Larissa Comin Morgado[1]
Veja o relato da mesa anterior, “Desafios da democracia no capitalismo periférico”, aqui.
Como continuidade do fórum 3D (Democracia, Direitos e Desenvolvimento: desafios do Tempo Presente) organizado pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (CEDEC), Centro Internacional Celso Furtado (CICEF) e pela Universidade Federal da Paraíba (UFPA), este texto tem por objetivo relatar a segunda mesa do projeto, intitulada “Significados do desenvolvimento: ontem e hoje” e realizada no dia 25 de maio de 2023. A mesa contou com a participação dos professores Luiz Carlos Bresser Pereira (FGV) e Ricardo Bielschowsky (UFRJ, ex-membro CEPAL) como expositores, Vera Alves Cepêda (UFSCar) como debatedora e Bernardo Ricupero (USP) na mediação. O debate teve um caráter interdisciplinar, utilizando-se de reflexões em torno do pensamento político e econômico brasileiro, com o objetivo de retratar algumas das novas diretrizes desenvolvimentistas, contrastando as divergências de suas antigas premissas para as atuais. Sendo assim, pretendo indicar neste relato os principais pontos levantados na discussão pelos professores Bresser e Bielschowsky, assim como relatar de forma sintética algumas das perguntas feitas na sessão.
Bresser iniciou sua exposição com uma pergunta: por que o Brasil teve seu crescimento econômico estagnado nas décadas de 1980 e 1990? Ele caracterizou que, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), mesmo em vista da existência de um plano consistente para a área social e dos direitos humanos, o plano econômico se mostrava um fracasso diante das demandas da época. O Brasil, que antes atingia um alcance de desenvolvimento pouco mais acelerado que alguns países ricos, passou a ver sua taxa de crescimento abaixo de 1,5% ao ano. A queda do crescimento econômico em comparação com outros países desenvolvidos e em desenvolvimento também foi refletida em uma subsequente estagnação no âmbito social, visto que, ele caracteriza como “ilusória” a tentativa de uma desarticulação destes dois dispositivos, uma vez que o crescimento econômico é essencial para a melhora das condições de vida da população. Como solução às estagnações, Bresser enfatizou que para a crise de 1980, estas centralizaram-se no Plano Brady e no Plano Real. Já para a crise de 1990, a normalidade não foi retomada nem com os governos subsequentes.
Bresser chamou a atenção para o conjunto de quatro atividades que ele considera centrais para o desenvolvimento, fundamentadas pelo professor Bielschowsky em um texto elaborado para a Fundação Perseu Abramo: (1) àquelas associadas à produção de bens e serviços de consumo de massa; (2) às associadas a serviços sociais (gastos correntes, investimentos sociais, educação, saúde, habitação, saneamento, segurança, igualdade de gênero e racial, etc); (3) às atividades intensivas no uso da infraestrutura econômica, isto é, para o planejamento e governança nacional e social; e, (4) atividades intensivas no uso de recursos naturais estratégicos. Bresser também destacou uma quinta atividade fundamental levantada nos anos 1930 por Keynes para o alcance do desenvolvimento, (5) a existência de uma demanda efetiva, partindo do pressuposto de que as economias capitalistas tendem a sofrer de uma insuficiência crônica de demanda.
No caso da trajetória desenvolvimentista brasileira, estas cinco atividades ainda não eram suficientes para explicar os motivos da estagnação econômica e altos índices de desigualdade social. Sendo assim, ele propôs uma sexta atividade, (6) a existência de uma taxa de câmbio que permita o acesso de indústrias competitivas. Esse sexto item se torna fundamental para entender o processo de desenvolvimento no Brasil, visto que, com ele, foi suposta a existência de uma tendência insuficiente de demanda no país, a qual encaminhava a economia para um déficit crônico em conta corrente e consequentemente, uma tendência à sobreacumulação e sobreapreciação crônicas e cíclicas da taxa de câmbio.
Ademais, o autor apontou para a chamada “armadilha de juros altos” (ou, “armadilha da liberalização”) como um fator que também seria responsável por explicar a estagnação econômica vivida pelo Brasil. Esta ocorreu quando, a partir dos anos 1990, muitos países adotaram políticas de abertura econômica e liberalização no plano comercial e no plano financeiro. Mas, ao recorrerem a estas políticas de incentivo de crescimento a partir do endividamento externo, a consequência foi uma apreciação cambial de longo prazo, que resultou na não competitividade da indústria nacional e numa inversão de equilíbrio na relação dívida e produto interno bruto (PIB).
