José Késsio F. Lemos[1]
A ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos é um fenômeno curioso. Conhecido por seu perfil insólito, excêntrico e polêmico, Trump protagonizou uma campanha populista e fortemente polarizadora. O businessman que decidiu enveredar pela política, foi por vezes subestimado. Primeiro por seus oponentes à nomeação republicana e depois por Hillary Clinton, sua rival democrata. Sua ascensão não foi prevista por vários órgãos de imprensa nem por muitos analistas de dados.
No calor do momento de sua eleição, até parecia estar acontecendo algum tipo de terremoto no cenário político norte-americano. Afinal, com propostas ancoradas no America First – expressa pelo nacionalismo econômico, retração internacional, fim do multilateralismo e revisão de alianças estratégicas, seria inevitável não associar a sua eleição às expectativas de rupturas e transformações no âmbito interno dos Estados Unidos, bem como na ordem internacional. Mas agora, quase 4 anos depois, superado o calor da ocasião, como podemos delimitar o alcance do fenômeno político que foi a ascensão de Donald Trump à presidência dos EUA? Como podemos entendê-lo? O que ele traz de novo? Quais as implicações para a sociedade e a política norte-americanas? Qual seu impacto no mundo? E de que forma ele tem nos afetado?
Trump: primeiro tempo. Partidos, políticas, eleições e perspectivas, obra organizada por Sebastião Velasco e Cruz e Neusa Maria P. Bojikian e publicada pela Editora Unesp em parceria com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), reúne um conjunto de doze artigos, habilidosamente articulados, para fornecer respostas e/ou perspectivas mais profundas sobre estas e outras questões. Separada em três sessões, o livro traz um lúcido panorama das dimensões interna e externa da administração republicana em diversos setores dos Estados Unidos da América, escrito por diferentes pesquisadores especializados no estudo deste país. O ponto de partida é a ascensão do Trumpismo e a desconstrução de mitos e imprecisões nas avaliações sobre o sucesso eleitoral do republicano. A despeito de um grande avanço conservador no país, a obra destoa em definir que foram os não votantes os que mais ajudaram a eleger o candidato republicano. Afinal, a estratégia do partido foi bem-sucedida ao considerar uma campanha indireta e negativa mais eficiente que os esforços de conseguir o voto popular. Ou seja, desestimular os democratas a votarem nas Hillary era mais fácil do que conseguir novos eleitores para Trump.
O Segundo destino da obra é visitar as dinâmicas provenientes da relação entre os governos estaduais e o governo central. Em um contexto de “hiperpolarização” que continuou no seio da sociedade americana mesmo depois das eleições, a obra demostra como vários estados vêm assumindo papel importante na resistência às políticas migratórias, bem como nos esforços de manter compromissos vinculados às mudanças climáticas assumidos internacionalmente. Fatos estes, que têm produzido, até mesmo, conflitos legais que questionam os limites de atuação dos estados em tais áreas.
Na esfera dos Direitos Civis, o livro ressalta a convergência frequente entre os liberalismos conservador e clássico na política de direitos. Realidade que tem isolado, por vezes, a agenda progressista nos debates, legislações e políticas adotadas. As políticas educacionais e de segurança são dadas como exemplos dessa convergência, sendo apresentadas por Trump como representativos de um novo movimento por direitos civis.
No âmbito econômico, o slogan America First é colocado sob escrutínio. Os prejudicados pela “hiperglobalização” tiveram na eleição de Trump sua voz de protesto e reinvindicação ouvida. O núcleo central do trumpismo sempre expressou a intenção de utilizar a política comercial para reformatar as relações e a distribuição de ganhos, e recuperar as perdas econômicas e, sobretudo, a liderança estratégica. No entanto os autores do livro apresentam entraves e barreiras à estratégia trumpista. Refletindo sobre o termo “America First, but not alone”, a obra ressalta resistências de outros países – como China e União e Europeia, assim como limitações internas, expressas pelo congresso, grupos organizados e opinião pública. Tais resistências podem até culminar no uso de instrumentos mais duros na política comercial. Para os autores, no entanto, esse novo comportamento ainda não significa um rompimento na institucionalidade do comércio interno e externo construída nas últimas sete décadas.
