Marcelo Gomes Justo[1]
Mônica Schiavinatto[2]
Apresentamos aqui uma síntese dos principais argumentos desenvolvidos no artigo “Bem viver e economia solidária: aproximações para o desenvolvimento solidário e sustentável”, publicado recentemente na edição especial dedicada a Paul Singer da revista P2P&Inovação. O artigo teve como objetivo analisar a relação entre bem viver e economia solidária. Para tanto, partimos de duas questões fundamentais para entender o bem viver: a) Bem viver seria um conceito a superar o de desenvolvimento? b) Bem viver é um conceito maior de emancipação social que abarcaria os demais, ou ele é horizontal e dialoga com outras lutas progressistas anticapitalistas, anticoloniais e antipatriarcais e sem se colocar como substituto ou unificador dos demais? E, ao refletir sobre elas, pudemos relacionar com a perspectiva central de economia solidária na visão de Paul Singer.
Dessa forma, o artigo inicia com um breve olhar sobre a conjuntura política sul-americana dos anos 2000, que traz estes conceitos em sua dinâmica; apresenta pontos centrais sobre o tema do bem viver e da economia solidária e, por fim, aponta reflexões sobre as questões postas inicialmente, evidenciando a relação entre os dois conceitos.
Macro cenário de conjunturas progressistas
A América Latina nos anos 2000 ficou marcada por governos mais à esquerda que buscaram realizar políticas sociais para além dos preceitos neoliberais. O bem viver e a economia solidária foram dois conceitos que se destacaram nesse contexto. Mais do que resistência ao neoliberalismo, essas duas ideias e os conjuntos de ações contidas neles são possibilidades de superação do modo de produção capitalista. Porém, a força do neoliberalismo também marcou o período e os governos a ponto de terem de fazer concessões à voracidade do capital, que assumiu na região características extrativistas e de despossessão. As contradições presentes nos governos da onda progressista latino-americana não invalidaram a força presente nas políticas de bem viver e de economia solidária. Foi nesse período que reapareceu a utopia de Outros Mundos Possíveis, como marca dos Fóruns Sociais Mundiais.
Essa ascensão de governos progressistas na América Latina se deveu a lutas sociais envolvendo campo e cidade, evidenciando novas estratégias de transformação em que o território (ou o local) importa, pois parte-se de experiências locais de autogestão, de vida comunitária solidária e sustentável. Neste contexto, povos e comunidades tradicionais se apresentam como sujeitos referenciais da mudança, devido aos seus modos de vida e de produção não capitalista e integrados com a natureza (a classe trabalhadora urbana deixou de ser o sujeito exclusivo da grande transformação e os indígenas deixaram de ser sujeitos considerados como do passado).
No Brasil, a associação da economia solidária com o bem viver começa a ser evidenciada a partir do documento da II Conferência Nacional de Economia Solidária em 2010. Essa aproximação se dá porque ambas almejam sociedades não capitalistas, que valorizam novas formas de relação entre os seres humanos, e entre eles e a natureza, baseadas na solidariedade e na reciprocidade (BRASIL; BRASIL, 2013).
- Bem viver: um conceito permeável e dialógico
O bem viver é inerente aos povos originários andinos. Porém, ele ganhou notoriedade e institucionalidade ao ser incorporado às Constituições do Equador, em 2008, e da Bolívia, em 2009.
O conceito provém das lutas dos povos indígenas e camponeses andinos como visão de mundo e um conjunto de práticas sociais em resposta à crise do modelo de desenvolvimento capitalista com crescimento econômico e progresso linear e modernizante (DELGADO; RIST; ESCOBÁR, 2011). A origem indígena do conceito está nas expressões: sumak kawsay, em Quéchua, do Equador; suma qamaña, em Aimará, da Bolívia; ñandereko, em Guarani, de todo Centro e Sul da América do Sul (ACOSTA, 2016; DELGADO; RIST; ESCOBÁR, 2011; GUDYNAS, 2011; SÓLON, 2019).