Por fim, o professor relembrou o problema da “doença holandesa”, isto é, a relação entre exportação de recursos naturais como causa do enfraquecimento do setor manufatureiro interno, e de como a sua neutralização é de caráter fundamental para o desenvolvimento do Brasil. Como solução de neutralização, ele propõe a adoção de uma reforma tarifária, a qual definiria duas tarifas: uma tarifa para os produtos industriais (produtos sofisticados tecnologicamente), e uma segunda tarifa, com um caráter único e variável, que oscilaria a partir de uma previsão legal de acordo com o valor médio de exportações do preço de commodities. Bresser então finalizou sua fala das causas de estagnação e soluções previstas, e explicou que “isto é fundamental e novo para o Brasil”, pois enquanto o país não adotar estas medidas e garantir a competitividade da indústria interna, o seu crescimento permanecerá estagnado.
Ricupero passou a palavra para Ricardo Bielschowsky, que iniciou sua fala retomando o esquema de proposições que colaboram para os 3D’s (desenvolvimento, democracia, direitos). Estas proposições se deram a partir de dois enfoques de estratégias de desenvolvimento presentes nas 121 diretrizes programáticas elaboradas durante o programa de mobilizações da chapa Lula-Alckmin. O primeiro enfoque, ele explica, se relaciona aos três pilares organizadores das 121 diretrizes, os quais agruparam a dimensão estratégica de políticas públicas e o potencial de desenvolvimento socioeconômico. São esses: o desenvolvimento social e garantia de direitos, desenvolvimento econômico, sustentabilidade ambiental e climática, e a defesa da democracia. Já o segundo enfoque é representado pelas frentes de expansão compatíveis com as potencialidades observadas da economia brasileira -mercado interno com produção de consumo em massa, as capacidades estatais com potencial de gasto social e investimento público, as infraestruturas econômicas urbanas e sociais e o uso ambientalmente sustentável de recursos naturais.
Bielschowsky caracterizou essas quatro frentes de expansão do segundo enfoque como os quatro pilares de desenvolvimento, e apontou para dois esclarecimentos no que se refere a eles. O primeiro é para a proximidade destes pilares com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, assim como da União Europeia, OCDE, etc; e, o segundo, é pautado à aspectos que ainda devam ser “aperfeiçoados” nestes pilares, como, a inclusão da dimensão político-institucional da estratégia brasileira e da democracia, e a ampliação dos direitos. O economista explica a importância desta ampliação: “o ‘D’ do desenvolvimento socioeconômico se move muito melhor se contemplado junto com os outros dois ‘Ds’, direitos e democracia, que estão no plano da institucionalidade sociopolítica desejada”.
Partindo para a conclusão, Bielschowsky expôs sobre sua visão sistêmica em relação aos objetivos e desafios do processo de desenvolvimento econômico ao integrar os dois enfoques analisados: a dimensão estratégica das políticas públicas de desenvolvimento socioeconômico e as frentes de expansão. Ele entende que as políticas públicas são fontes de cooperação simultânea tanto para o movimento de expansão econômica, bem como ao conferirem “velocidade” e “virtuosidade” ao processo de crescimento pelas frentes de expansão. Sendo assim, analisou que, quando o cruzamento dos dois enfoques é realizado, a fim de um planejamento desenvolvimentista econômico e social, são apresentadas algumas potencialidades de diversidade dentro desta associação. Por fim, acrescentou que, estejam estas dentro de um viés de ampliação da inclusão e proteção social e redistribuição de renda, ou inseridas na transformação produtiva com diversificação e progresso técnico, ambas são possibilidades que avançam o desenvolvimento brasileiro rumo ao progresso.
Na sequência, Vera Cepêda argumentou seu objetivo principal na mesa, que é tentar a interlocução entre os textos de Bresser e Bielschowsky, e a aproximação da discussão do ângulo econômico com o político. De início, localizou três movimentos de interconexão entre os dois autores. O primeiro seria no âmbito da política dentro do contexto da disputa teórica, pois, em suas palavras: “as maneiras como se compreendem, se explicam e se orientam a ação a partir de um conhecimento entendido como rigoroso com método científico, também são expressões da luta política”. Um segundo movimento seria quanto aos efeitos políticos dessas teorias no arranjo (ou tripé) entre sociedade, mercado e Estado, assim como, a escolha dos vetores para a conexão entre esses três setores. E, por último, o terceiro movimento seria a relação aos efeitos da dimensão econômica quando colocada em contato direto com o sistema político.
