Este texto é uma versão condensada da entrevista com Silvia Federici, realizada pelas professoras Mariana Prandini Assis e Eliane Gonçalves (Universidade Federal de Goiás/UFG), publicada originalmente em: Sociedade e Cultura. 2022, v.25:e74680 – ISSN: 1980-8194. Disponível aqui. Agradecemos às professoras e editoras/es da revista por cederem o texto para publicação no Boletim Lua Nova.
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Introdução
Silvia nasceu em Parma, na Itália, em 1942, e nos anos 1960, foi viver nos Estados Unidos, onde mais tarde fundou com Mariarosa Dalla Costa e Selma James o International Feminist Collective (Coletivo Feminista Internacional), responsável pela campanha global Wages For Housework que reivindicava salário para o trabalho doméstico realizado por mulheres sem qualquer retribuição ou reconhecimento como uma demanda da economia feminista.
Desde então, Silvia é uma figura central no desenvolvimento do conceito de reprodução social como uma chave para compreender as relações de classe, de exploração e de dominação no capitalismo.
Nos anos 1980, Silvia viveu na Nigeria, onde foi professora da Universidade de Port Harcourt e trabalhou com a organização feminista Women in Nigeria (Mulheres na Nigeria). Ambas as trajetórias convergem em duas de suas obras mais conhecidas: Calibán e a Bruxa: Mulheres, corpo e acumulação originária, e O ponto zero da revolução: Trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas. (…)
Além da crítica penetrante, a autora também nos ensina a esperançar, para utilizar o verbo de Paulo Freire (1992). E esperançar desde um novo feminismo, como Silvia Federici o define, “dissidente, alternativo, popular, como o que existe na América Latina”, que se une a outros movimentos sociais como o antirracista, o campesino, o indígena e o anticapitalista, pois todas essas lutas convergem no “lugar da transformação real da sociedade”[1].
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Mariana Prandini: Muito obrigada por aceitar o nosso pedido para conversar conosco nesta manhã, Silvia! É muita generosidade sua, sobretudo por ainda estarmos em um contexto de pandemia, de distanciamento social e carência de encontros.
Eliane Gonçalves: Sim, estamos muito contentes em te receber novamente! Antes de mais nada, eu pensei nesta entrevista como um momento intergeracional, porque somamos três gerações distintas dos feminismos se considerarmos o período dos anos 1970 aos dias atuais. Isto é muito interessante.
Silvia Federici: Esses momentos virtuais de diálogo foram, durante o período mais grave da pandemia, e continuam sendo, momentos de alento e esperança. Vivemos numa época em que muitas pessoas não têm esperança…
MP: (…) Você poderia nos explicar o que é a reprodução social e por que é um conceito tão central para uma política da emancipação?
SF: Primeiro, falarei sobre a questão da reprodução e da reprodução social tal como figurou no movimento feminista dos anos 1970. Pois foi realmente o movimento feminista, em polêmicas muito justificadas com o pensamento marxista e socialista tradicional, que enfatizou a necessidade de iniciar nossa análise do capitalismo e nossa luta contra o capitalismo, com a questão da reprodução.
E foi assim, em primeiro lugar, por causa das experiências das mulheres. A questão da reprodução surgiu da tentativa de entender por que éramos discriminadas, por que éramos consideradas seres humanos inferiores aos homens. E estava muito claro que nossa vida na sociedade burguesa, ainda nos anos 70 e historicamente, era bastante diferente da dos homens, pois éramos excluídas de todos os tipos de atividades, incluindo áreas de trabalho explorado, como a produção de commodities para o mercado. E então, olhando para nossa experiência, que era a experiência de mulheres de quem se esperava que dedicassem a maior parte de sua vida à reprodução de suas famílias, à procriação, à educação dos filhos, ao trabalho doméstico, percebemos que este trabalho, no capitalismo, não era considerado trabalho, mas sim uma atividade natural ou um serviço pessoal prestado aos homens. Começamos a analisar essa questão e chegamos à conclusão de que essa retórica funcionou, pois o trabalho reprodutivo sempre foi definido como não trabalho, algo natural como os animais fazem. Essa constatação foi extremamente importante porque percebemos que este trabalho reproduz não apenas nossa vida e a vida de nossa família e comunidades, mas reproduz para o capitalismo todos os dias uma massiva força de trabalho. As mulheres têm sido as produtoras. Então, na verdade, aplicamos a noção marxista de produção, a ideia de que, no processo de produção, o capitalismo nos explora e acumula riqueza. Mas vimos que isso se dava de uma forma muito diferente: enquanto a classe trabalhadora masculina historicamente adentrou no capitalismo como produtora de commodities para o mercado, nós fomos confinadas ao trabalho de reprodução da mão-de-obra. É isso o que chamamos de reprodução ou reprodução social.
Reprodução social enfatiza que isso não é um trabalho individual ou pessoal, mas tem um caráter muito social, social porque milhões de mulheres estão fazendo, e social porque tem uma finalidade que afeta a sociedade como um todo, já que o objetivo não é a reprodução de famílias individuais, mas de todo um sistema de trabalho.
