Fábio Nogueira[1]
01 de março de 2024
Na aridez que por vezes assume o debate intelectual e acadêmico, conferindo a este o que o cantor Cazuza chamou de “museu de grandes novidades”[2], Jean Tible propõe um encontro tão improvável quanto necessário entre Marx com a América Indígena. O livro está em dividido em quatro capítulos: o primeiro dedica-se a construir o encontro de Marx com a América Indígena; o segundo analisa os escritos de Marx e Engels, em especial sobre a Comuna rural russa (mir) e os Cadernos Etnológicos, que se dedicaram às sociedades não europeias; o terceiro se concentra nos diálogos entre Marx e Clastres e, por fim, o quarto e último capítulo estuda as cosmopolíticas ameríndias.
Soterrado por décadas de um evolucionismo unilinear, algumas interpretações de Marx acabaram, infelizmente, dominadas por esquemas que focaram no “etapismo dos sucessivos modo de produção” (dos “povos primitivos”, passando pelo “feudalismo”, “capitalismo” e chegando finalmente ao “socialismo” e “comunismo”) como se a função do pesquisador fosse equivalente a um passeio em um museu de história natural onde se pode percorrer a história dos diferentes fósseis (dos primeiros hominídeos ao atual Homo Sapiens). Escavar os conceitos e a teoria marxiana confrontando-as com as questões do tempo em que foram escritas e do nosso tempo é um trabalho paciente que, no livro de Jean Tible, não se confunde com um exegese exaustiva e desinteressada dos escritos do sábio alemão: é um trabalho engajado, político, coerente como o projeto de uma ciência-luta.
Diante de séculos de colonialismo em que a violência física e simbólica, a desumanização de povos originários e africanos, foram partes indeléveis do modo de produção colonial-escravista, em que a imposição de sistema de crenças e valores (ideologia) foi a força dominante em detrimento do contato e da troca cultural, o livro de Jean se assenta em diálogos, com ecos de uma pedagogia freiriana em que é dado aos subalternizados e dissidentes, incluindo Marx, a fala. Isso porque não há uma comunidade de fala sem uma comunidade de ouvintes; não é sobre produzir novos silenciamentos como uma duvidosa “reparação histórica” mas dar vazão a diálogos que tiveram pouco espaço entre nós.
Sem deixar de fazer referência a José Carlos Mariátegui (1894-1930) e o seu clássico Siete Ensayos de Intepretación de la Realidade Peruana (1928), o precursor do encontro do marxismo com a América Indígena, e sua teoria do comunismo incaico, tem seu leimotiv a partir da realidade histórico-social concreta do genocídio, escravização e colonização dos povos originários nas Américas e no Caribe, pensando-os a partir dos sentidos subjetivos de suas próprias práxis históricas como o fez, por exemplo, Clóvis Moura em sua práxis negra que chamou de quilombagem como fator determinante na desagregação do modo de produção escravista no Brasil[3].
Este diálogo se inicia entre Marx e Pierre Clastres retomando os termos de uma contenda intelectual que ainda permanece em aberto e que Jean Tible acrescenta sua contribuição. Em seu Sociedade Contra o Estado (1974), Clastres refuta a ideia da universalidade do Estado como formação sócio-histórica e cultural e mostra como para os povos indígenas da América Latina, em especial os Guarani, a autoridade estatal é esvaziada continuamente. Neste sentido há uma cosmopolítica dos Guarani contra o Estado que apresenta novas possibilidades do fazer/ser político. De Clastres crítico de Marx chegamos a uma alquimia de onde surge um Marx contra o Estado a partir do cotejamento de seus escritos como os Manuscritos Econômicos-Filosóficos, A crítica a teoria do direito em Hegel, os Cadernos Etnológicos, e suas observações sobre o potencial revolucionário comuna rural russa, entre tantos outros.
A crise da democracia liberal burguesa, tão presente nos escritos revolucionários de Marx, e nos dias atuais, antecipa um estado proletário que está grudado ao chão histórico de suas lutas e deve, portanto, ser pensado para além de esquemas abstratos e ortodoxos. Desta forma, Marx, de punho próprio, no calor do seu tempo histórico, parece estar mais atento às possibilidades de organização política da sociedade comunista que divisam estruturas horizontais de autopoder político dos trabalhadores. Estaria ele, desta forma, tão distante assim do Contra Estado dos povos ameríndios?
