Resenha de tese de Doutorado em Ciência Política defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, em 2018.
João Caldeira Brant Monteiro de Castro
A tese buscou compreender como as empresas de televisão mobilizaram seus recursos políticos na defesa de seus próprios interesses no caso da definição da política de classificação indicativa para programas de TV, entre 1990 e 2007, com o objetivo de compor um quadro mais acurado da atuação dessas empresas como grupo de interesse e das relações entre comunicação e política.
Os achados revelam, antes de tudo, uma atuação política forte e permanente das empresas durante duas décadas, sustentada na utilização de estratégias e táticas ordinárias e peculiares , possíveis em função de seu controle de recursos políticos escassos – embora não necessariamente relacionados a seu uso efetivo. O caso evidencia que as empresas de televisão constituem, per se, um centro de poder que é interlocutor qualificado do poder político em escala nacional. Ele reforça o entendimento de que a relação entre comunicação e política não pode ser trabalhada apenas na base da influência entre dois campos, mas deve partir do reconhecimento das empresas de televisão como atores políticos.
A análise do caso demonstrou, ao mesmo tempo, uma estratégia sofisticada de autocontenção das empresas no uso de seus recursos políticos exclusivos como forma de obtenção de vantagem política. O uso direto desses recursos, por meio do direcionamento de sua cobertura jornalística e de sua programação, não é a forma principal de exercício de seu poder. O fundamental é o lastro que o controle do acesso à esfera pública confere às estratégias ordinárias de pressão política pelas empresas.
A percepção da complexidade da ecologia da relação entre os campos da política e da mídia é essencial para se compreender o lastro do poder político das empresas. São as diferentes modalidades de relação entre os dois campos – estrutural, institucional, cultural e econômica –, todas relacionadas ao controle de acesso à esfera pública, que compõem os elementos de sustentação que conferem às empresas o poder que elas demonstram na pressão pelos próprios interesses. Assim, se de um lado é no momento de atuar como grupo de interesse que as empresas utilizam seu poder, por outro lado o processo de concentração desse poder só se explica pela combinação dessas quatro modalidades de interação.
No caso da política de classificação indicativa, fica claro que o uso direto dos recursos controlados pelas empresas não foi explorado em toda sua potência, por opção das próprias empresas. O poder real de negociação dessas empresas, Globo à frente, esteve relacionado a um cálculo dos agentes políticos sustentado na presunção de efeitos a que se referem Timothy Cook, Hans Kepplinger e Mauro Porto.
Aqui, contudo, o cálculo não está ligado necessariamente ao tratamento, pela mídia, do tema mesmo a que os agentes políticos estão dedicados (neste caso, a política de classificação indicativa). Os cálculos extrapolam para pelo menos três espaços de disputa: no caso do Poder Executivo, o tom e enquadramento cotidiano da cobertura sobre assuntos de interesse do órgão envolvido (neste caso específico, o Ministério da Justiça) ou do centro do governo. No caso do Parlamento, a capacidade de calibrar a visibilidade – em termos de quantidade e valência da abordagem – de atores que dependem da mídia para manter sua viabilidade política. Para o Judiciário e para atores chave do Executivo (como ministros e presidente), o poder está ligado à capacidade de emprestar reputação positiva ou negativa, condicionando a imagem pública e o prestígio dos agentes políticos.
Trata-se, na prática, da percepção, pela classe política, da hegemonia de um relevante ator político, que se combina, em determinados momentos, com demonstrações pontuais desse poder “à luz do dia”. A combinação de exercício aberto de poder e autocontenção configura estratégia sofisticada de sustentação desta hegemonia.
Entre os indicadores claros do poder das empresas perante o poder público, talvez o mais evidente seja o próprio resultado da política. O caso da classificação indicativa foi aquele, dentre as políticas de comunicação, em que o Poder Executivo foi mais longe na disposição de enfrentamento às empresas. Foi o único, em um período de pelo menos 20 anos, no qual o Governo Federal conseguiu obter vitória em alguma batalha relevante com as empresas. Ainda assim, a decisão do Ministério da Justiça de enfrentar os interesses das empresas de televisão não garantiu a efetiva implantação da política. Se compreendido que, nos últimos 28 anos, em apenas três a política de classificação indicativa esteve de fato em vigor com todas as características que a sustentam, e que a decisão tomada pelo STF em 2016 tornou inócua parte da política do Poder Executivo, fica caracterizado que a vitória do Ministério da Justiça foi um episódio pontual em uma guerra vencida pelas empresas de televisão.
A tese se encontra disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-22022019-181255/pt-br.php