Marina Costin Fuser[1]
Leia a primeira e a segunda parte do texto.
‘Black Earth Rising’ é uma série que conta a história de uma mulher, que, quando menina, sobrevive a um genocídio em Ruanda. Na parte I tratamos dos assassinatos e fantasmas do passado que voltam da tumba quando vem à tona o julgamento do general Simon Niamoya da RPF, tido como herói da pátria em Ruanda, após contribuir para acabar com o genocídio dos tutsis. A história de Kate se mistura com a história do genocídio em Ruanda, e é contada através de três arcos dramáticos: (1) A complicada relação entre mãe e filha quando Eve é chamada para a promotoria no julgamento de Niamoya, réu no Tribunal de Haia por crimes de guerra; (2) A busca pela verdade de Kate e o julgamento de Alice Munazero, ré por supostamente assassinar o Padre Patenaude; e (3) o julgamento do genocida Patrice Ganimana, que coloca a desnudo a história de Kate e de seu país.
Após ter descortinado as sombras que pairavam por trás das fotografias da mansão do Sr. Barré (na parte II deste texto), com a revelação do Padre Patenaude vivo no julgamento de sua própria morte, a série apresenta um terceiro eixo, o principal, que trata do trauma da protagonista. Esta terceira parte devolve à Kate e à Ruanda sua história, que convenientemente preferiram esquecer.
Parte III: O Testemunho – Ruanda / Zaire (depois República Democrática do Congo)
O arco deste grand finale tem uma dimensão paralela, entre os preparativos do julgamento do genocida Patrice Ganimana e a própria história de Kate Ashby. Neste primeiro encadeamento, passamos da primazia das imagens para a força do testemunho, que será precisamente o momento de revelação para Kate. O testemunho de Eunice para ao Tribunal Penal Internacional sobre os atos genocidas de Patrice Ganimana é justaposto à cena que sinaliza, visualmente, com a voz extra-diegética de Eunice, o momento em que Mike revela à Kate sua história. Com efeito, é a mesma história, que ouvimos de Eunice e que Mike conta para Kate simultaneamente, posto que sua história se confunde com a história do genocídio, ainda que não aquele que a personagem pensava ter vivido.
O testemunho coloca a desnudo a verdade inconveniente que Ruanda relutava em aceitar, em reconhecer, da qual Kate fora vítima, e que produz em Kate um plot twist, uma virada de jogo: ao se apropriar de sua história, ela conclui sua passagem de paciente a protagonista. Não que ela não fosse protagonista já desde o primeiro arco; mas, desta vez, há um salto de qualidade, pois ela restitui ao passo que entra para a história.
Em ‘Entre Psicanálise e História: O Testemunho’, Caterina Koltai (2016) defende que o testemunho seja uma forma de representar aquilo que resiste à representação, uma postura ética de colocar em linguagem aquilo que palavras não dão conta de expressar. Embora Koltai e Didi-Huberman pareçam entrar em conflito, posto que o filósofo francês se oponha a termos como “indizível” e “inimaginável”, Koltai os usa no sentido de um esforço para colocar em palavras e em imagens enquanto uma ética do testemunho, na busca por descortinar a verdade. Aqui o “indizível” e “inimaginável” sinalizam um esgotamento, um limite, que Didi-Huberman reconhece quando pondera que as palavras e imagens de testemunho existem “apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN, 2020).
