Resenha de tese de Doutorado em Relações Internacionais defendida no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), São Paulo, em 2019.
Laís Azeredo Alves
A tese intitulada “Crimigração como prática securitária no Aeroporto Internacional de Guarulhos (2010-2017)” teve como objetivo compreender como ocorre o controle migratório dentro do aeroporto internacional Franco Montoro, localizado na cidade de Guarulhos, no estado de São Paulo.
A prática securitária é o tratamento de uma questão como um problema de segurança, o que inclui o uso de táticas, instrumentos e agentes dessa seara em seu gerenciamento. A crimigração ou criminalização da imigração é uma das facetas desse tipo de técnica governamental, porque associa a política migratória com a política criminal. Isso resulta no entendimento de determinados imigrantes como criminosos (potenciais e/ou de fato), o que pode levar a tratamentos e a punições mais rígidas quando comparadas às penas cumpridas pelos nacionais, como maior tempo de detenção e a possibilidade de expulsão.
O período histórico analisado diz respeito a dois grandes marcos na gestão dos fluxos migratórios no Brasil. O ano de 2010 refere-se ao início dos fluxos mais enfáticos de haitianos, emigrados em razão do terremoto que destruiu o país e da instabilidade política que afetava a região há décadas. A partir desse momento, a temática migratória recebeu maior notoriedade no cenário público, apesar da ocorrência de outros fluxos, como é o caso dos imigrantes mercosulinos (motivados pelo Acordo de Livre Circulação), embora isso não tenha ocasionado uma mudança na balança migratória que continuou pendente para a emigração.
No que concerne ao Brasil, é importante não olvidar que, apesar de construído por imigrantes, o gerenciamento dos fluxos desde os séculos XIX e XX teve um caráter seletivo, com claros contornos raciais, a partir da priorização de imigrantes brancos em detrimentos de negros e amarelos. A imigração, desse modo, sempre esteve na pauta política do país, embora mais presente em determinados momentos do que em outros. Em razão da inversão na balança migratória com a grande saída de brasileiros, a temática passou a ocupar um lugar de menor destaque no debate público, o que foi modificado com a chegada dos haitianos.
O ano de 2017 refere-se, por sua vez, ao fim da vigência do Estatuto do Estrangeiro, uma normativa criada em 1980, durante a ditadura militar, que possuía como um dos seus princípios o entendimento dos fluxos migratórios como uma questão de segurança nacional. O Estatuto foi substituído em 21 de novembro de 2017 pela lei 13.445, criada a partir da participação ativa da sociedade civil e da academia e cujo cerne era o entendimento do imigrante como sujeito de direitos.[1]
O foco no aeroporto de Guarulhos deu-se em função de sua notória importância como maior aeroporto do país, o que lhe torna um dos principais pontos de acesso ao território brasileiro por vias aéreas. Devido a esse contínuo e intenso fluxo de pessoas, os agentes de controle migratório, assim como é de praxe em outros locais no mundo,[2] têm adotado práticas rígidas de controle migratório, para evitar a entrada de pessoas consideradas indesejáveis; ou seja, que não são bem vindas por serem vistas como um problema ou até mesmo uma ameaça ao país. Uma das formas de gerenciar esses fluxos é a instalação de zonas de trânsito, para onde são encaminhadas as pessoas inadmitidas ou os que estão sob suspeita e ainda não foram liberadas.
No caso do Brasil, o organismo que controla esses fluxos é a Polícia Federal (PF), agência responsável por tratar de questões referentes à criminalidade. A PF possui, tanto em termos normativos internos (resoluções institucionais) quanto no âmbito nacional, no caso a partir do Estatuto, poder discricionário para categorizar admitidos e inadmitidos, com base em critérios objetivos (como falta de documentação), mas também subjetivos, como as definições de ameaça à ordem pública e à segurança nacional. Já a zona de trânsito é chamada de conector e se trata de uma sala, localizada no Terminal 3 do Aeroporto de Guarulhos. O espaço é composto por cadeiras e por dois banheiros, um masculino e outro feminino. Não há sofás, tampouco camas ou cômodos que pudessem servir para o alojamento adequado de indivíduos.
Nos últimos anos, várias notícias[3] lançaram luz sobre o que acontecia nessa sala e sobre o processo de retenção de imigrantes. O objetivo dessa pesquisa foi, então, compreender como ocorria a decisão sobre quem poderia e quem não poderia entrar, quais critérios foram utilizados e por que. Nesse sentido, a pesquisa permitiu observar a ocorrência de casos de pessoas que ficaram retidas poucos dias, mas também de indivíduos que permaneceram meses no local. Menores de idade, mulheres, inclusive grávidas, e homens compartilhavam o mesmo espaço por semanas, sem que houvesse condições minimamente adequadas para sua estada.
