19 de dezembro de 2018
Angelo Lira [1], Natália Mello [2] e Neusa Maria Pereira Bojikian [3]
BLN: Professor, o senhor foi presidente do CEDEC entre 2009 e 2012, correto? Gostaríamos de começar perguntando um pouco sobre o preâmbulo dessa história. Como foram as primeiras aproximações, o primeiro contato com o CEDEC, o primeiro projeto, em suma, o que aconteceu antes do senhor assumir a presidência?
SVC: Bom, então vou dar um pouquinho de tempero à conversa e falar da minha pré-história com o CEDEC. Eu não sou de São Paulo, nasci em Niterói, estudei e trabalhei no Rio de Janeiro e foi de lá que tomei conhecimento da criação do CEDEC, em 1976. Nessa época, fazia parte de um grupo que criou um Centro de Estudos em Niterói, em 1974. Essa foi uma iniciativa de ambições modestas porque, na realidade, eu já fazia a pós-graduação e a ideia partiu de amigos que estavam ainda na faculdade, durante o período do Médici, um momento muito duro da ditadura. Formamos, então, o Centro de Estudos Noel Nutels; o CEDEC surgiu posteriormente. Já havia antes o CEBRAP, que era um exemplo. Naquela época, quando o CEDEC surgiu, nós acompanhamos com muito interesse, tomamos o centro também como um exemplo a seguir e estabelecemos relações. Havia uma revista do centro que chegou a publicar um artigo do [Francisco] Weffort. Em 1977, comecei a ter um contato maior com São Paulo e com o meio acadêmico daqui. Lembro que nessa época participei de um seminário organizado pelo José Álvaro Moisés, iniciativa do CEDEC, em 1977-1978, aqui em São Paulo.
Houve um fato, nesse período, que marcou muito a história política brasileira: a proibição pelo regime da realização da Reunião Anual da SBPC em 1977, no Ceará. Então, o encontro foi feito aqui em São Paulo com um movimento muito grande de todas as partes do Brasil para que ocorresse. Foi uma afirmação da comunidade científica contra a censura do regime e, ao mesmo tempo, um ato de resistência ao golpe, ao que parecia ser um golpe dentro do golpe, o chamado Pacote de Abril [conjunto de leis outorgadas em 13 de abril de 1977]. Embaraçado pela incapacidade de ter maioria no Congresso para uma reforma do Judiciário, o Presidente Geisel suspendeu durante um ou dois meses seu funcionamento. Foi nessa época que a resistência democrática no Brasil ganhou impulso. Houve um episódio importante na história política e intelectual do Brasil, especialmente São Paulo, que foi a Carta dos Brasileiros – uma manifestação dos juristas no Largo São Francisco. A SBPC ocorreu nesse contexto e os intelectuais que criaram o CEDEC ocuparam posições de muito relevo nessa aliança intelectual e política de resistência à ditadura e no movimento pela democracia no Brasil. Por isso, o CEDEC sempre foi uma referência para mim desde o momento em que se criou.
Mas como disse, não era de São Paulo, então não tinha relação regular com o CEDEC. Eu só cheguei em São Paulo em 1986 e me recordo que o Weffort tinha sido membro da minha banca, ou seja, eu tinha relações e contatos, mas não havia desenvolvido nenhuma atividade com o grupo de pesquisa do CEDEC nos primeiros 10 anos da minha estada em São Paulo. Fui para Unicamp, e durante um certo tempo fiz pesquisa no CEBRAP. Depois, fiquei um ano e meio nos Estados Unidos. Quando retornei, estabeleci meus primeiros laços com o CEDEC, que a partir daí foram crescendo e ganhando densidade cada vez maior.
Basicamente, o que aconteceu foi uma mudança no meu programa de trabalho, com a incorporação da dimensão internacional não como assunto de interesse, mas como assunto nuclear em minhas pesquisas. Assim que cheguei dos Estados Unidos, no final de 1997, entrei em contato com o Tullo [Vigevani] para conversar sobre Relações Internacionais e o que existia nesse campo em São Paulo. O resultado dessa conversa foi a criação de um grupo de estudos de teoria em Relações Internacionais, que foi extremamente frutífero. Se do ponto de vista evolucionário as coisas são medidas em sua importância pela fertilidade, esse foi um dos grupos mais importantes de que participei, porque esteve na origem de pesquisas e projetos coletivos como o San Tiago Dantas. E, por conseguinte, de todos os outros que estiveram relacionados com esse projeto institucional.
