Hugo Borsani[1]
Soraia Marcelino Vieira[2]
Mariele Troiano[3]
17 de março de 2025
Nos últimos anos, a democracia na América Latina vem passando por diferentes processos. Desde a terceira onda de democratizações descrita por Huntington (1994), da qual vários países latino-americanos fizeram parte, a região vivenciou momentos de aberturas e inflexões. O contexto econômico, a ascensão de governos populistas de diferentes ideologias, a alternância das agendas progressistas e conservadoras e a sombra da autocracia têm sido algumas das características observadas nos últimos 50 anos.
A proposta do artigo Resiliência Democrática na América Latina: analisando crises e superações, publicado na Revista Lua Nova (edição 123), é interpretar uma série de desafios que aumentam os riscos de retrocesso democrático nos países da região, considerando as possibilidades de processos de resiliência e respostas que visam à retomada da integridade e do funcionamento das instituições democráticas. Por meio da análise comparada, os países foram organizados em três grupos: (1) países que enfrentaram algum tipo de risco democrático, seja ele iminente ou potencial, e conseguiram até o momento resolvê-lo; (2) países que apresentam riscos, efetivos ou potenciais, mas que ainda convivem com esses riscos; e (3) países que sucumbiram a um regime autocrático.
Um dos resultados obtidos foi uma lista de variáveis que tensionam a democracia, em grande medida atribuídas ao seu funcionamento. O artigo lista como riscos comuns às democracias latino-americanas: a frequente substituição de presidentes (como aconteceu no Equador e no Peru); a cooptação, ou tentativa de cooptação, por parte dos governos, das instituições de controle ou dos outros poderes do Estado (situações vivenciadas na Bolívia, em El Salvador, na Nicarágua e na Venezuela); revoltas populares de grande magnitude (exemplos de casos no Chile, no Equador e na Bolívia); e a retórica antidemocrática e polarizante de alguns presidentes (como Bolsonaro no Brasil, López Obrador no México e Milei na Argentina). Outra conclusão da pesquisa está nas respostas institucionais que cada país elaborou para seus riscos. Estas foram resumidas nos seguintes pontos: uso dos instrumentos institucionais disponíveis; independência do Judiciário e da imprensa; e negociação política entre os governos e movimentos contestatários. A superação das crises políticas e institucionais geradas pelo próprio sistema foi considerada um processo de resiliência.
A resiliência democrática emergiu como um tema central nos debates acadêmicos contemporâneos, impulsionada, particularmente, pela obra How Democracies Die, de Levitsky e Ziblatt (2018), que apresenta um diagnóstico preocupante sobre a fragilidade das democracias liberais. Os autores se distanciam da explicação predominante de que as democracias morrem por meio de rupturas institucionais abruptas, como golpes militares e conflitos. Em vez disso, argumentam que o declínio democrático ocorre de forma mais gradual e muitas vezes endógena ao sistema, por meio de uma deriva autoritária, em grande medida ferindo a legitimidade representativa e estabelecendo mecanismos de controle do poder.
Em contraste com o pessimismo apresentado pelo livro mencionado, o banco de dados do Latinobarómetro oferece uma perspectiva otimista em seu relatório mais recente. Para os responsáveis pela pesquisa de opinião pública aplicada em 18 países latino-americanos, o ano de 2024 pode ser caracterizado como um período de superação das crises democráticas nos países da região (Latinobarómetro Report, 2024).
De acordo com a nossa análise, as democracias de Brasil, Chile, Equador, Peru e Guatemala podem ser consideradas resilientes uma vez que foram capazes de superar diferentes riscos: tentativas de desrespeito às regras e aos resultados eleitorais, contestação infundada destes resultados, revoltas populares de grande dimensão, violação das liberdades civis e do direito de manifestação, fortes críticas à imprensa, tentativa de interferência ou cooptação das instituições de controle e retórica antidemocrática por parte de presidentes eleitos.
As respostas a esses riscos e, portanto, a resiliência da democracia, manifestaram-se, fundamentalmente, no uso dos instrumentos institucionais disponíveis nesses países, como a moção de vacância no Peru, o chamamento de novas eleições justas e transparentes na Bolívia (em 2020) e o mecanismo de “morte cruzada” de dissolução da Câmara e convocação para eleições gerais no Equador. A negociação política dos governos com os movimentos contestatários também foi importante para a saída da crise política vivida no Chile (entre 2019 e 2020), que resultou na instalação de uma Assembleia Constituinte, e da crise derivada do levante indígena no governo de Moreno, no Equador (2019). Por último, a independência do Judiciário e da imprensa teve um papel preponderante na resiliência da democracia brasileira durante o governo de Bolsonaro, assim como a força do sistema de partidos, que obrigou o presidente a ceder à política convencional de negociação com outros partidos políticos, ante a tentativa de impor suas propostas sem discussão.
A participação da população por meio de manifestações, além da presença nas eleições, referendos e consultas públicas, tem sido outro fator importante na resiliência da democracia na região. As ruas têm se mostrado importantes palcos de reivindicações de direitos, exigências de mudanças políticas e confrontos com líderes políticos.