Em seguida, foram feitas perguntas aos expositores. De início, Cepêda questionou Bresser quanto à necessidade de uma revisitação ao passado, a fim de “refazer” os passos da constituição de um pensamento liberal no Brasil -seja em um viés econômico ou político-, para assim melhor compreender, do ponto de vista institucional e da ação política, o contexto em que estamos vivendo. Para Bielschowsky, ela fez duas provocações: a primeira, em relação às diferenças dos argumentos do economista quando ele se refere à industrialização e consumo em massa, com o último estágio de desenvolvimento no pensamento do economista W. W. Rostow; e, na continuidade, ela também o questionou a respeito da dimensão residual de algumas variáveis do campo da política (como, por exemplo, a inclusão, meio ambiente, àquelas ligadas aos direitos, distribuição de renda, etc) para a continuidade do desenvolvimento e modificação da capacidade econômica.
Surgem também outras questões de colaboradores. Maria Malta (UFRJ) perguntou aos expositores quanto à possível existência de uma janela democrática para se pensar um planejamento econômico futuro de maneira mais participativa. Ela explica que, visto as dificuldades políticas de implementação de determinadas decisões ou percepções, se a janela democrática não seria uma solução que viabilizaria a população de hierarquizar os seus interesses e dar continuidade à mudança. Ricupero também questionou os limites impostos ao pensarmos a estagnação e quais seriam as possibilidades para pensarmos novos horizontes de desenvolvimento que pudessem estar pautados além da indústria.
Bielschowsky respondeu primeiro à questão de Cepêda, explicando que a democracia faz parte de uma luta constante do país. Ele relembra as lutas políticas dos anos 1970, em que era de caráter fundamental a pressão aos governos para a realização de mudanças econômicas e sociais desejadas, e não exclui a centralidade do tema ao lidar também com as questões do hoje. Diz ele: “Se a gente não tiver democracia, se a gente não tiver muita pressão social, muita organização social, isso (a mudança) fica alí como um sonho irrealizável”. Já para a pergunta de Malta, Bielschowsky concordou com a importância da abertura de uma janela de oportunidade para que sejam feitas proposições estruturalistas e de desenvolvimento adjuntas à população. E, finalmente, o economista chamou a atenção para a existência de um momento atual interessante que nos possibilita pensarmos em lutas ideológicas dentro do capitalismo e que desafiam estes novos “limites” de desenvolvimento e estagnação.
Bresser também respondeu à formulação de Cepêda sobre a reconstrução da história do liberalismo. Ele explicou que, após 2017, atentou-se a duas formas de organização econômica do capitalismo. A primeira, pautada no liberalismo econômico (em que o Estado garante a propriedade e os contratos, assim como, mantém em equilíbrio sua conta e, de resto, o mercado se encarrega de fazer a manutenção). Já a segunda, tendo em vista a lacuna conceitual de caracterização na literatura, passou chamar de “desenvolvimentista”.
Explicou que, no momento em que uma sociedade capitalista é organizada a partir do desenvolvimentismo, é prevista a existência de duas instituições fundamentais para coordenação do sistema capitalista: o Estado e o mercado. Sendo assim, diz ele, as sociedades e Estados são desenvolvimentistas na medida em que adotam uma intervenção moderada na economia (para a promoção de desenvolvimento e igualdade social), tal como quando possuem uma perspectiva nacionalista em relação a competição quando comparado aos demais países e Estados nacionais.
Em continuidade à resposta, o economista dividiu a história da economia dos países ricos em quatro fases: (1) desenvolvimentista; (2) liberal de baixo crescimento; (3) um segundo desenvolvimentismo, com a Era Dourada da Inglaterra; e, (4) neoliberalismo. Ele acredita que o liberalismo econômico é a fase secundária da organização capitalista e aponta como solução para pensarmos o cenário atual, a necessidade de nos questionarmos: de que maneira o Norte trabalha com o Sul Global, e respondeu “de forma imperialista, de modo a impedir o desenvolvimento industrial”.
O instrumento que o imperialismo utilizava para o domínio do Sul Global, de início, era a força, mas passou a ser a hegemonia ideológica. Bresser acredita que, a partir do momento em que o Brasil foi submetido ao imperialismo e à abertura industrial em 1990, a desindustrialização foi brutal no país e os índices de desenvolvimento passaram a diminuir progressivamente. Finalizou sua resposta à questão de Cepêda com o entendimento de que, em vista da ideia central do Norte Global e de sua imposição econômica ao Sul a partir de seus interesses imperialistas, as inclinações dos primeiros não serão nada menos do que a instauração do liberalismo econômico aos outros países. Ao “refazermos” a trajetória do liberalismo no Brasil, é possível perceber que a concorrência industrial se tornar nociva aos países do Norte Global, e que quando o liberalismo econômico é conformadamente imposto ao Sul Global, ele consuma mais benefícios imperialistas ao Norte do que quando estes países “concorrentes” se manifestam como desenvolvimentistas. Sendo assim, é possível concluir que, as relações que o Brasil perpetua até os dias atuais em sua economia provém dessas relações de “dependência” e imposição de tempos passados com o Norte global.