Em 2001, por conta desse precedente, nós já estávamos elaborando o projeto do San Tiago Dantas e eu coordenava um projeto temático chamado “Reestruturação Econômica Mundial e Reformas Neoliberais nos Países em Desenvolvimento”, que envolvia o Tullo [Vigevani], o Reginaldo Moraes, além do Filipe [Mendonça], e do Thiago [Lima], que estavam começando. Desde o início, escolhi o CEDEC como local de realização deste projeto. Então, data daí, de 2001, a minha inserção mais permanente, mais forte no CEDEC como pesquisador e agora coordenador desse projeto. Fui integrado no comitê editorial da Revista Lua Nova, depois passei a participar do conselho do CEDEC, depois da diretoria.
BLN: E foi a partir deste processo que surgiu o INCT-INEU também?
SVC: Já nesta época, 2008, nós tínhamos esse grupo e já tínhamos emplacado um outro projeto muito importante, que é o antecedente imediato do INCT-INEU. Foi um projeto patrocinado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, mas também pelo Itamaraty, o Projeto Renato Archer para o estudo de temas importantes da política exterior do Brasil, não temas de política externa de governo, mas de políticas de Estado. Conversamos no San Tiago Dantas e concluímos que o tema mais abrangente, com a maior capacidade de incorporar professores interessados em participar da proposta conjunta, eram os Estados Unidos. Não exatamente Estados Unidos, um objeto empírico, mas o impacto das políticas desse país no sistema internacional. Em 2005-2006 esse projeto começa e, em 2008, nós fazemos muito rapidamente um projeto para outro edital que era do INCT-INEU.
Nesse período, eu estava na vice-presidência do CEDEC e o Brasílio Sallum era o presidente. O Centro estava vivendo um período difícil, de transição – isso é importante, falando agora mais diretamente da história do CEDEC. Como outros institutos e centros criados nos anos 1970, o CEDEC recebeu muito apoio externo de Fundações europeias, americanas também. Enfim, eu não vivi esse momento, certamente o Tullo [Vigevani] deve ter falado disso com detalhes que eu seria incapaz de fazer. Agora no final dos anos 1990, já avançando nos anos 2000, essas fontes de recursos tinham minguado ou simplesmente desaparecido, por um lado, e, por outro, a universidade havia reorganizado o modo de fazer pesquisa, com núcleos de pesquisa criados na USP, na Unicamp. Por isso, o lugar de uma instituição como o CEDEC estava entre parênteses. Era algo a ser repensado, pois a continuação nos padrões anteriores não era uma coisa realista. Nos anos áureos, esses centros profissionalizavam os pesquisadores e isso já não acontecia, ou acontecia muito marginalmente nesse período.
Havia também um problema geracional: a questão de renovação e passagem das posições e funções de planejamento, de condução desse centro para pesquisadores e profissionais mais jovens. Em 2009, estávamos diante da questão sobre quem iria substituir o Brasílio [Sallum Junior], porque por razões pessoais ele não teve condições de permanecer na presidência. Havia a expectativa de que ele cumprisse mais um mandato, de dois anos, mas isso não aconteceu. Então o conselho ampliado se viu diante do problema de encontrar um substituto.
Eu não tinha grande história dentro do CEDEC até então, mas tinha uma grande relação afetiva com o Centro, pois achava um espaço extremamente interessante, simpático e acolhedor, além de ter muito clara a importância do CEDEC para os projetos que nós desenvolvíamos, especialmente o INCT-INEU, que estava começando. Assim, eu me dispus a assumir a presidência do CEDEC, o que ocorreu no segundo semestre de 2009.
A ideia principal da minha gestão era tentar criar uma dinâmica entre os associados do CEDEC que assegurasse as condições de renovação do seu quadro e a redefinição de seu papel.
BLN: O senhor falou que a proposta da sua presidência era criar essa dinâmica para a renovação de quadros, então se pudesse contar um pouco das ideias que surgiram, as estratégias…
Então, basicamente, o que aconteceu na minha gestão – e aí eu queria falar de, enfim, das pessoas envolvidas, não é? A Amélia [Cohn], que foi durante muitos anos presidente do CEDEC, foi sucedida pelo Paulo e depois pelo Brasílio [Sallum Junior] e eu [como vice]. Assumi a presidência com o Gildo Marçal Brandão (1949-2010), que fazia comigo uma parceria muito boa, uma figura notável. Foi um golpe muito grande, para todo mundo, o falecimento do Gildo. Nós começamos com essa ideia de atuar na dinâmica do CEDEC, o que procurei fazer criando uma instância, que não existia, uma espécie de Conselho que se reunia para tratar de assuntos acadêmicos e dos rumos do CEDEC – a diretoria se ocupava dos assuntos administrativos. Nós reuníamos esse Conselho com regularidade, não me lembro se era uma vez por mês ou de dois em dois meses. Ele era composto pelo conjunto dos pesquisadores, digamos assim, mais graduados, não os auxiliares de pesquisa, mas aqueles pesquisadores que tinham autonomia e independência, e então conversávamos sobre o que fazer. O tema naquela época, que se impunha a todos, era o problema do financiamento.
