Deisy Ventura[1]
Dar-se ao trabalho de sair de casa para lutar contra os direitos alheios parece ser uma ideia de outros tempos, em geral prenúncio de guerras e crimes contra a humanidade. A ideia retornou, porém, e com toda a força, ao nosso presente. Impressiona a mobilização de grandes contingentes de pessoas que parecem inebriadas por personagens grotescos, em torno de palavras de ordem que são infames tanto por seu teor ofensivo como por seu fundamento: achismo, desprezo por toda forma de conhecimento ou evidência científica, doutrinação religiosa ou simples mentira. Comumente agressivos, incultos e verborrágicos, simpatizantes pontuais ou fiéis das extremas direitas nem sempre estão conscientes de seu efetivo pertencimento partidário.
Diante do perigoso calvário em que se transformou a vida pública, o título do novo livro do sociólogo francês François Dubet tende a ser acolhido com um suspiro: “O tempo das paixões tristes”. Embora o autor não promova um debate conceitual, ao ponderar que a impressão de ser desprezado pode se transformar em capacidade de desprezar, a obra remete à expressão de Espinosa (Benedictus de Spinoza, 1632-1677), para quem as paixões tristes constituem o mais baixo grau da potência de agir humana, capazes de deixar o indivíduo à mercê da superstição e da tirania.
De fato, se décadas anteriores foram marcadas por intensa mobilização em prol da democracia e dos direitos individuais e sociais, a marca do nosso tempo parece ser a ascensão da ignorância raivosa e do ódio militante à condição de estilo político triunfal. A ausência de confiança popular nas instituições seria o pretexto para transformar discursos outrora considerados indignos em supostos exercícios de um direito. O repúdio ao imaginário império do “politicamente correto” serve como desculpa para acusar, denunciar e odiar tanto os poderosos como os fracos, os mais ricos ou os mais pobres, os desempregados, os refugiados, os intelectuais, os especialistas, ou qualquer outro bode expiatório.
Vale dizer que, embora publicado em março de 2019, este livro foi concluído antes da eclosão do movimento dos “coletes amarelos” (les gilets jaunes), o que adiciona ao texto uma dimensão premonitória, eis que o movimento, originalmente pouco legível e muito heterogêneo, foi assumindo feições extremistas e conservadoras.
A tese defendida por Dubet neste livro é a de que as desigualdades sociais desempenham um papel crucial nas paixões tristes do nosso tempo. Para o autor, embora o aumento das desigualdades possa ser significativo em determinados casos, não é a amplitude, mas sim a transformação do regime das desigualdades que explica a raiva, o ressentimento e a indignação dominantes. Enquanto as desigualdades pareciam incrustadas nas estruturas sociais, em um sistema percebido como injusto mas relativamente estável e fácil de entender, com o declínio das sociedades industriais as iniquidades diversificaram-se e, sobretudo, se individualizaram, pondo em marcha um rosário de provações pessoais e sofrimentos íntimos que encontram no populismo a sua atual expressão política. Jair Bolsonaro é listado entre os líderes populistas que mobilizam as paixões mais sombrias para transformar o povo em adversário das instituições, das mídias, do direito e da ciência.
Segundo Dubet, as grandes e reais desigualdades sociais (por exemplo, as que nos separam do 1% mais rico da humanidade) têm menor apelo do que as desigualdades entre aqueles que se cruzam todos os dias. Uma globalização heterogênea e as mutações do capitalismo produziram um universo social em que nos sentimos mais ou menos iguais em função dos diversos bens econômicos e culturais dos quais dispomos, assim como das diversas esferas a que pertencemos. Nós somos desiguais como diplomados ou não; jovens ou velhos, homens ou mulheres; vivendo numa cidade de economia dinâmica ou em declínio, residindo em um bairro chique ou na periferia; casados ou solteiros; brancos ou não, estrangeiros ou não; desempregados, empregados bem pagos ou explorados etc. Ademais, a agregação de pequenas desigualdades pode resultar em grandes desigualdades finais. Embora esta lista nada tenha de novo, diferentemente dos embates ideológicos do passado, as desigualdades multiplicadas e personalizadas de hoje não se inscrevem em uma grande narrativa que lhes dê sentido e atribua causas e responsáveis.
