Lucas Fiaschetti Estevez[1]
I.
Dentre os inúmeros temas abordados na vasta obra de Theodor W. Adorno, a sua análise a respeito do jazz suscitou um amplo e acalorado debate. As primeiras considerações do autor a respeito surgem pontualmente em alguns de seus escritos dos anos 1920 e passam gradativamente a ocupar um lugar central em sua obra na década seguinte, como em Adeus ao Jazz (1933) e Sobre o Jazz (1936). Desde então, sua análise desse gênero musical pode ser encarada como um momento daquele diagnóstico a respeito da padronização da cultura e sua colonização pela lógica mercantil, que encontraria sua exposição mais famosa em A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas (1944). Nas décadas seguintes, Adorno ainda voltou a tratar do jazz de forma mais detida em Moda intemporal – Sobre o Jazz (1953) e em seus cursos de Sociologia da Música (1961-62).
Fato pouco ressaltado, a crítica ao jazz de Adorno representa um dos principais eixos no qual o autor desenvolveu sua crítica da ideologia no âmbito da cultura. Tendo em vista o lugar de destaque que ocupava na cena musical na primeira metade do séc. XX, o jazz figurava como um frutífero exemplo histórico para se discutir um processo amplo de mercantilização da cultura, dissolução do indivíduo e derrocada da autonomia da arte (ADORNO, 2011). Em contraste com a música de concerto e de vanguarda, que tensionava por meio de sua elaboração estética as condições vigentes, o jazz contribuía em ocultar dos ouvintes as condições de produção e as relações de classe empreendidas por esta indústria e seus atores. Ao vender-se como uma música de todos para todos, conferia ainda mais opacidade ao processo social (ADORNO, 2011a; 2008) e aprofundava as tendências regressivas do novo estágio da cultura sob o capitalismo.
Apesar disso, a leitura recorrente que se faz desses escritos de Adorno tende a caracterizar sua posição como uma negação absoluta e intransigente dessa música. Esse tipo de interpretação identificou em Adorno um pensador elitista, preconceituoso e avesso às manifestações culturais ditas “populares”. Tornou-se comum perguntar por que Adorno, afinal de contas, odiava o jazz. Uma das principais vias de ataque é aquela que afirma que o autor teria aplicado um juízo de valor depreciativo em relação a essa música devido a sua conhecida preferência à música séria de Arnold Schönberg e seus discípulos, representantes da música de vanguarda europeia (PATRIOTA, 2014, p.19). Alguns comentadores (MARTÍN-BARBERO, 1987; MÉSZÁROS, 2004; KUEHN, 2015) costumam enfatizar que Adorno não teria desenvolvido somente uma visão reacionária do jazz, como também a teria imbuído de um conteúdo excessivamente filosófico e metafísico. Por fim, outros encaram sua crítica como fruto de um desconhecimento a respeito das origens sociais daquela música e de sua complexidade musical (BERENDT, 2014; TOWNSEND, 1988).
Entretanto, é notável como boa parte de tais críticas partem de uma confusão bastante disseminada em relação ao tipo historicamente determinado de jazz que foi analisado na obra do frankfurtiano. Quando Adorno fala de jazz, ele se refere a uma música bastante diferente daquela que seus críticos e a contemporaneidade geralmente entendem por jazz. Para desfazer tal confusão, deve-se salientar que a crítica ao jazz de Adorno se desenvolveu a partir do contato do autor com dois contextos culturais bastante particulares: (i) a cena musical da República de Weimar nos anos 1920 e 1930, onde o jazz representava um fenômeno bastante específico e endógeno; (ii) o contexto norte-americano das décadas de 1930 e 1940, marcado pela consolidação da indústria cultural na qual o jazz, sob a figura do swing, foi transformado na tendência musical de maior sucesso comercial[2]. Sob tal recorte, fica claro como os desenvolvimentos posteriores do jazz, como o bebop e o free-jazz – dotados de maior complexidade musical -não foram levados em consideração na análise do autor sobre essa música. Assim sendo, é importante deixar claro não só qual tipo de produção musical Adorno rotula como jazz (como Whispering, de Paul Whiteman), mas também tudo aquilo que está excluído de sua análise (como o célebre álbum A Love Supreme, de John Coltrane).
II.
Nos primeiros anos de sua formação intelectual, Adorno estava submerso na vida cultural da República de Weimar. Naquele contexto, o jazz marcava forte presença no cinema, nas casas de espetáculo, nos cabarés e no mercado fonográfico e radiofônico. Entretanto, ao ser importado da tradição musical norte-americana e adaptado em novos termos, o jazz alemão se constituía como um tipo de música extremamente comercial, voltada à dança, sem muitas inovações rítmicas e harmônicas – em suma, uma música muito distinta de sua variante hot[3], a qual ainda ocupava um papel de destaque na cena musical norte-americana e era amplamente tocada nas comunidades negras (HOBSON, 1940; SARGEANT, 1975).
