Stephany D. Pereira Mencato
O livro de Bruna Pereira (2020) é resultante de sua tese desenvolvida em 2019 junto ao programa de doutorado em Sociologia da Universidade de Brasília (UNB), centro de referência nacional na área. Assim, a autora é doutora em Sociologia pela UnB, mestre em Sociologia pela mesma instituição e graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). A obra foi publicada em 2020 pela Latin American Research Commons (LARC), editorial de acesso aberto relevante, pois se foca na divulgação de investigações desenvolvidas na e sobre a América Latina, focando-se em perspectivas e conhecimentos alternativos sobre as maneiras que entendemos o mundo onde vivemos.
A obra é composta por cinco capítulos, além de introdução e conclusão. Possui ao todo 251 páginas, contando com entrevistas e um pequeno survey que aborda as trajetórias afetivo-sexuais de mulheres negras. Foi contemplado um universo total de 21 mulheres negras, de perfil variado quanto a geração, classe social, orientação sexual e tom de pele (claro ou escuro). A opção por conduzir a pesquisa exclusivamente junto a mulheres negras, com exceção das observações realizadas em espaços abertos ao público, foi tomada com a intenção de recuperar a perspectiva delas sobre as relações raciais e de gênero no Brasil, bem como a possibilidade de tratar com maior profundidade a questão complexa colocada à pesquisa.
A autora se vale de uma abordagem socioantropológica das vivências afetivo-sexuais para firmar um modelo analítico interseccional onde mobiliza três fatores de articulação de gênero e raça no âmbito afetivo-sexual: a estética, a sexualidade e a moralidade sexual. A partir desses elementos, ela busca compreender como gênero e raça configuram as trajetórias afetivo-sexuais de mulheres negras na sociedade brasileira contemporânea, partindo da hipótese de que a interseccionalidade de gênero e raça ocupa um lugar central no delineamento da sequência de experiências afetivo-sexuais destas mulheres no decorrer de suas vidas no Brasil atual.
A pesquisadora, que também se identifica ao longo do texto enquanto mulher racializada, dialoga com diferentes mulheres negras, por vezes chamadas mulheres-moringa em decorrência de certas características físicas apontadas como comuns (a cintura fina e o quadril largo) que lembram o formato de uma moringa, a fim de que estas falem sobre suas paixões (dengos), e também sobre suas desventuras amorosas (zangas).
O primeiro capítulo estabelece os fundamentos analíticos do texto, os aportes teórico-conceituais que dirigiram o olhar da autora para a realidade. Deste modo, ela aprofunda-se em teorias sociológicas existentes que tratam dos processos individuais de subjetivação, de interações sociais, bem como das trajetórias afetivo-sexuais e dos fenômenos relacionados ao apaixonamento e ao desejo, às experiências eróticas e aos laços subjetivos e sociais criados por afeições, abraçando temáticas vinculadas à formulação de um discurso antirracista.
É apresentando como modelo analítico uma costura interseccional onde a autora mobiliza três fatores de articulação de gênero e raça no âmbito afetivo-sexual: a estética, a sexualidade e a moralidade sexual, propondo desse modo uma análise interseccional que se atenta às diferenças nas experiências dos grupos sociais articulados pelas clivagens de gênero e raça, mas não as prioriza enquanto fundamento explicativo. Deste modo, seu foco nem sempre é a delimitação precisa e inequívoca do que se refere a gênero e do que se refere a raça (PEREIRA, 2020, p. 23).
O foco se mantêm, desse modo, nos diálogos travados com as mulheres negras entrevistadas, em suas vivências afetivo-sexuais, e em diálogo com a literatura, o texto aborda questões centrais à intersecção raça e gênero: a questão da beleza feminina como atrativo para os homens; a relação com o ideal de beleza branco; o machismo e a violência contra as mulheres; a experiência da solidão, do sexo casual, e o eventual desejo de encontrar um companheiro; e por fim o uso das tecnologias e redes sociais para paquera.
O capítulo dois é dedicado as relações entre as interações sociais e a subjetividade, aborda o “tornar-se negra” a partir da socialização inicial das mulheres negras, especialmente no ambiente familiar e escolar, compreendidos como primeiros espaços de socialização. A autora aponta como narrativas que associam negritude e feiura marcam a infância e a primeira socialização de meninas negras, pois “são frequentes os episódios em que professores/as e demais funcionários/as, além dos pares, engajam-se em comportamentos que explicitamente ofendem, inferiorizam ou excluem crianças e adolescentes negros/as” (PEREIRA, 2020, p. 43). A beleza feminina é percebida pelas entrevistadas enquanto atributo a ser adquirido, conquistado, e quanto mais próximas dos marcadores raciais de negritude essas meninas se encontram, maior o grau de violência, solidão e rejeição a que foram submetidas, e gradualmente incorporaram, gerando, segundo a obra, um saldo negativo na subjetividade das entrevistadas.