Como principais características da cosmovisão do bem viver descritas por Sólon (2019), temos a visão sistêmica do espaço e tempo cíclicos (Pachamama ou Mãe Terra); a não dicotomia entre seres vivos e corpos inertes; a coexistência na multipolaridade; a complementaridade, quer dizer os diferentes e os antagônicos são partes do todo, por isso, a necessidade de respeitar a diversidade e articular experiências, compartilhar conhecimentos e reconhecer ecossistemas; existem outras formas de bem viver e todas são válidas; a descolonização como uma luta constante, que consiste na autogestão e na autodeterminação em todos os níveis.
A partir dessa noção emergem duas questões. A primeira questão é: o bem viver é um novo conceito que superaria o de desenvolvimento? Apresentamos três ideias de autores de referência sobre o tema. De maneira geral, os autores relacionados entendem que o termo “desenvolvimento” (e seus adjetivos) pode se manter como um caminho para atingir o bem viver e superar o capitalismo, desde que ressignificados a partir da perspectiva do bem viver.
De acordo com Delgado, Rist e Escobar (2011), o conceito de bem viver é uma proposta que orienta o diálogo dos saberes, visando uma concepção de vida baseada na interação entre os seres das comunidades de humanos e de não-humanos (plantas, animais, ventos, pedras), organizados nos âmbitos da vida social, material e espiritual. Assim, eles propõem o conceito de “desenvolvimento endógeno sustentável” como um meio para o bem viver.
Já na visão de Gudynas (2011) a novidade do bem viver está em romper com a ideologia do progresso e com os caminhos da modernidade, incorporar os elementos ambientais e abandonar o antropocentrismo. Para isso, o conceito de “desenvolvimento sustentável superforte” pode ser utilizado, englobando as seguintes ideias do bem viver: reconhecer a Natureza como sujeito; superar a dualidade sociedade-natureza; tirar o lugar privilegiado do crescimento econômico; regular o mercado e reconhecer que existem diversos tipos de mercados na América Latina.
E, por fim, o bem viver como sendo a forma mais radical de construção de um conceito para superar o de desenvolvimento. Acosta (2016) o propõe como uma alternativa para construir outros mundos emancipados das dominações capitalista, colonialista e patriarcal, como uma utopia de um novo processo civilizatório ameríndio. O bem viver romperia definitivamente com o conceito de desenvolvimento e com todos os complementos (humano, sustentável, bem-estar econômico e social, entre outros) que se juntaram a este na tentativa de aprimorá-lo sem descartá-lo. Seria uma outra economia para uma outra civilização, que tem proximidades com a economia solidária e com a concepção de uma sociedade essencialmente democrática.
A segunda questão a ser refletida é se o bem viver pode englobar as diferentes reivindicações sociais, ou se ele deve ser complementado por outros conceitos e lutas emancipatórias.
Partindo da perspectiva de pesquisadores de referência sobre o tema, temos a ideia de complementaridade entre bem viver, economia solidária, ecossocialismo, os comuns, decrescimento, ecofeminismo e outros, como meio para todos se fortalecerem (SÓLON, 2019). Para esse autor, aceitar a diversidade implica reconhecer que outros bem viver são válidos. O bem viver não busca substituir um corpo de conhecimentos e crenças por outro; a construção dele deve ser multicultural (GUDYNAS, 2011) e pode ser entendida como um norte ético articulador de diversas correntes de pensamento crítico humanista, marxista, ambientalista, feminista e até religioso, que sustenta as buscas de alternativas de desenvolvimento e/ou de transformação global (FARAH; VASAPOLLO, 2011). Ou seja, o bem viver, conforme esses autores, não deve ser entendido como um conceito unificador de todas as lutas sociais emancipatórias.