E assim, aos poucos, fomos virando o jogo da tradicional análise marxista do processo de exploração capitalista e de acumulação de riqueza, para afirmar que este trabalho, sempre desprezado, tornado invisível, naturalizado, desvalorizado, não remunerado, é, na verdade, o sistema de apoio, a condição de existência de qualquer outra forma de exploração ou de qualquer outra atividade de trabalho. Então partimos daí, e vimos que o fato deste trabalho não ser remunerado e ser naturalizado teve uma poderosa função ideológica e econômica. Sua representação e definição como não-trabalho permitiu à classe capitalista economizar bilhões e bilhões e fazer com que gerações de mulheres trabalhassem de graça. É isso.
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EG: (…) Quero agora perguntar algo relacionado com o mercado de trabalho. Simone de Beauvoir acreditava que o trabalho remunerado significava liberdade e emancipação para as mulheres, sendo a chave para a sua independência. Você, ao contrário, tem enfatizado que as mulheres no mercado de trabalho perderam mais do que ganharam. Então minha pergunta se desdobra em três: você já foi influenciada por Simone de Beauvoir? Se sim, qual a importância de O Segundo Sexo, especialmente para as gerações mais jovens de feministas? E, finalmente, você não teme que a ênfase na reprodução social possa trazer de volta a velha domesticidade e o trabalho do cuidado como o único lugar onde as mulheres podem estar?
SF: Eu gosto muito de Simone de Beauvoir e fui realmente influenciada por ela, inevitavelmente… [risos]. Mas, ao longo do tempo, também me tornei muito crítica. Quando eu tinha 18 anos, eu queria ser um homem e eu realmente fiz tudo o que podia. Eu escrevi sobre parte disso em Wages Against Housework. Porque eu lutei tanto, eu e minha irmã, para não nos tornarmos donas de casa. Eu entendi que todo o contraste que ela faz, mulheres passivas e homens ativos, eu não compro mais isso. Eu compreendo que em parte é isso. Mas também comecei a ver o poder, a luta que as mulheres têm travado, e a importância do seu trabalho, e acho que, ao longo do tempo, eu reavaliei o trabalho das mulheres não nessa forma capitalista, mas no seu potencial. No capitalismo, o trabalho reprodutivo é subsumido à reprodução da força de trabalho. E por causa de sua subsunção, ele se converteu em um trabalho que é sufocante, alienante e maçante. (…)
Mas ao longo do tempo comecei a ver e a prestar mais atenção à luta que as mulheres têm travado pelo lado ativo, para rejeitar a tese de Simone de Beauvoir sobre a passividade das mulheres. Essa é uma visão masculina das mulheres. As mulheres têm travado uma luta tremenda em todos os níveis, historicamente, nos movimentos e fora deles, também no dia-a-dia. Então comecei a valorizar essa luta, e também a valorizar o trabalho em termos do que poderia ser, potencialmente, quando liberado de todos seus elementos sufocantes e degradantes no capitalismo. E antes de tudo, o fato de que este trabalho é feito isoladamente, que não é feito coletivamente, que é feito basicamente de uma maneira que se destina a economizar dinheiro em vez de realmente satisfazer as necessidades das pessoas. Na verdade, o trabalho reprodutivo requer uma quantidade realmente muito grande de conhecimento, conhecimento sobre comida, nutrição, corpo, medicamentos, etc.
Isso não significa que eu não tenha lutado contra a divisão do trabalho, ou que eu acredite que devam ser as mulheres as únicas a fazer este tipo de trabalho. Absolutamente não. Mas há razões pelas quais nesta sociedade o trabalho é dividido dessa forma. Não é apenas porque os homens são dominantes, mas também porque frequentemente o salário masculino é o mais alto na família, e assim são as mulheres que ficam em casa. Portanto, há todo um sistema que precisa ser alterado para que a divisão de trabalho mude.
(…) A posição de dependência é muito degradante, humilhante e perigosa. Muita violência doméstica seria evitada se as mulheres tivessem o poder de sair de casa e fechar a porta atrás delas. O que critico é a luta do movimento feminista concentrar-se no trabalho remunerado às custas da luta pela reprodução, porque os dois estão umbilicalmente conectados. E o que as mulheres foram capazes de fazer e alcançar no trabalho fora de casa também está relacionado com o trabalho doméstico. Por exemplo, descobrimos que quando as mulheres saem de casa para trabalhar, elas acabam fazendo tarefas domésticas, e a desvalorização das tarefas domésticas e da reprodução continua fora de casa. Quando você sai de casa para trabalhar como enfermeira, como professora, como diarista, que são os tipos de trabalho que a maioria das mulheres consegue, a definição de dona de casa te persegue, e também te persegue a desvalorização do trabalho que você faz. Por isso é tão difícil para as enfermeiras, professoras, diaristas, etc, ter horário de trabalho decente, salário decente, pois é uma continuação da exploração do trabalho reprodutivo. (…)
EG: Vamos falar agora de maternidade. Pela nossa conversa até aqui, parece que concordamos que maternidade é trabalho, e trabalho duro, mas continua sendo muito atrativo para muitas mulheres. Eu sempre volto ao feminismo da maneira como o aprendi, e por isso vejo a maternidade como o aspecto mais naturalizado da reprodução social e da sexualidade. Eu gostaria de saber se você acha que a maternidade é sempre uma forma de opressão. E se não, quando ela não é opressão? Que tensões ela provoca no feminismo? E o que você pensa sobre o fato de que mulheres como eu, sem filhos e não casadas, ainda são uma espécie de pária social em muitas partes do mundo?