A pré-história do jazz alemão explicita o cenário conservador que essa música iria encontrar no país. Antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial, fizeram certo sucesso na Alemanha inúmeras músicas de ragtime, gênero musical norte-americano considerado o precursor do jazz. De constituição formal mais simples e tradicional, essa música de natureza essencialmente pianística tinha se adaptado bem ao contexto alemão daquele período, já que o piano exercia um importante papel formativo e de socialização entre a pequena burguesia do país. Com o início da República de Weimar, essa tradição musical voltou à cena e se tornou o referencial das bandas, que passaram a desenvolver um estilo muito próximo daquele do pré-guerra. Assim, parte predominante dos músicos passou a se utilizar de uma estética muito tributária da tradição da música popular alemã, como a valsa, a banda militar e a orquestra de salão (ROBINSON, 1994, p.4-5).
Além disso, a chegada do jazz em solo alemão foi tardia se comparada a demais países da Europa continental. Após o fim da Primeira Guerra Mundial, bandas compostas por músicos brancos europeus começaram a se apresentar por todo o país. Na maioria dos casos, eram compostas por uma mistura de europeus e imigrantes negros que tinham pertencido aos destacamentos franceses durante a guerra e que, terminado o conflito, tinham permanecido no país a procura de melhores condições de vida (WIPPLINGER, 2017). Além de se limitarem a um material musical mais tradicional, sem arroubos rítmicos e restritos a uma execução mais ipsis litteris da notação musical, a organização dessas bandas também era bastante peculiar, já que tinham um violinista como líder do grupo e reservavam um papel diminuto aos metais e às improvisações dos solistas.
A partir da metade da década de 1920, a Alemanha começou a experimentar uma melhora gradativa em sua condição econômica (GAY, 1978). Gozando de estabilidade fiscal, relaxamento da violência política e renovação de prestígio na comunidade internacional, o país iniciou um breve período de prosperidade entre os anos de 1924 e 1929. Essas mudanças também tiveram efeito sobre a cena cultural. Os antigos entraves que dificultavam a entrada maciça da música comercial norte-americana deixaram de existir, trazendo para a cena musical do país novas influências e estilos. Assim, crescia a importação e circulação de discos e a variedade de artistas e subgêneros encontrados nas lojas, como também se popularizavam as apresentações e turnês de artistas negros norte-americanos.
Apesar de tais transformações, o contexto alemão continuou a impor certas restrições ao mercado fonográfico norte-americano, o que manteve boa parte de sua música alheia aos estilos mais próximos da tradição da hot music. É notável como durante toda a República de Weimar vigoraram restrições governamentais e normas burocráticas relativas à importação, venda e circulação de obras de artistas afro-americanos, numa clara política de segregação racial que buscava salvaguardar o mercado alemão do predomínio de artistas negros (ROBINSON, 1994). Embora a sociedade alemã estivesse tomada pelo entusiasmo em relação aos EUA e o ideal de modernidade que aquela sociedade representava, é importante notar como essa postura era seletiva, na medida em que setores das elites e dos monopólios culturais permaneciam reticentes em relação aos elementos negros provenientes da cultura americana. Quando entravam no país, esses elementos eram transformados em fetiches e estereótipos raciais (ESTEVEZ, 2022).
A exclusão do jazz negro não ocorria só no mercado fonográfico, mas também nas rádios, nos shows e nos espetáculos. Segundo um estudo estatístico, dos 12.500 títulos que foram reproduzidos sob a classificação de jazz nas rádios nesse período, apenas três eram de Duke Ellington e nenhum de Louis Armstrong (ROBINSON, 1994, p.7), músicos que predominavam na cena jazzística norte-americana. Além disso, também havia um forte controle estatal na programação veiculada pelas rádios. Em um cenário de tantas restrições, o público alemão “cultivava uma noção muito distorcida, de segunda-mão, do jazz norte-americano” (POTTER, 2015, p.32).
Em detrimento de uma música artisticamente mais elaborada,o jazz que adentrava no mercado alemão era composto majoritariamente por gravações e partituras de um conjunto de editoras nova-iorquinas conhecidas como Tin Pan Alley. A música comercializada por esse circuito acompanhava a tendência de um jazz majoritariamente orquestral e de big bands, tendo figuras de sucesso como os band leaders Red Nichols, Miff Mole, Vicent Lopez e Paul Whiteman. No geral, produziam hits de fácil escuta e execução, compostos principalmente por músicos brancos de formação erudita que se apresentavam em requintados salões de baile, como na cena retratada na imagem central do tríptico Groβtadt (1927-28), do pintor Otto Dix.