Bem viver no Brasil: contribuições indígenas e quilombolas
A expressão bem viver começou a aparecer no Brasil ainda nos anos 1990 com autores ligados à Teologia da Libertação. No entanto, o termo se difundiu e ganhou força a partir do início dos anos de 2010 (ALCÂNTARA; SAMPAIO, 2017). Podemos traçar paralelos com as cosmovisões dos povos indígenas como sendo a nossa raiz comum do bem viver, como o ñandereko Guarani, ou lembrando a luta dos Povos da Floresta dos anos 1980 e 1990, que uniu seringueiros e indígenas com as destacadas lideranças de Chico Mendes, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, entre outros, para a defesa de seus territórios, do viver em harmonia com a floresta e com mútuos aprendizados. Aliás, Krenak e Kopenawa têm insistido em explicar aos brancos como os povos indígenas podem “adiar o fim do mundo” e evitar a “queda do céu” porque nunca compartilharam de suas noções de progresso, de desenvolvimento e de desencantamento do mundo. Mais recentemente, houve o fortalecimento da produção de conhecimentos por autores das comunidades tradicionais ou indígenas, que passaram a tratar de agroecologia, soberania alimentar e bem viver. Outro exemplo, o quilombola Antônio Bispo Santos (2015) analisa a distinção entre a cosmovisão binária dos brancos europeus e as cosmovisões múltiplas dos povos afrodescendentes e “pindorâmicos” e destaca a contribuição destes últimos por viverem de modo “biointegrado” como um “bem viver”.
2. Economia e Desenvolvimento Solidários: respostas às questões sobre o bem viver
Para entender a economia solidária, partimos da ideia do grande pensador Paul Singer, uma das referências sobre o tema. O autor parte da ideia de que “a economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual” (SINGER, 2022, p. 36). Porém, quando o termo bem viver ganha evidência no debate, ele avança no sentido de apreender a relação deste com a economia solidária. Segundo Singer, “como não visa lucros, mas algo que hoje é chamado de bem-viver, a economia solidária faz jus a seu nome, na medida em que permanece fiel a seus princípios” (SINGER, 2022, p. 183, itálico do autor). Ou seja, para o autor, a economia solidária visa o bem viver.
De acordo com o autor, a questão central é como a economia solidária poderá superar o modo de produção capitalista. Segundo ele, os empreendimentos econômicos solidários das últimas décadas são de caráter intersticial, ou seja, surgiram no seio do capitalismo como resposta à crise de desemprego estrutural e de exclusão globalizada dos anos 1990. Mas a economia solidária não pode ser apenas uma resposta às contradições do capitalismo porque perderá força com o tempo. Logo, ela deve se colocar como uma alternativa ao capitalismo. Singer reitera que a economia solidária precisa gerar sua própria dinâmica e ser realmente competitiva para não cair no isolamento. Ela superará o capitalismo quando oferecer a parcelas crescentes da população, oportunidades concretas de autossustento, “usufruindo o mesmo bem-estar médio que o emprego assalariado proporciona” (SINGER, 2022, p. 133, itálicos do autor).
Por fim, em texto intitulado “Economia solidária: possibilidades e desafios”, de 2001, pontuou que o socialismo não se realizará com a mera multiplicação de cooperativas, mas elas são fundamentais. Em sua concepção, o socialismo é a democratização de todas as instituições humanas. Portanto, são muitas frentes de luta e a economia solidária é uma delas (SINGER, 2018, p. 69).
- Considerações finais
O conceito de desenvolvimento sempre foi central para Singer e não haveria porque aboná-lo. Para ele, os países marcados pelas imensas desigualdades e por massas empobrecidas precisam se desenvolver em conjunto com as lutas por redistribuição. Ao teorizar sobre economia solidária, ele requalificou o conceito de desenvolvimento como solidário, sendo oposição e superação do desenvolvimento capitalista.