Já como complemento de Bresser à questão de Malta sobre a janela democrática, Bresser concordou que a democracia é a grande bandeira da sociedade brasileira. Com os ataques anti-democráticos incitados pelo neoliberalismo e pelo populismo radical de extrema-direita de Donald Trump e Jair Bolsonaro, revelou-se neste processo a grande capacidade autônoma da democracia e de sua defesa por parte da sociedade. Ele finalizou: “a democracia hoje se tornou um valor universal por interessar a todas as camadas sociais”.
Na última rodada de perguntas, surgiram então três questões, uma de caráter geral e outras duas direcionadas a cada expositor. A primeira era em relação a quais interesses sociais dentro da nação, a política ou a estratégia de desenvolvimento tenderá a impactar. Isto é, se haveria então uma hierarquia entre os interesses da população. Já as perguntas para cada expositor, indagou-se a Bielschowsky qual seria a instituição responsável por estimular as frentes de expansão, se o Estado ou o mercado. Já Bresser foi desafiado a pensar em um Banco Central independente. Visto a forte relação da taxa de câmbio com o fluxo internacional e para as definições de taxa de juros, como seria possível pensar em um banco central independente, mesmo com a rigidez da margem de política monetária do país?
Bresser iniciou a sua resposta à primeira pergunta em relação aos interesses sociais e elogia o governo atual. Ele diz que acredita que os interesses sociais, políticos e de desenvolvimento sejam contemplados no governo de Lula-Haddad. Para a pergunta referente ao Banco Central, Bresser argumenta que não faz sentido pensar em um Banco Central independente quando a taxa de câmbio é fundamental para o país. Ele acredita que é importante que o Banco Central mantenha uma certa autonomia e que as intervenções de fora sejam moderadas, mas que, de forma alguma, seja como o modelo criado aqui no Brasil ou na Europa.
Bielschowsky, por sua vez, respondeu que, em relação à hierarquia de interesses sociais, é preciso que se mantenha um senso de pragmatismo. Isto é, considerar onde o Estado consegue fazer inclusões sociais, controle ambiental e desenvolvimento de forças produtivas possíveis, e em que viés o Estado pode interagir com o mercado. Essa é a pergunta que devemos fazer ao tentarmos hierarquizar os interesses sociais. Quanto às frentes de expansão, argumentou a favor do equilíbrio de iniciativas estatais e de mercado. Para o consumo em massa, por exemplo, o investimento é quase total do setor privado, mas o Estado precisa também adentrar para tentar realizar melhorias distributivas para a sua manutenção e funcionamento. Em contrapartida, no âmbito dos serviços sociais, o Estado é o executor principal e o mercado só se manifesta quando os objetivos do Estado não conseguem ser contemplados em sua totalidade. E na infraestrutura, o economista defende uma parceria entre o Estado e o mercado.
Como conclusão da discussão abordada na mesa, é possível interpretar que a preocupação com o desenvolvimento do Brasil ultrapassa barreiras meramente monetárias. O caráter interdisciplinar dos argumentos dos participantes também se traduzem na materialidade do processo. Como colocado pelo professor Bielschowsky, o progresso econômico e social apresenta uma relação de mutualidade, de maneira em que o progresso em ambos os campos só será atingido com um planejamento governamental que não os desagregue. Além disso, também foi argumentado sobre a importância da articulação das políticas públicas, assim como a participação da população, quando são levantadas soluções para atingir a superação da estagnação. Estes princípios, conjuntamente com os levantados pelo fórum 3D (Democracia, Direitos e Desenvolvimento), se apresentam como os valores intrínsecos ao pensarmos em um ideal de sociedade que traduza os significados de desenvolvimento para o hoje e para os tempos futuros.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
[1] Mestranda em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Bolsista CNPq, membro do grupo de pesquisa Soberania Popular em Perspectiva Histórica e da equipe do Boletim Lua Nova. E-mail: larissacomin.m@gmail.com
Fonte Imagética: Cartaz de divulgação da mesa do Projeto 3D. Agradecemos a secretaria do CEDEC por nos disponibilizar a imagem.