Os envolvimentos afetivo-sexuais são o objeto de análise do terceiro capítulo, certamente o mais marcante da obra. As narrativas frequentemente apontaram a grande frequência em que “as entrevistadas, relacionando-se com homens brancos, ocuparam a posição de ‘amantes’ ou ‘ficantes’ ou relataram o desinteresse dos homens brancos para estabelecer com elas relações sérias, que caracterizassem compromisso” (PEREIRA, 2020, p. 109). Destacaram-se aqui narrativas sobre abordagens e flertes entre homens e mulheres em diferentes situações, sempre marcadas pela realidade dos fetiches racializados e o enaltecimento da beleza individual por meio da degradação da raça.
É apontado um inegável entrelace entre desejo e afeto, onde hierarquias sociais de gênero e raça que marcam as relações de mulheres negras, tomadas, nas palavras de uma das entrevistadas, como uma carne barata, que muitos querem usar, mas ninguém quer levar para casa. Expectativas quanto aos papéis de gênero se ligam também à raça, como marca a pesquisa. Em relações inter-raciais cabe à mulher negra o trabalho de cuidado emocional do par branco, destacando-se expectativas de cuidado para com os homens, em uma associação entre negritude e trabalho ou na percepção de uma ‘dívida’ contraída pelo par de menor posição racial, a mulher negra, ao adentrar um relacionamento com uma pessoa branca. Assim são marcadas, de modo assimétrico, as dinâmicas intracasais (PEREIRA, 2020, p. 111), sendo realçado o papel da raça enquanto motivo de atração, atribuição de papéis, comportamentos e posições de cada pessoa no interior das relações.
O capítulo quatro volta-se para a análise das interações entre familiares, amigos/as e desconhecidos/as com casais compostos por mulheres negras, apontando a forte imposição dos padrões tradicionais de moralidade racializadas sobre tais relações. Isso porque os integrantes do casal não são as únicas pessoas relevantes para o relacionamento. Um dos pontos centrais trata sobre como a ideia de democracia racial e o ideal de branqueamento se desdobra em pressões para que as pessoas busquem parceiros/as “brancos/as, ou ao menos mais claros do que eles/as” (PEREIRA, 2020, p. 144). Tal pressão emana das representações, valores e ideias de supremacia branca, sendo também internalizados e compartilhados em diferentes graus por pessoas racializadas. Para além de um projeto político de elites nacionais brancas, o ideal de embranquecimento é apontado por Pereira (2020, p. 168) como uma dinâmica social, nesse sentido observada na prática da mobilização de projetos familiares e individuais, ao englobar dimensões subjetivas das pessoas racializadas.
Por fim, o quinto e último capítulo do livro se volta para o estudo da subjetividade das mulheres negras, explorando sua relação com o próprio corpo, com sua sexualidade, e o modo como elaboram suas preferências pessoais, destacando-se que “um ato de racionalidade nem sempre é suficiente para controlar processos emocionais interpessoais complexos” (PEREIRA, 2020, p. 180). Aqui se traça uma reflexão acerca das marcas que subordinações de gênero e raça deixam sobre mulheres negras, marcando suas vivências, sendo em diversos momentos retratadas como restrições de possibilidades de ação, limitações de interações sociais e o confinamento a um corpo desvalorizado esteticamente que determina seus envolvimentos e espaços de circulação.
A gordofobia, enquanto ditadura da magreza, é um ponto importante da reflexão ao caracterizar corpos femininos negros, marcados por “bundas enormes” e “pernas grossas”, corpos que contam uma história visível de resistência frente padrões estéticos de beleza feminina que negam esses traços. Outro ponto sensível abordado no capítulo é a invisibilidade teórica de relações que fujam à regra heterossexual. O que se observou nas entrevistas foi uma idealização de relações entre mulheres negras, vistas como uma utopia de realização plena, pela simetria de gênero e raça, e possibilidade de maior capacidade de comunicação e compreensão entre o casal, mesmo que tais relações não se manifestem no plano real, tendo se apresentado mais como um sonho. Tal pontuação é interessante, pois demarca a assimetria de gênero e raça percebida por mulheres negras em relações com homens e mulheres brancas, bem como com homens negros. Por fim, Pereira (2020, p. 188) ressalta o espaço de escolha, desejo e sonhos que também compõem o espaço de formulação e criação imaginativa dos projetos pessoais, personalidades e subjetividades que marcam os diferentes modos de vida das mulheres negras na contemporaneidade, sem deixar de pontuar as influências dos valores simbólicos, midiáticos, familiares e que afetam as trajetórias singulares.
Portanto o livro de Bruna Pereira logra, para além de fornecer contribuições originais para o estudo das relações e intersecções entre raça e gênero no Brasil, a complementação de uma lacuna dos estudos empíricos recentes sobre o tema, e isso de modo cativante e desafiador. Em sua narrativa é possível perceber uma história da constituição generificada e racializada que marca corpos de mulheres negras, definindo e assinalando a elas um lugar de desigualdade na socialização.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referência bibliográfica
PEREIRA, Bruna Cristina Jaquetto. Dengos e zangas das mulheres-moringa: Vivências afetivo-sexuais de mulheres negras. Pittsburgh: Latin America Research Commons, 2020. DOI: https://doi.org/10.25154/book6. Acesso em 29 de agosto de 2023
Fonte Imagética: Fonte: Capa da obra Resenhada. Imagem de Linoca Souza. Disponível em: <https://doi.org/10.25154/book6>. Acesso em: 2 set. 2023.