Dialogando com os autores que discutem o bem viver, esse seria o fim cujos meios são o “desenvolvimento endógeno sustentável” (DELGADO; RIST; ESCOBÁR, 2011) ou “desenvolvimento sustentável superforte” (GUDYNAS, 2011) ou que deveria romper definitivamente com o conceito de desenvolvimento mas, enquanto isto não ocorre, o “desenvolvimento sustentável” é um caminho (ACOSTA, 2016). Para Singer, a economia solidária e o desenvolvimento solidário são necessários e também manifestações socialistas no presente que coexistem com o modo de produção capitalista.
Outro ponto importante sobre o bem viver é que os autores mencionados concordam com a complementaridade entre os conceitos e as diferentes lutas emancipatórias. Segundo eles, não se busca substituir um corpo de conhecimentos e crenças por outro. A construção do bem viver deve ser multicultural e articuladora de diversas correntes de pensamento crítico. Por esta problematização, concluímos que a potência do conceito de bem viver está na permeabilidade e na dialogicidade com outras concepções e com outras lutas emancipatórias. Seu limite de ser um novo conceito geral para se opor ao capitalismo contém a potência de articular outras lutas. Ele poderá superar o predomínio da noção de desenvolvimento; porém, não sozinho.
Neste sentido, há proximidade com a teorização de Singer sobre economia solidária. Em sua concepção, o socialismo é a democratização de todas as instituições humanas. São muitas frentes de luta e a economia solidária é uma delas (SINGER, 2018, p. 69). A economia solidária é outra economia e não é um mero meio para algo no futuro. Pela teorização de Singer, podemos combinar economia solidária e bem viver como desenvolvimento solidário. Assim, é possível concluir que bem viver, economia solidária e outras lutas emancipatórias realizarão o desenvolvimento solidário.
* Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
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BRASIL, Manuela S.; BRASIL, Francisco S. Economia solidária, bem viver e decrescimento: primeiras aproximações. Emancipação. Ponta Grossa, 13, no. Especial, 93-104, 2013. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/5190. Acessado em: 10/04/23.
DELGADO, F.; RIST, S; ESCÓBAR, C. Desarrollo endógeno sustentable: camino para re-actualizar el “Vivir Bien” en el contexto de la revolución democrática y cultural de Bolivia. In: FARAH, Ivonne e VASAPOLLO, Luciano (Coord.). Vivir bien: Paradigma no capitalista? La Paz – Bolivia: Plural ediciones, 2011.
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GUDYNAS, Eduardo. 2011. Tensiones, contradicciones y oportunidades de la dimensión ambiental del Buen Vivir. In: FARAH, I.; VASAPOLLO, L. (Coord.). Vivir bien: Paradigma no capitalista? La Paz – Bolivia: Plural ediciones.
SANTOS, Antônio Bispo. Colonização, Quilombos: modos e significados. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa – INCTI. Brasília, 2015.
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SINGER, Paul. Economia Solidária: introdução, história e experiência brasileira. São Paulo: Editora Unesp; Fundação Perseu Abramo, 2022.
SÓLON, Pablo. 2019. Vivir Bien: antigas cosmovisões e novos paradigmas. In: LESBAUPIN, Ivo; CRUZ, Mauri (Orgs). Novos Paradigmas para Outro Mundo Possível. São Paulo: Abong e Iser Assessoria.
[1] Diretor executivo do Instituto Paul Singer. É sociólogo com doutorado em Geografia pela USP. Realizou pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe – IPPRI/Unesp. Email: marcelojusto2015@gmail.com
[2] Pesquisadora associada do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais – IPPRI/Unesp. Doutora em Desenvolvimento Sustentável (CDS/UnB). Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe – IPPRI/Unesp. Email: monica.schi@gmail.com
Fonte Imagética: Fonte: Wikimedia Commons. Primer Encuentro de los Pueblos y Nacionalidades Andinas por el Sumak Kawsay. 27 set. 2011. Fotografia da Chancelaria do Equador. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Primer_Encuentro_de_los_Pueblos_y_Nacionalidades_Andinas_por_el_Sumak_Kawsay_(6188862405).jpg>. Acesso em: 5 set. 2023.