As razões que motivavam essa “retenção” – conforme termo utilizado pelos agentes da PF – estavam, sobretudo, em problemas de documentação, mas também eram resultado de dificuldades de comunicação, já que apenas parte dos agentes fala outro idioma e nesses casos, trata-se majoritariamente do inglês. Muitos imigrantes não conseguiam expressar o porquê de estarem no país e também, em diversas situações, os motivos pelos quais não poderiam retornar ao seu país de origem. Muitos desses casos configuravam refúgio e não havia no local nenhum mecanismo que pudesse evitar esse tipo de violação do Direito Internacional dos Refugiados e da lei brasileira de refúgio (9474/1997).
Era notório, conforme informações adquiridas via conversas informais com agentes do terceiro setor que trabalharam com imigrantes que passaram pelo local e também a partir de dados obtidos via Lei de Acesso à Informação e com a Polícia Federal, que a maior parte dos que eram encaminhados ao conector tinha um perfil étnico nacional específico. Tratava-se, em sua maioria, de jovens homens provenientes de países africanos, como nigerianos e de países asiáticos como Bangladesh e Índia. Por outro lado, quando foram analisados os dados referentes às inadmissões, os números indicavam que as principais nacionalidades eram estadunidenses, canadenses e chineses. Ou seja, havia uma incongruência sobre quem sofria mais inadmissão e quem era encaminhado ao conector.
Uma das perguntas respondidas na tese foi como e por que esse cenário foi possível. Dessa forma, o que se observou foi a presença de critérios subjetivos em determinadas abordagens dos agentes federais. Por exemplo, há uma ênfase maior da polícia em voos provenientes de países menos desenvolvidos, como os que chegam do Marrocos e da Etiópia, porque, segundo a PF, são os voos com maior recorrência de documentação irregular. Nesses casos, a PF, além de uma análise mais rigorosa na documentação, também foca em perguntar sobre as razões de viagem, para checar se o indivíduo veio, de fato, ao país como turista ou se deseja permanecer por razões que vão além do que seu visto permite. Nesse ínterim, o agente responsável faz questionamentos sobre a quantidade de dinheiro, sobre a mala e o local onde viajante vai permanecer. O mesmo tipo de abordagem não ocorre em voos provenientes de países europeus, por exemplo.
Por outro lado, o que explica a razão pela qual os norte-americanos não são encaminhados ao conector é a existência de salas VIP das companhias aéreas provenientes da Europa e da América do Norte. Ao invés de ficarem no conector, as companhias aéreas, que são responsáveis pelas pessoas inadmitidas e que devem custear o seu retorno, alocam esses indivíduos em sua sala VIP, enquanto aguardam o próximo voo. O papel das companhias aéreas no processo de inadmissão pode ser compreendido a partir disso: para evitar gastos com passageiros que possivelmente sofrerão impedimento de entrada, muitas companhias já exercem o controle fronteiriço no momento de check-in.
Assim, foi possível compreender o que e como se dava o controle migratório no maior aeroporto do país em um cenário caracterizado pelo aumento nos fluxos de entrada, ainda durante a vigência de uma normativa securitária e sob o gerenciamento de uma autarquia responsável por questões de segurança. O que se percebeu foi a interferência de diversos fatores nesse controle migratório. Em termos legais, o Estatuto do Estrangeiro e instruções normativas internas da PF, que davam poder de discricionariedade ao agente. Em termos institucionais, o histórico caráter seletivo da política migratória brasileira, que historicamente determina uma separação entre desejáveis e indesejáveis e com claros critérios étnicos presentes. Há ainda o papel central das companhias aéreas que realizam um controle migratório prévio, para evitar gastos com o retorno de passageiros inadmitidos. Por fim, mas não menos importante, cabe destacar o papel do Ministério das Relações Exteriores (MRE) na concessão e negação de vistos, aspecto citado no trabalho, mas que merece um maior desenvolvimento em pesquisas futuras.
A tese se encontra disponível em:
[1] A lei sofreu impactos com os vetos do então presidente Michel Temer e posteriormente no processo de regulamentação, quando foram criadas práticas que iam de encontro à própria lei. Por exemplo, enquanto a nova lei não previa detenção por questões migratórias, o decreto passou a permitir.
[2] Para mais informações consultar: AAS, Katja Franko. ‘Crimmigrant’ bodies and bona fide travelers: Surveillance, citizenship and global governance. Theoretical Criminology, v. 15, Issue 3, p. 331 – 346, Aug. 2011. Disponível em: http://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1362480610396643.
HERNANDÉZ, César C. G. Deconstructing Crimmigration. University of California, Davis, v. 52, 197. Disponível em: https://lawreview.law.ucdavis.edu/issues/52/1/Symposium/52-1_Garcia_Hernandez.pdf.
[3] PEREZ, Fabíola. Um depósito de estrangeiros em Cumbica. ISTOÉ. Comportamento. 26 jun. 2015. Disponível em: https://istoe.com.br/424648_UM+DEPOSITO+DE+ESTRANGEIROS+EM+CUMBICA/. Acesso em 25 jun. 2018.