Compreender a fragmentação das desigualdades não implica, contudo, questionar a existência das classes sociais. Para Dubet, por certo elas ainda existem, especialmente as classes dirigentes, dotadas de forte consciência sobre si mesmas e seus interesses. Mas a verdadeira questão é saber se o regime de classes ainda é capaz de enquadrar as representações das desigualdades que nutrem os diferentes atores. Os populistas de diversos matizes esforçam-se para superar esta dispersão, opondo o povo às elites e os nacionais aos estrangeiros, entre outras clivagens, instaurando uma economia moral na qual a rejeição dos outros e a indignação generalista restituem ao cidadão infeliz o seu valor e a sua dignidade.
Dubet recorre ao exemplo francês para afirmar que é um erro estabelecer uma correlação automática entre a amplitude das desigualdades e a forma pela qual os indivíduos a percebem. Nos últimos 30 anos, 80% dos franceses têm pensado que as desigualdades aumentaram em seu pais, mesmo nos momentos em que isto está longe de ser verdade. Baseado igualmente em pesquisas internacionais, o autor conclui que a desigualdade é menos percebida nas sociedades onde a crença na meritocracia é maior, independentemente do mérito individual ser ou não, de fato, recompensado na escala social. Os dados sobre os Estados Unidos são reveladores do papel desta crença: embora se trate de um dos países mais desiguais do mundo, nele a percepção das desigualdades pelos cidadãos é das mais reduzidas.
Breve e enfático, este livro é corolário de longos anos de estudo sobre as desigualdades. Professor emérito da Universidade de Bordeaux e pesquisador da Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais (EHESS) de Paris, Dubet é uma referência da chamada sociologia das desigualdades, abordada em dezenas de seus livros e artigos, parte deles dedicada à educação. No Brasil, seu livro “O que é uma escola justa? A escola das oportunidades” foi publicado em 2013. Entre os exemplos da influência desta e de outras de suas obras junto aos intelectuais brasileiros, podemos citar Flávia Schilling (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo) que dialoga com o pensamento de Dubet em seu livro “Educação e Direitos Humanos: percepções sobre a escola justa” (Cortez, 2014).
O tempo das paixões tristes merece ser discutido no Brasil por diversos motivos, entre os quais eu destacaria dois.
O primeiro está relacionado à sonora irrelevância, aos olhos de segmentos importantes da sociedade brasileira por elas beneficiados, das políticas de redução das desigualdades promovidas em nosso território nas últimas décadas. Cogita-se inclusive que numerosos “ex-lulistas” sejam hoje “bolsonaristas”, em uma troca de paixões que convoca à reflexão.
O segundo aspecto corresponde à conclusão do texto, em que Dubet aponta a dificuldade das esquerdas de enfrentar as questões suscitadas pelos populismos atuais. Em lugar de perceber como triunfos do individualismo as tensões entre felicidade privada e infelicidade pública, ou entre a justiça pessoal e a cólera coletiva, as esquerdas democráticas deveriam lembrar que os indivíduos são muito mais solidários e engajados do que o auge das paixões tristes deixa entrever. Dubet denuncia a invisibilidade dos ativistas das causas ditas perdidas, dos parlamentares de pequenas localidades ou marginais em seus partidos, dos incansáveis profissionais das áreas de educação e da saúde. Assim, sem deixar-se contaminar pela infâmia, em lugar de arautos da decadência e da catástrofe, as esquerdas deveriam saber se mostrar como reservas de esperança e de responsabilidade.
Referências bibliográficas:
DUBET, François. Le temps des passions tristes – Inégalités et populisme. Paris: Éditions du Seuil/La République des idées, março de 2019.
DUBET, François. O que é uma escola justa? A escola das oportunidades. São Paulo: Cortez Editora, 2013.
SCHILLING, Flávia. Educação e Direitos Humanos: percepções sobre a escola justa. São Paulo: Cortez Editora, 2014.
SPINOZA. Ética. [Tradução e notas de Tomaz Tadeu] 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
[1] Professora Titular de Ética da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Direito da Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne. Bolsista PQ/CNPq (1B).