, contudo, entre o sistema da Guerra Fria e o atual se dá em aspectos geopolíticos, e por isso Øystein Tunsjø chama sua contribuição de Realismo Geoestrutural. É a geopolítica, segundo o autor, que explica as diferenças entre gastos de defesa nos Estados Unidos e na China: não há uma corrida armamentista, visto que nenhum dos dois atores têm fronteiras terrestres. Os Estados Unidos e seus aliados encontram-se protegidos; o mesmo se pode dizer da China. O sistema bipolar atual é diferente do sistema da Guerra Fria devido a fatores geográficos. É preciso acompanhar o desenvolvimento desse sistema de maneira cuidadosa: a China tem reivindicações territoriais no leste asiático, de modo que se categoriza como um poder insatisfeito territorialmente. Dessa forma, o incremento de poder militar chinês deverá se concentrar no Leste Asiático em vez de desafiar o poder estadunidense a nível global.
Enfim, Camilla Sørensen explora seu artigo, em que se dedicou a aplicar o conceito de unipolaridade aos constrangimentos estruturais que moldaram a ascensão chinesa, pois, como faz notar a autora, a China ascendeu em um sistema unipolar. E o país asiático pode fazê-lo porque, em muitos momentos, comportou-se como um free-rider. Dentro da China, formou-se, após debates, um consenso de que o país podia ter benefícios da arquitetura proposta e sustentada pelos Estados Unidos, de onde veio a principal diretriz chinesa para a diplomacia e defesa externa: manter um low profile. Contudo, os anos 2008 e 2009 marcam um “giro de assertividade” no comportamento internacional chinês. Manter um low-profile foi uma diretriz adequada enquanto a China se acomodava à ordem fomentada pelos Estados Unidos. Contudo, diz Sørensen, a China está “chegando no teto” de sua acomodação, não podendo mais manter um low profile. A China atual é muito mais confiante em suas capacidades, no declínio estadunidense, e sabem que precisam confrontar mais assertivamente os Estados Unidos. E também é um país que se preocupa com o que os Estados Unidos fazem em seu entorno geográfico, uma vez que têm reivindicações territoriais neste ambiente. Conclui Sørensen que a China já não pode assegurar seus interesses e reaver sua grandeza dentro de uma ordem baseada tão-somente nos interesses e valores estadunidenses.
Três aspectos chamam a atenção no debate promovido no lançamento do livro. O primeiro deles é a persistência de conceitos importantes para áreas específicas do conhecimento. Apesar de, nas palavras de Nina Græger, a polaridade ser um conceito pouco explorado e pouco desenvolvido, para Øystein Tunsjø trata-se do ponto de gravidade da política internacional. É um assunto incontornável e ao qual a academia deveria dar maior atenção. O lançamento de um livro como este, debatendo ideias que foram propostas há quase cinquenta anos, não é senão um atestado da importância desse conceito para as Relações Internacionais enquanto um campo de estudo da Ciência Política.
O segundo aspecto que chama a atenção é a possibilidade de uso do ferramental teórico para fazer sentido da realidade. Não há algo como teoria e prática como existindo em campos diferentes, mas ambos se informam mutuamente.
Enfim, o terceiro aspecto diz respeito ao legado de Birthe Hansen. O fato de seus antigos colegas e alunos terem juntado esforços e dedicado o livro e a sessão de lançamento a sua homenagem diz muito sobre o seu legado. Mais importante do que aquilo que se diz, porém, é aquilo que se faz: não bastou que seus homenageantes mencionassem seu apreço pela pluralidade de valores, ideias e backgrounds. Eles colocaram esse legado em funcionamento, ao trazer para uma mesma obra autores com visões e conclusões distintas, mas que nem por isso deixaram de debater, contribuir, cooperar e trabalhar juntos. Essa coexistência respeitosa (como pontuou Ole Wæver) é talvez um princípio fundamental sobre o qual o conhecimento pode ser construído e gerar frutos.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Bacharel em Relações Internacionais e mestre em Ciências sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp. Doutorando em Ciência Política no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DCP/USP). Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP (NUPRI/USP).
Fonte Imagética: https://polsci.ku.dk/kalender/book-launch-polarity-in-international-relations-past-present-future/Book_launch.png