Inspirada em Agamben (1999), Koltai salienta que “a figura da testemunha sobrevivente (…) permite ao testemunho ultrapassar o stricto campo jurídico”, adquirindo uma dimensão histórica, daquele que viveu para contar, ou que conta para suportar o fardo de sobreviver a um evento traumático. Isso implica no reconhecimento de sua história no outro, em algo além de si mesmo; ou seja, um acontecimento atroz do passado vivenciado tanto pessoal como coletivamente:
O ato pessoal de um sujeito alterado pela alteridade do passado do qual testemunha, pela alteridade daqueles perante os quais testemunha e que toma por testemunha… O testemunho, enquanto relato assumido e endereçado cuja autenticidade é atestada pela presença do narrador no acontecimento relatado, assume a partir daí duas funções distintas: a atestação dos fatos e a revelação de uma verdade, sendo que é no trajeto do real à verdade que intervém a forma literária que postula o valor de um sentido. (KOLTAI, 2016, p. 26)
A revelação de uma verdade, que se verbaliza no relato de Eunice, postula o valor de um sentido tanto para a justiça social e para a memória de Ruanda, como à história da protagonista, que anseia por uma identidade, por uma origem. Sua história é também a história de muitas pessoas fraturadas em Ruanda. Como uma refugiada no Reino Unido, ser uma pessoa cuja história lhe fora arrancada a torna diferente; mas, em Ruanda, essa é a condição de muitas pessoas, que como ela, foram atravessadas pelo genocídio e seus desdobramentos. O terceiro e último arco apresenta o testemunho como uma verdade que restitui a memória de todo um país e cuja prova mais cabal está na terra. O trabalho de arqueologia de Kate ganha uma pá, porém a força motriz que a leva a cavar está antes na palavra.
A revelação é antecipada em uma cena, aparentemente menos importante no penúltimo episódio, quando, pela primeira vez de volta a Ruanda, Kate pergunta a Florence Karamera sobre seu passado. O rapaz conta uma história que a implica bem mais do que ela imagina: tudo o que ele sabe sobre seu pai é que ele era um homem ruim. Em 1994, na medida que a RPF avança, ele vai para o Zaire. Após três anos, seus pais morrem de cólera nos campos de refugiados hutus. Ainda muito novo, ele é aliciado por uma milícia para combater na primeira Guerra Congolesa. Ele é preso, posto em um programa educacional financiado pelos Estados Unidos, onde faz faculdade sustentado por Eunice. Kate conclui: “Mesma história, outro lado”. Florence a corrige: “O lado errado”.
No fim descobrimos que não é bem assim. Tudo nos leva a desconfiar de Florence, mas aqui é a história de Kate que não bate. Ambos vêm de um mesmo lado. Por conta de sua luta contra o câncer, Eunice grava seu depoimento antes do julgamento de Patrice Ganimana. Se sua vida corre algum risco, o testemunho é seu pronunciamento para Ruanda e para o mundo, é seu último desejo. Eunice explica como se dá o processo de desumanização dos tutsis pelos hutus, convertidos em insetos. Ela conta a história dos campos de refugiados hutus no Zaire. Os hutus fogem para o Zaire com medo de retaliação, ainda que a FPR tente garantir-lhes que eles estão seguros em Ruanda. Com eles, fogem também os genocidas.
Eu sei disso porque foi onde eu vi Patrice Ganimana pela segunda vez, no começo de 1997, num campo de refugiados no Zaire. Não mais um major, agora era o líder de seu grupo. Ainda espalhando o ódio, soprando as brasas, tentando acendê-la de novo. Procurando retornar a Ruanda para terminar o que começaram. Então chega um novo exército. Havia tensão étnica na região por anos. O governo do Zaire estava fazendo uma campanha contra os tutsis. A chegada dos refugiados hutus exacerbou a tensão. Até que em 1996, um exército tutsi foi formado. Em 1997, a RPF foi para os campos com a missão de ajudar a desmontá-los. E é verdade, nos campos que eu visitei, Ganimana e seu pessoal estavam lá. Mas afirmo que estavam usando os refugiados como escudos. Em 1997, havia cerca de 50 mil pessoas nos campos, 9 mil eram crianças, muitas outras eram mulheres, e quase todos estavam catastroficamente doentes. Não podiam fugir se quisessem. Até que um dia os trabalhadores humanitários foram expulsos. Fomos levados a uma área a uns dois quilômetros, fora da vista dos campos. Poucos trabalhadores, incluindo um colega meu, Edward Holt, ficaram até o último dia. Não posso dizer que vi algo. O que posso dizer é que quatro dias depois, quando finalmente fomos permitidos a voltar para o campo, ele estava completamente vazio. Repito, completamente. Nenhum vestígio que indicasse que, menos de uma semana antes, havia 50 mil pessoas vivendo ali. Mulheres, crianças, bebês. Muitos doentes demais para sair de lá. Era como se eles nunca tivessem existido. E eu nunca os vi de novo. Exceto uma pessoa. Alguém que meu colega Ed Holt levou com ele na sua última viagem. Uma garotinha. Uma criança hutu.