Para Airton Krenak “o poder, o capital entraram em um grau de acúmulo que não há mais separação entre a gestão política e financeira do mundo” . Logo são as corporações e não o estado quem comanda a política o que torna a luta revolucionária algo abstrato por não ter algo concreto contra o qual se insurgir[4]. Mas se as formas estatais foram tornadas obsoletas pelo próprio capital, não seria o caso de criar formas de contrapoder ao capital que tivessem como referência a experiência própria dos povos originários, suas cosmopolíticas? Voltamos aqui a Marx: contra o poder do capital e das corporações, o poder popular que, em diferentes momentos e configurações históricas estiveram presentes no horizonte histórico das classes expoliadas e expropriadas, o Quilombo dos Palmares (Séc XVI-1695), a Comuna de Paris (1871), a Comuna rural russa, os Soviets, as formas de autopoder comunitário dos Zapatistas e Povos Originários nas Américas.
Este desmanche de um Marx teleológico, com fórmulas prontas e pré-estabelecidas sobre o Estado e sua natureza é o ponto alto do livro de Jean Tible. E o faz – é importante frisar – a partir de um declarado sentido de intencionalidade histórica, como uma contribuição interessada em ampliar a escuta marxiana em relação a Clastres e a cosmopolítica ameríndia, sem deixa-se levar por um pretenso exotismo deste diálogo singular, mas procurando entendê-lo como uma necessidade premente da maneira como o Estado e as formas de organizações políticas, acabaram se prendendo a receituários pré-estabelecidos.
Para isso, o conceito de uma teoria-luta, é essencial para o presente livro de Jean Tible. Era necessário por em suspenso o que acabou por se tornar uma certeza (quase verdade irrefutável) para o pensamento Ocidental: a onipresença do Estado, como um ente constitutivo da experiência moderna, no pensamento de Marx. Haveria o sábio alemão se dedicado a porção do mundo e aos povos que viviam no além da Europa? Qual a consequência disso em sua visão sobre Estado e o comunismo? É menos, portanto, sobre entender como Marx impacta as visões sobre o Estado pensadas desde a visão ameríndia mas o seu contrário. É do confronto com a cosmopolítica ameríndia que o pensamento sobre estado e comunismo dos escritos de Marx revela um Marx selvagem, insubmisso, irascível como sugere o título da obra.
O quarto e último capítulo é um importante ponto de inflexão no livro de Jean Tible. No entanto, o perspectivo amazônico de Viveiros de Castro e o pensamento de David Kopenawa ocorrem em detrimento à contra política dos Guaranis, mais ao Sul do subcontinente Sul americano, tão bem estudados por Pierre Castres. Ianomâmis e Guaranis conformam tipologias que possam ser reduzidas a uma contrapolítica abstrata que em seu conjunto se opõe ao Leviatã, imagem recorrente quando se fala do Estado Moderno? De maneira contra factual, é também importante se interrogar sobre as formações estatais em sociedades como a Inca, estudadas por Mariátegui, Asteca e Maia.
Como hipótese inicial, o que Jean nos apresenta é uma agenda de estudos-luta que miram nas formas estatais e não-estatais de poder político em formações culturais distintas do Estado Moderno, este também histórico e porque não cultural. Tratar-se-ia então não de visões concorrentes mas complementares de Estado e contra-Estado? Como isso concretamente se expressa? Poderíamos observar isso na aprovação em referendo popular, em 2009, da Bolívia como um Estado Plurinacional? Voltamos ao campo do diálogo que também é, felizmente, o das possibilidades. Contudo, há que se ter em conta os riscos da cosmopolítica dos povos ameríndios serem tomadas não como práxis – no sentido de fazimentos comunitários e coletivos de sentidos políticos – mas como filosofias, eticidades e empreendimentos estético-morais como de, alguma maneira, infelizmente, se deixam divisar em determinados estudos decoloniais. Se assim o for, voltaremos à lógica dos receituários prontos e pré-estabelecidos, como receituários de modos de vida que não sobrevivem ao campo agonístico da história por conta do próprio capital (que em seu atual momento mercantiliza e reduz tudo a “estilos de vida” a serem vendidos e consumidos por aplicativos e por meio das redes sociais).
A cosmopolítica e o marxismo é, sobretudo, práxis. Mesmo quando confrontado com o perspectivismo amazônico de Viveiros de Castro – pensando a floresta como um espaço vivo, de seres que interagem entre si e estabelecem relações de sentido e significado – até mesmo nas revelações xamânicas de David Kopenawa, o que se procura é entender como a divisão entre mundo natural e social, tão presente na filosofia do Ocidente, não faz sentido fora desta. O continuum vivos e mortos, natureza e sociedade, é o que caracteriza a experiência política destes povos e devem servir de espaço de troca e aprendizado coletivo para a própria teoria marxista que precisa, urgentemente, se reinventar.