SF: Tomei uma decisão muito cedo em minha vida de que não teria filhos. E sou muito feliz por isso, foi a melhor decisão da minha vida. Saio, olho em volta, e vejo mulheres com filhos… adoro as crianças, mas digo, “Oh meu Deus, como elas fazem isso?” Eu não tenho ideia de como fazem. Penso que são heroínas. Mas, para mim, o feminismo tem que acomodar ambas as situações e nós temos que escolher. Todos os dias eu vou ao parque pela manhã e vejo todas aquelas crianças… Vi tantas crianças no parque pela manhã agora no verão… E me pergunto: por que as pessoas continuam reproduzindo crianças? E cheguei à conclusão de que, além do fato de que elas podem ser adoráveis ou não, além do fato de que as pessoas são motivadas por questões de propriedade e herança, para a maioria das pessoas, ter um filho, ver um filho crescer, é o que dá sentido à vida. Não são muitas as coisas que dão sentido à vida neste mundo hoje. Para a maioria das pessoas, a vida é trabalho árido e alienado. E ter um filho, ter alguém que você acredita que vai cuidar de você, ter uma fonte de emoção, e filhos são uma aventura constante. (…)
MP: Silvia, (…) em seus escritos você já disse que a ação coletiva precisa ir além de uma política de ideias ou imaginação e incorporar a ação direta como sua estratégia principal. (…) algo que estudiosas do assunto chamaram de política prefigurativa. Você poderia nos falar um pouco mais sobre por que você vê a emancipação vindo desse tipo de movimento, e não de partidos políticos, organizações não-governamentais, ou outras formas institucionalizadas de ação coletiva?
SF: Antes de mais nada, não estou dizendo que esta política prefigurativa da qual falo é a única forma de política. Acredito que existem muitas formas de luta, muitos tipos de movimentos que são necessários para lutar contra o capitalismo. A questão, contudo, é até que ponto esses movimentos se unem, até que ponto eles podem criar um terreno comum. Minha crítica ao partido é que a história do partido é a história de uma organização que reflete internamente a mesma hierarquia da sociedade capitalista. Os partidos de esquerda têm sido dominados por homens, homens brancos, então, sempre selecionam um tipo particular de sujeito revolucionário. E cada vez mais, os partidos têm se tornado organizações burocráticas distanciadas da realidade e que, de certa forma, transformam a política no que eu chamei de trabalho alienado, fazem da política uma outra forma de trabalho porque você não participa de fato do processo de tomada de decisão, você não é realmente parte da transformação. O que não quer dizer que não existam outras formas de movimento, há movimentos sociais.
Mas eu acredito que não pode haver movimentos que não trabalhem ao mesmo tempo na transformação da reprodução cotidiana da vida das pessoas e na reprodução da luta. A luta precisa ser reproduzida. E reproduzir a luta é o mesmo que mudar a maneira como reproduzimos nossa vida cotidiana, precisamos mudar a reprodução da nossa vida cotidiana de tal forma que a reprodução se torne cada vez mais a reprodução da luta e cada vez menos a reprodução da força de trabalho. O nosso sucesso se dará na medida em que pudermos deslocar o trabalho reprodutivo que fazemos para reproduzir a força de trabalho para o capital, para reproduzir nossas energias para a luta. Portanto, toda a questão de superar o isolamento, criar formas coletivas, laços afetivos, confiança etc., ou seja, construir uma infraestrutura reprodutiva para nossa luta e todo um novo conjunto de relações. Isso nos fortalece. E assim podemos confrontar o estado. (…)
Então, esta é a minha opinião. Penso que a política prefigurativa é o que faz da política algo que não é um trabalho extra, um fardo extra em uma vida já difícil e que também cria uma base de resistência a partir da qual se pode então confrontar o estado com mais poder e se conectar com outros movimentos. (…)
* Este texto não reflete, necessariamente, as opiniões do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1] DIP, Andrea. Entrevista com Silvia Federici: “Espero que esse momento impulsione uma forte mobilização de movimentos feministas”. Pública, 22 mar. 2021. Disponível em: https://apublica.org/2021/03/silvia-federici-espero-que-esse-momento-impulsione-uma-forte-mobilizacao-de-movimentos-feministas/. Acesso em: 20 nov. 2022.
Fonte Imagética: Silvia Federici: Public Lecture at Nottingham Contemporary (Saturday June 29th, 5-7pm), University of Nottingham blogs, The Critical Moment. University of Nottingham. Disponível em <https://blogs.nottingham.ac.uk/criticalmoment/tag/silvia-federici/>. Acesso em 13 fev 2022.