A revelação se dá com uma animação em preto-e-branco que apresenta a memória de uma menina miúda escondendo a face num manto preto e corta para um close up do rosto de Kate remando. Kate não é tutsi como a haviam contado, mas hutu. Tudo o que ela sabe até aquele momento é uma mentira. Michael a espera na margem, ainda podemos ouvir a voz de Eunice, com um plano amplo dos dois conversando na beira do rio. Ouvimos a voz de Michael continuando a história de Eunice, mas no contraplano está Kate, dando corpo à narrativa. Ele diz que Ed a levara nos braços para Kigali, deixando-a aos cuidados de Eve. Ela teria morrido se não fosse pelos cuidados de Eve. Para protegê-la, precisavam contar uma história que inspirasse empatia. Assim, o caminho se abrira para Kate.
A revelação apresenta para Kate, e para Ruanda, um desafio: o que fazer com aquela informação? A primeira reação de Kate é o impulso: pular na água. Michael se assusta, e pula atrás dela. Não sem algum esforço, ambos conseguem sair da água, aparentemente ilesos. Mas na água vem uma memória que não é necessariamente de algo que Kate vivencia: uma animação em preto e branco de cadáveres flutuando no rio. Se há algum intuito suicida no impulso de pular no rio, é uma pulsação de vida decorrente desta imagem-pensamento que a faz emergir e buscar ar. Ambos, Mike e Kate, se deitam olhando para o céu, atônitos, paralisados.
A paralisia é um momento de literalmente tomar fôlego para uma guinada da personagem, que, mais viva do que nunca, cria coragem para restituir sua história, rumo à República Democrática do Congo. Enquanto dirige, Florence avista Kate pela estrada, engata uma marcha-ré e não esconde a perturbação de encontrá-la no país. Quando ela, aos prantos, tenta encontrar os restos mortais de algum corpo que vista o mesmo pano rasgado que Alice a teria dado, Florence entrega os pontos:
– Eu fui pago para te trazer até aqui, para cavar este buraco e te por dentro. Eu fui pago para fazer isso. Mas não com dinheiro. Com isso” – mostra o passaporte da República de Ruanda. – Um caminho para casa. Perdoado. Mas acontece que não só os negadores do genocídio estão cegos. É preciso achar meu próprio caminho para casa. – joga o passaporte na vala. – Meu nome é Florence Karamera. Qual é o seu?” – Ela fica desconcertada.
– Meu nome é Kate Ashby. – Responde, entre soluços. – Mas você vem de Sankele.
– Sim. – Pausa – Eles vieram para você.
Várias pessoas apareceram com pás para ajudá-la a desenterrar o passado, lideradas pela amiga que Kate fizera ao chegar no Congo. Mais e mais pessoas se aproximam com suas pás para cavar. Imagens de drone mostram a multidão se juntando e cavando, em uma cena de arrancar soluços. Não é a memória de Kate que elas estão a buscar. É uma memória coletiva.
“Mas acontece que não são só os negadores do genocídio que são cegos…” A repetição da frase de Florence, enquanto o comandante grita de dor com uma fenda no lugar dos olhos arrancados nos fornece pistas de quem fora o autor desta façanha. Ele percebe que ambos, os genocidas hutus e seus vingadores ruandeses, padecem da mesma cegueira. Ele desiste de sua missão para com o governo ruandês, mas lava a alma com a aparição das valas – afinal, ele também vivera nesses campos. Essa história também o pertence. Aquele trabalho sujo não é mais para ele. Florence caminha pelos trilhos numa semiótica que remete ao caminho à liberdade de definir seu próprio itinerário.