Embora tenha sido observado a resiliência em alguns países da região, como mencionado, há ainda países que apresentam características que podem comprometer a qualidade e a própria existência da democracia. Nesse caso devemos atentar para: El Salvador, México, Argentina e alguns acontecimentos na Bolívia. O risco identificado em El Salvador advém do controle que o presidente tem sobre o Legislativo e a cooptação do Judiciário, o que sinaliza a ausência de independência dos três poderes. No México, o risco seria menor em comparação com El Salvador. No entanto, o posicionamento do presidente López Obrador (2018-2024) configurou ameaças às instituições democráticas, ao protagonizar diversos enfrentamentos com o poder judiciário, desqualificar os meios de comunicação e apresentar propostas de reformas que visavam diminuir a autonomia de organismos de controle. Entre essas propostas estão a redução do orçamento e de algumas funções do Instituto Nacional Eleitoral (Reforma Eleitoral, 2023) e a eleição por voto popular dos membros da Suprema Corte (Raziel; Guillén, 2024).
A preocupação com a democracia na Argentina se sustenta, principalmente, devido à retórica pouco democrática do presidente Javier Milei (2023-2027), com constantes críticas ao Congresso, ao Judiciário e outras instituições de controle. Vale ressaltar ainda os poderes extraordinários do Executivo aprovados pelo Congresso, que permitem a implementação de medidas econômicas, tais como cortes de subsídios, privatizações e outras reformas, com forte potencial de gerar instabilidades políticas e sociais (Smink, 2024).
Um caso peculiar é identificado na Bolívia, que, em 2020, superou um forte impasse político derivado da revolta popular seguida de uma questionável terceira reeleição do presidente Evo Morales e da controversa legitimidade da presidência de Jeanine Añez, o que permitiu classificar a democracia boliviana como resiliente. Porém, a tentativa de golpe de Estado em 2024, por parte de um ex-comandante do Exército, e o forte enfrentamento entre o atual presidente Luis Arce e seu predecessor e padrinho político, Evo Morales, são processos que colocam o país entre aqueles que apresentam riscos à democracia.
Por fim, atualmente, há dois países que podem ser considerados autocracias: Nicarágua e Venezuela. Ambos apresentam uma visível deterioração democrática, caracterizada por crescente instabilidade política, subversão das eleições, restrição à liberdade de expressão e interferência nas instituições de controle. Colômbia, Costa Rica, Panamá, República Dominicana e Uruguai são países que não têm sofrido, nas últimas décadas, crises políticas com riscos às suas democracias. Esses países mantiveram a liberdade política garantida por meio de eleições confiáveis e alternância de poder. A Colômbia, por exemplo, apesar dos desafios com o narcotráfico e a violência contra ativistas, deu um passo importante rumo à estabilidade política com o acordo de paz realizado entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Esse processo ganhou ainda mais relevância com a eleição de Gustavo Petro, em 2022, primeiro presidente de esquerda do país, demonstrando a possibilidade de alternância de poder.
Embora o artigo reconheça que as instituições nem sempre funcionam perfeitamente, é possível destacar que, em cinco dos casos analisados, elas foram essenciais para preservar a ordem democrática e conter impulsos contrários estimulados por seus líderes eleitos. A realização de diagnósticos permanentes tende a ser insuficiente quando se trata da análise sobre a saúde das democracias. Contudo, elucidar os desafios e as potencialidades do processo democrático parece ser urgente, sobretudo, quando observadas as possibilidades de regeneração do tecido institucional.
Referências
HUNTINGTON, Samuel. 1994. A terceira onda: a democratização no final do século XX. São Paulo: Ática.
LATINOBARÓMETRO 2024 REPORT: Resilient Democracy. Disponível em: https://www.latinobarometro.org/lat.jsp?Idioma=0
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. 2018. How democracies die . New York: Broadway Books.
RAZIEL, Zedryk.; GUILLÉN, Beatriz. 2024. “Los ministros de la Suprema Corte acudirán al primer foro sobre sobre la reforma judicial.” El País, Ciudad de México. Disponível em: https://elpais.com/mexico/2024-06-25/los-ministros-de-la-suprema- corte-acudiran-al-primer-foro-sobre-la-reforma-judicial.html. Acesso em: 1 jul 2024.
REFORMA ELECTORAL. 2023. Redação BBC News Mundo. Disponível em: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-64784628. Acesso em: 6 fev 2025.
SMINK, Veronica. (2024). “Milei ganha ‘poderes extraordinários’: o que muda com a lei alvo de protestos violentos.” BBC News Brasil, São Paulo. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx88r709v5ro.amp. Acesso em: 16 jun. 2024
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
[1] Professor de Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e no Programa de Pós-graduação em Sociologia Política dessa instituição. Doutor e Mestre em Ciência Política pelo IUPERJ (atual IESP / UERJ). Licenciado em Sociologia pela Universidad de la República (Uruguai). Realizou um pós-doutorado no Instituto de Iberoamerica da Universidad de Salamanca (España).
[2] Doutora em Ciência Política pelo IESP/UERJ, mestre em Ciência Política pela UFF. Professora no Departamento de Geografia e Políticas Públicas e no Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UFF. Diretora de Publicações da ABCP (2022-2024). Jovem Cientista do Nosso Estado FAPERJ 2024-2027.
[3] Doutora e Mestra em Ciência Política pela UFSCar com estágio na University of Hull (Inglaterra). Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF Campos) e líder do Grupo de Pesquisa do CNPq Observatório de Instituições Políticas e Democracia.
* Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referência imagética: Presidente da República do Chile, Gabriel Boric, e o Presidente Lula durante chegada dos Presidentes do países da América do Sul ao Palácio Itamaraty. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=presidentes+da+am%C3%A9rica+do+sul&title=Special:MediaSearch&type=image. Acesso em: 17 de março de 2025.