Também é importante pensar outras cosmopolíticas como as africanas e afro-diaspóricas: há uma densa literatura, principalmente entre os intelectuais negros, a respeito do quilombo, palenques e cimarrones somando-se ainda o fato de que além de sociedades capitalistas dependentes formamos mosaicos multiculturais e raciais em que violência estatal torna esta experiência histórica dramática e desesperadora (do escravismo e seu aparato de estatal de repressão que se lançou contra indígenas e africanos até as atuais políticas de extermínio e segregação territorial e espacial destes em nome da Guerra das Drogas e a expansão do agronegócio).
Localizo o livro de Jean Tible em um movimento intelectual mais amplo de renovação das Ciências Sociais que passa também pelo marxismo. Temos, ao lado dos estudos decoloniais de inegável valor teórico e político, a republicação de autores clássicos como Clóvis Moura[5], aproximações do conceito de racismo estrutural da Teoria Marxista da Dependência (TMD) de Rui Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos[6], a contribuição do pensamento de Franz Fanon para se pensar a atual realidade técnico-informacional do capitalismo[7] e até mesmo apresentando uma perspectiva do marxismo negro presentes em meus trabalhos, de Cedric Robinson e Daniel Montañez e Pico[8].
O livro de Jean Tible é sobre digerir este especioso alemão: Karl Marx. A antropofagia continua a ser um modo de ser coletivo em que destruímos e reinventamos nossos ídolos e tradições. Como afirma o saudoso Zé Celso Martinez no prefácio da obra: “desejo á todos q lerem este Livro q o devorem y os transforme na deliciosa luta milenar dos Índios na Terra ao lado dos Bichos Humanos y Animais, vencerem. É incrível a descoberta da Importância de todos estes Livros Mencionados y dos ainda não, no prazer da ReVolição” (Tible, 2020, p. 20).
Do ponto de vista da proposta do livro de Tible temos, felizmente, várias bifurcações que rompem com a interpretação unilinear dos escritos de Marx. Para combater a vulgata marxista, a exegese de seus escritos e pensamento é um imperativo, mas não substitui a ampliação deste em termos de novas possibilidades analíticas e políticas, o que só é possível de acontecer no caldeirão das lutas. Não esperem um livro que funcione como um manual de instruções que ensina a montar esquemas teóricos tão bonitos quanto frágeis mas, na falta de uma melhor nomenclatura, um “antimanual” que semeia dúvidas, inquietações e apresentem possibilidades tanto promissoras quanto improváveis. Práxis nada mais é do que a experiência do improvável.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referência imagética: Capa de “Marx Selvagem”, de Jean Tible. Editora Autonomia Literária. Disponível em: <https://autonomialiteraria.com.br/loja/teoria-politica/marx-selvagem>. Acesso em: 15 fev. 2024.
[1] Fábio Nogueira é Professor Adjunto da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Desenvolve pesquisas nas áreas de Teorias Críticas e Negritude e é membro do Grupo de Pesquisa CELACC/USP. Coordenador do Ija Imo – Grupo de Estudos do Marxismo Negro “Clóvis Moura” do Departamento de Educação da UNEB, Campus I, Salvador. E-mail: fnogueira@uneb.br
[2] Trecho da música “O tempo não para” composta por Cazuza e Arnaldo Brandão que deu título ao seu Long Play (LP) lançado em 1988.
[3] A respeito do conceito de quilombagem ver: Moura, Clóvis. História do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Dandara, 2023.
[4] Krenak, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 15.
[5] A Editora Dandara que vem republicando trabalhos de Clóvis Moura de difícil acesso ou fora de catálogo. Entre os títulos estão: Quilombos e a rebelião negra (2022 [1986]), Brasil: As raízes do protesto negro (2023 [1983]) e História do Negro Brasileiro (2023 [1989]).
[6] A respeito ver: Oliveira, Dennis. Racismo Estrutural. Uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo: Editora Dandara, 2021; Sabino, Cristiane. Racismo e Luta de Classes na América Latina: As veias abertas do capitalismo dependente. São Paulo: Editora Hucitec, 2020; e Farias, Márcio. Clóvis Moura e o Brasil. São Paulo: Editora Dandara, 2021.
[7] Faustino, Deivison; Lippod, Walter. Colonialismo Digital: por uma Crítica Hacker-fanoniana. São Paulo: Boitempo Editorial, 2023.
[8] Ver: Oliveira, Fábio Nogueira. Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra. Salvador: Eduneb, 2016; Montañez y Pico, Daniel. Marxismo Negro: Pensamiento descolonizador del Caribe Anglófano. Madrid: Akal, 2020; e ROBINSON, Cedric. Marxismo negro: A invenção da tradição radical negra. São Paulo: Editora Perspectiva, 2023 [1983].