Os eventos que se desdobram após a cena da descoberta da vala passam uma mensagem de que a justiça não traz apenas a dor, mas a dignidade de todo um povo cuja história lhes fora arrancada, sem poder ao menos velar e enterrar seus mortos. A terra devolve a morte enquanto memória viva, enquanto possibilidade de lidar com os traumas do passado, curar a ferida e construir um futuro. Restituir uma memória coletiva é poder revisitar o horror sem necessariamente entrar nele. É preciso que o mundo escute e reconheça o que havia se passado lá. Como diz Koltai, “falar do irredutível de sua experiência, religar os fios de uma vida interrompida por uma catástrofe histórica (…) representa a possibilidade de uma reintegração na comunidade humana”. (KOLTAI, 2016, p. 29).
O final é previsível, com as irmãs Bibi Mundanzi e Alice Munazero finalmente fazendo as pazes e passando a trabalhar juntas pelo futuro de Ruanda, e a harmonia que se estabelece com o reconhecimento do genocídio nos campos de refugiados hutus no Congo. Os vilões são punidos: ao perceber que seria condenado, Patrice Ganimana se atira contra um caminhão e é atropelado; David Ruinihura leva o bote de uma cobra, da qual não se esquiva. Mas a grande sacada do fim é quando Michael Einnes, diz ao colega: “Você sabia que eu sou judeu?” Esta linha celebra uma ligação dos genocídios de Ruanda e do Zaire com a história do holocausto. A saber, ele mesmo também pode ser filho de sobreviventes de um genocídio.
Se excessos de imagens e relatos marcaram a memória, não só dos judeus e ciganos exterminados nos campos, mas de toda a humanidade, todavia há um manto de invisibilidade em torno dos genocídios na África. Mais do que atribuir este silêncio e descaso da comunidade internacional para com esses eventos por racismo (o que é demasiado nítido), eu atribuo isso ao que fez a empresa colonial, com a invasão, desumanização, escravização, estupros, torturas e sequestros dos povos africanos com os povos deste continente. O genocídio de africanos e povos originários no hemisfério Sul (e alhures) praticado pela empresa colonial europeia é algo que foi varrido para debaixo do tapete, relegado a um silêncio monumental. Há uma cena em que uma funcionária (não branca) da ONU pergunta, indignada para sua superior (branca) “por que não investigamos o genocídio no Congo”, e a resposta da moça sentada confortável em sua mesa de chefe é implacável: “Nós nos preocuparíamos se esse genocídio tivesse ocorrido, digamos, em Minnesota”. Aqui está nossa resposta.
A série passa uma mensagem que chama o mundo à empatia, à importância da memória da barbárie como mecanismo de construção de uma democracia, e a coragem de verdade daqueles que se empenham a descortinar os traumas do passado a fim de restituí-los. Esta coragem de verdade insiste em colocar em palavras aquilo que o mundo preferia convenientemente esquecer, e que nos fornece imagens que nos permitam imaginar aquilo que, sem elas, seria imaginável. Uma coragem de verdade que leva todo um povo a buscar na terra os vestígios de sua história.
Nessa chave, concluo a minha análise com as palavras de uma refugiada ruandesa, Scholastique Mukasonga (2018), que conseguiu viver para contar o que se passou com 37 membros de sua família, inclusive seus pais e irmãos, cujos corpos jamais foram recuperados. Viver apesar de tudo. Sobreviver Ruanda, apesar de tudo.
Eu não estava entre os meus quando foram cortados a facão. Como é que pude continuar vivendo nos dias da morte deles? Sobreviver! Na verdade, essa era a missão que nossos pais tinham confiado a mim e a André. Deveríamos sobreviver, e no momento eu sabia o que significava essa dor. Era um peso enorme que recaía sobre meus ombros, um peso muito real, que me impedia de subir à escadinha que levava à sala de aula, me fazia parar em frente à porta do meu apartamento, incapaz de abri-la e entrar. Tinha a meu cargo a memória de todos esses mortos (MUKASONGA, 2018, p.20.