O ponto alto do livro, ao meu ver, concentra-se nas relações exteriores da Administração Trump. A primeira discussão nesse sentido visa discutir a existência ou não de uma Grande Estratégia americana nos dias atuais. Afinal, há momentos em que os discursos e decisões do presidente republicano parecem ser incompatíveis com os processos formais interagências, assim como as diretrizes provindas da comunidade de inteligência e dos documentos oficiais. Esse tipo de imprevisibilidade já levantou hipóteses questionando se essa seria, na verdade, um comportamento estratégico.[2] De fato, o livro não responde enfaticamente sobre essa questão. Mas traz luz sobre características sobremodo importantes, que definem as relações exteriores dos Estados Unidos na atualidade. A America First de Trump promete um país voltado para os interesses de sua população. Um país preocupado no fortalecimento econômico nacional, a despeito de intromissões e empreitadas em outros territórios. É uma abordagem que busca reverter os custos do internacionalismo e de intervenções militares e humanitárias no exterior. A obra chega a apontar o estabelecimento, por parte dos Estados Unidos, de um novo arranjo internacional – uma ordem tripolar, tendo Rússia, China e Estados Unidos como principais atores. A intenção seria evitar conflitos e gastos supérfluos. Os Estados Unidos não necessariamente objetiva abrir mão de sua liderança, apenas tornar os custos de manutenção da ordem internacional vigente menor para os norte-americanos. Ao mesmo tempo que trava uma guerra comercial com a China e a categoriza como a maior ameaça à segurança nacional e global.
Trump não segue a cartilha realista. Afinal, o domínio estadunidense está ancorado em uma ordem internacional liberal, composta por instituições internacionais multilaterais, baseadas em cooperação e interdependência entre as nações. Assim, Trump se revela um revisor das próprias bases que sustentam a hegemonia americana. O livro mostra como as relações entre Estados Unidos e União Europeia podem representar com maestria essa dinâmica. De fato, são os vencedores da Segunda Guerra Mundial e os criadores das regras do jogo internacional no pós-guerra. Nesse sentido, o internacionalismo liberal dos Estados Unidos está sendo substituído, cada vez mais, por demonstrações de isolacionismo e competição pelo poder. As relações com os aliados europeus estão degradadas. A saída de Washington do Tratado sobre o programa nuclear iraniano criou insatisfação por parte dos aliados europeus. Soma-se a isto uma postura econômica protecionista e a intensificação das divergências sobre a distribuição de gastos na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Como consequência, os autores apontam uma crise de autoridade norte-americana no sistema internacional. Fato este que faz a Europa buscar alternativas econômicas e militares a médio e longo prazo.
E quanto a nós? De que forma o governo Trump tem afetado a América Latina e o Brasil? Um capítulo específico da obra indaga se a política externa norte-americana para a região seria uma espécie de um nova Doutrina Monroe. Ou seja, uma política intervencionista que trataria como ameaça nacional qualquer tentativa de intromissão estrangeira na região. Para além da retórica ofensiva dos Estados Unidos, que expressa a disposição de gerar mudanças em governos não-alinhados aos interesses da Casa Branca e assim combater a influência russa e chinesa na região, o livro apresenta uma realidade distinta do discurso. Na visão dos autores, há uma contraditória situação com relação aos recursos de poder disponíveis e à decisão de utilizá-los em escala adequada aos desafios estabelecidos. Ao contrário do caso chinês, que possui amplo estoque de recursos e investimentos disponíveis para a América Latina, os Estados Unidos não têm aplicado recursos econômicos significativos para seduzir governos regionais em situação econômica vulnerável. Assim, enquanto retóricas inflamáveis buscam erigir inimigos e ameaças no continente, por hora, não há uma alocação de recursos suficientes para o exercício da política exterior nos parâmetros de uma Doutrina Monroe.
Nestes termos, o escrutínio da presente obra mostra mudanças e transformações em andamento durante o primeiro mandando do presidente Donald Trump. Com efeito, quase quatro anos depois, a sociedade norte-americana ainda está dividida e polarizada. O atual governo, de forma constante, tensiona o sistema político e leva intranquilidade a toda parte. É quase impossível não associar a leitura deste livro ao que vivemos hoje no Brasil. Fato que só reforça a impressão de que, de alguma forma, estamos intrinsicamente conectados com o que acontece com os nossos vizinhos do Norte. Por fim, só resta estimar: Trump: primeiro tempo, é uma leitura indispensável para entender o presente e imaginar o futuro (próximo) da maior potência internacional da atualidade.
[1] Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP E PUC-SP). Bolsista FAPESP (2019/02536-1). Pesquisador no INCT-INEU.