O CEDEC, quando eu assumi, tinha um problema estrutural de financiamento que ficava um pouco camuflado pela contribuição que nós podíamos dar pelo INCT-INEU. Como presidente do CEDEC, eu tinha clareza que o CEDEC não podia ficar na dependência de uma única fonte, de um projeto muito maior do que os projetos corriqueiros. Esse foi um tema de discussão durante praticamente todo o período.
Nós tivemos outro tema que nos ocupou bastante e me divertiu, que era o projeto de ampliar o CEDEC. Eu tinha uma fantasia, e gostava de conversar com o Gildo sobre isso, de transformar o CEDEC numa espécie de um clube onde a gente pudesse chegar, ter poltronas, revistas, e conversar bebericando alguma coisa – um uísque, um vinho. Isso não aconteceu. Nós chegamos a fazer um projeto com arquiteta e tudo mais, mas aqui na prefeitura esbarramos com uma resistência tenaz, que invocava o Plano Diretor para dizer que a obra era impossível. Eu estudei o Plano Diretor e percebi que a impossibilidade não era essa, mas sim um funcionário que criava dificuldades para vender facilidades em seguida. Então, abandonamos a ideia de ampliar o espaço físico do CEDEC, o que foi muito bom porque logo depois se revelou, digamos assim, o irrealismo de tal proposta. Ou seu “realismo fantástico”, porque nós não conseguimos ampliar a equipe, ou obter financiamentos novos em proporção que justificasse a ampliação do espaço que nós tínhamos imaginado. E, no final da minha gestão, o problema das dificuldades financeiras, que explodiu na gestão seguinte, já estava claramente desenhado.
Eu estou falando disso por uma coisa que mencionei lá na sexta-feira [14 de dezembro de 2018], quando disse da minha satisfação, da minha alegria, ao ver numa assembleia de fim de ano do CEDEC um grupo tão jovem em um outro lugar que não era aquela casa tão interessante, tão bonita e charmosa que nós tínhamos [antiga sede na Rua Airosa], mas é um lugar mais funcional, em muitos sentidos, do que o anterior. É um CEDEC que está se reinventando, essa é a impressão que tenho do Centro hoje. Acredito que com o passar do tempo, com a gestão do Cicero [Araujo] e, sobretudo agora, com a gestão do Andrei [Koerner], um conjunto de iniciativas está sendo tomado, espaços estão sendo abertos e o CEDEC está fazendo aquilo que o Maquiavel dizia que era o elemento fundamental, digamos assim, para o poder: a capacidade de se transformar para operar nas circunstâncias cambiantes, porque elas sempre variam.
Essas circunstâncias mudaram muito. Eu mencionei algumas das mudanças, mas tem outras, não é? Em 1970 as pessoas se comunicavam por telefone, então o trabalho coletivo era diferente, ainda que fosse possível enviar fotocópias ou escrever cartas. Hoje, no entanto, você está conectado e pode trabalhar coletivamente a milhares de quilômetros de distância pela internet. A própria locomoção na cidade de São Paulo hoje é completamente diferente do que era há 30 anos. Então, o atrativo que esses espaços físicos comuns exerciam no passado não deixou de existir, mas o custo deles ficou muito maior e o seu significado completamente diferente. Atualmente, estou acompanhando um pouquinho de longe, mas o que percebo é a disposição de manter, de projetar o CEDEC no futuro, adaptado às circunstâncias do século XXI. Então, se tem um socialismo do século XXI, tem um CEDEC do século XXI. Parabéns para ele.
[1] Mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp – Unicamp – Puc/SP). Membro da comissão editorial do Boletim Lua Nova.
[2] Pós-doutoranda pela Unicamp. Membro da comissão editorial do Boletim Lua Nova.
[3] Pesquisadora do INCT – INEU.
Referência imagética: Créditos da foto a Roberto Brilhante/Carta Maior. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Velasco-Povo-brasileiro-tem-o-direito-de-eleger-seu-presidente-/4/37843. Acesso em: 24 maio 2019.