Na história
Houve, de fato, um genocídio nos campos de refugiados no Zaire. De acordo com Howard Adelman (2001) em ‘The Use and Abuse of Refugees in Zaire April 1996 to March 1997’, após o genocídio, cerca de 1.100.000 refugiados de Ruanda se dirigiram ao então Zaire, com medo de retaliação do governo tutsi. No mesmo relatório consta que, entre os refugiados, havia cerca de 40 mil membros das extintas Forças Armadas Ruandesas, ligadas ao regime hutu, e dezenas de milhares milicianos ligados aos interahamwe, grupo extremista ao qual é atribuído o genocídio de cerca de 800 mil tutsis e hutus moderados em Ruanda há apenas 10 semanas atrás.
De acordo com a BBC (10/09/2018), os desdobramentos do genocídio de Ruanda repercutiram no que hoje é a República Democrática do Congo, causando instabilidade e guerra por cerca de 20 anos, levado à morte de algo em torno de 5 milhões de pessoas. A BBC acusa duas invasões da RPF (no governo em Ruanda) ao território do Zaire, sob alegações que o governo seria conivente com a atuação de grupos extremistas hutus em seu país. Forças cruzadas entre milícias tutsis e hutus eram atuantes neste território. Tampouco demorou muito até que os genocidas hutus e seus aliados ligados ao governo passassem a controlar os campos de refugiados, aliciando assim crianças e jovens no intuito de retomar o controle de Ruanda e dar continuidade ao genocídio tutsi. No Zaire, eles continuaram a matar refugiados tutsis, formando alianças com grupos rebeldes de Uganda.
O então oficial da ONU no Congo, Roberto Garreton[2], forneceu um relato detalhado dos massacres de hutus nos campos ainda em 1994. Supostamente, a ONU teria suprimido o relatório por desencargo de consciência, posto que a instituição nada fez para frear o genocídio. De acordo com a The Associated Press (10/10/2010), a ONU primeiro nega este relatório, mas depois ele vem à tona. De todo modo, ele acusa os soldados tutsis, a mando do vice-presidente Paul Kagame, de ter retaliado o genocídio, caçando os hutus no Zaire (inclusive os civis). A ambiguidade que se destaca é exatamente a da série: afinal foram as tropas de FPR, sob o seu comando, que puseram um fim no genocídio de Ruanda; a invasão de 1996 pelas tropas ruandesas é atribuída à derrubada do ditador do Congo, Mobutu Sese Seko, o que Kagame primeiro nega, mas depois reconhece em 1997.
Relatórios da ONU de 1997 e 1998[3] acusam Kagame do que se pode entender como genocídio, algo que Kagame depois reconhece. Os polêmicos relatórios da ONU ocorrem após a descoberta de valas massivas entre as plantações de bananas nas regiões montanhosas do Congo, quando acusam as tropas ruandesas de assassinar dezenas de milhares de hutus entre os anos de 1996 e 1997. Foram encontradas cerca de trinta valas no distrito de Rutshuru. Em 2005, agentes da ONU encontraram valas no Leste do Congo com centenas de pessoas que se acredita terem sido assassinadas pela FPR.
Desde então passaram a se referir a esses episódios como genocídio, palavra que foram, em princípio, relutantes a usar, dada sua gravidade. Apesar de admitir a responsabilidade pela invasão e pelos massacres, Kagame justifica que a invasão tinha o propósito de desmantelar os campos de refugiados que abrigavam refugiados hutus e genocidas – era um fato bastante conhecido que os genocidas comandavam os campos. Mas para Kagame, suas tropas se limitaram a matar genocidas, o que não é verdade. A ONU relata múltiplas ocorrências de estupro, tortura e de assassinato com requintes de crueldade de mulheres e crianças, inclusive queimadas vivas[4].
A coragem de verdade que fornece materialidade e história a todos aqueles que foram furtados de sua história, de seu nome, e de sua ancestralidade é o que faz com que a história dos sobreviventes, como Kate, e a história de Ruanda constituam uma única história. Kate é Runda e Runda é Kate, sendo Kate a expressão arquetípica de todos os sobreviventes marcados pelo mesmo fardo do esquecimento forçado. É preferível esquecer as chagas da barbárie, varrer os vestígios de crimes perpetrados pelo Estado para debaixo do tapete, queimar os arquivos, fazer de conta que nada aconteceu. Os julgamentos desta série trazem de volta esses fantasmas, contando histórias, que apesar do enredo ficcional, tratam de histórias vivas, bastante fidedignas e verificáveis, vividas por personagens parecidas com Kate. Kate é Scholastique e André Mukasonga, que perderam quase toda a família no genocídio de Ruanda, que viveram para contar essa história, que carregam consigo a memória de todos os mortos em Ruanda. Hutu ou Tutsi, Kate é também a afirmação da vida, uma esperança de que a memória se restaure para que essa história nunca mais se repita.
Referências Bibliográficas
ADELMAN, H. (2001) em ‘The Use and Abuse of Refugees in Zaire April 1996 to March 1997’, disponível pelo link:
https://web.stanford.edu/~sstedman/2001.readings/Zaire.ht
AGAMBEN, G. (1999). Ce qui reste d´Auschwitz. Paris: Payot.
DIDI-HUMBERMAN, G. (2020) ‘Imagens Apesar de Tudo’Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo, São Paulo, Editora 34
GARRETON, R. (1997). Report on the Situation of Human Rights in Zaïre, prepared by the Special Rapporteur in accordance with Commission resolution 1996/77 (Report). United Nations, Economic and Social Council (UNESC).
KOLTAI, C. (2016) ‘Entre Psicanálise e História: O Testemunho’. In: Psicologia, Vol.27 N. 1 pp. 24-30. Disponível pelo link: https://www.revistas.usp.br/psicousp/article/view/114749
MUKASONGA, S. (2018) ‘Baratas’ São Paulo: Editora Nós.
Notícias
BBC, ‘Black Earth Rising: The Rwandan Genocide and its Aftermath’, 10 de setembro de 2018.
Disponível pelo Link: https://www.bbc.com/news/world-africa-45447840
BBC ‘Congo Killings May Be Genocide – UN Draft Report’ 27 de Agosto de 2010. Disponível pelo link: https://www.bbc.com/news/world-africa-11105289
Médicins Sans Frontières ‘Forced Flight: a Brutal Strategy of Elimination in Eastern Zaire’. Paris, 17 de Abril de 2008. Disponível pelo link: https://www.msf.fr/actualites/forced-flight-a-brutal-strategy-of-elimination-in-eastern-zaire
The Associated Press. ‘A Second Rwandan Genocide Is Revealed in Congo’, por Michelle Faul, 10 de Outubro de 2010.
Filmografia
‘Black Earth Rising’. 2018–2019. Dir. Hugo Blick, Drama Republic / BBC Studios / Eight Rooks Production.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
[1] Doutora em Cinema e Estudos de Gênero pela University of Sussex (orientação de Rosalind Galt e Lizzie Thynne), revalidado como Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Faz uma pesquisa pós-doutoral sobre gênero e inteligência artificial no programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital na PUC-SP (TIDD – PUC-SP).
[2] Garretón, Robert (1997). Report on the Situation of Human Rights in Zaïre, prepared by the Special Rapporteur in accordance with Commission resolution 1996/77 (Report). United Nations, Economic and Social Council (UNESC).
[3] DR Congo killings ‘may be genocide’ – UN draft report”. BBC. 27 August 2010. Retrieved 13 April 2019.
[4] Report of the Mapping Exercise Documenting the Most Serious Violations of Human Rights and International Humanitarian Law Committed Within the Territory of the Democratic Republic of the Congo Between March 1993 and June 2003, Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights 2010.
Fonte Imagética: Reprodução Netflix. ‘Black Earth Rising’: Bela e Relevante Minissérie Escondida na Netflix. Disponível em <https://www.cineset.com.br/black-earth-rising-bela-e-relevante-minisserie-escondida-na-netflix/. Acesso em 22 fev 2022.