Com a quebra da bolsa de valores norte-americana e a conflagração da crise econômica mundial em 1929, a República de Weimar foi duramente atingida, encerrando assim o período de sua estabilização econômica (RICHARD, 1988; GAY, 1978). Diante das consequências drásticas da crise econômica, a influência norte-americana também perdeu seu brilho. Em poucos meses, tudo que tinha origem estadunidense decaiu em popularidade e passou a ser objeto constante de crítica de amplos setores sociais que passaram a denunciar o caráter regressivo desses bens culturais, conclamando à nação a um retorno urgente a uma cultura “legitimamente germânica”. A mídia e a indústria cinematográfica se tornaram porta-vozes da propaganda de extrema direita e os artistas de esquerda e de vanguarda começaram a ser exilados ou executados.
Também encarado como um parasita estranho à cultura alemã, o jazz foi gradativamente substituído por outras tendências musicais mais “legítimas”. Os movimentos musicais da juventude e de partidos de direita proclamavam a necessidade de uma música comunitária e integrada aos “sentimentos nacionais” de uma comunidade racial idealizada. Desmoralizado publicamente e execrado no campo político, nos anos finais da República de Weimar “o público perdera o interesse no jazz e gravitava em torno de estilos mais antigos de entretenimento musical” (POTTER, 2015, p.32). Com a ascensão dos nazistas ao poder em 1933, o jazz passou a ser incluído, dentre tantas outras manifestações culturais, no jargão da “arte degenerada”. Da ascensão nazista em 1933 à eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939, vertentes do jazz mais ligadas à tradição norte-americana tornaram-se ainda mais laterais na cena cultural do país. Por outro lado, sua forma orquestral e diluída, sem qualquer referência às suas origens negras, persistiu.
III.
Com tal exposição, torna-se evidente como o jazz foi tomado por Adorno como o índice mais relevante da neutralização da cultura e da perda da autonomia da arte no âmbito musical. Produzida por grandes monopólios culturais, essa música nascia sob uma disciplinada divisão do trabalho entre compositores, arranjadores e músicos com pouca ou nenhuma margem para um tratamento do material musical que fosse para além da formatação imposta pela indústria. Seu conteúdo contestatório e musicalmente elaborado, típico de parte do jazz norte-americano, foi esvaziado e diluído. Na década seguinte, um processo semelhante iria ocorrer nos Estados Unidos sob o signo do swing, embora com suas particularidades.
Entretanto, sabe-se como o jazz desde então passou por inúmeras transformações que atingiram sua música, seu público, sua produção e sua imagem. Depois do surgimento do rock’n’roll, foi destronado de sua posição e se reinventou diversas vezes, tendo se aproximado de uma linguagem artística mais elaborada, ao mesmo tempo que viveu seu ocaso e sua metamorfose numa música de nicho, intelectualizada. Assim, se o jazz se transformou radicalmente ao longo da segunda metade do séc. XX, torna-se improdutivo colocar em questão se as conclusões adornianas sobre o jazz daquele determinado período histórico são relevantes para se compreender o jazz posterior e contemporâneo. Se for feito dessa forma, o debate ignora as determinações históricas do próprio objeto analisado, questão cara à teoria crítica.
Em vez disso, levando em consideração as grandes diferenças observadas entre o diagnóstico de Adorno e o jazz atual, faz-se necessário redirecionar os esforços da crítica. Na análise de Adorno sobre o jazz, é possível vislumbrar um modelo de crítica que, transposto com as devidas mediações aos bens culturais que hoje ocupam o centro da cultura massificada, ainda se mostra bastante profícuo e relevante. Da mesma forma, também é urgente a tarefa de se apontar os limites da análise do autor e a validade de seu argumento para compreendermos as representações, práticas e discursos que circulam nos novos meios de comunicação e de mídia.
Embora continue a limitar e a dissolver em seu caráter sistêmico tudo aquilo que tende a colocar em relevo o novo, é importante ressaltar que dentro da indústria cultural continuamos a observar disputas relativas aos significados e aos conteúdos por ela veiculados em seus diversos âmbitos, que em muitas das vezes são colocados em discussão por diferentes atores sociais. Como na própria análise adorniana do jazz, a cultura transformada em mercadoria não pode ser reduzida ao signo da pura regressão e da falência da arte. Nesse novo status da cultura sob o capitalismo, há contradições ainda não resolvidas nem capturadas pela lógica dominante. Mesmo tendo enfatizado o caráter regressivo do jazz, Adorno também nunca perdeu de vista o “potencial de sublevação musical” (ADORNO, 2011b, p.104- 105) ali inscrito. Quando o objeto é visto sob a lupa da dialética, ele nunca se esgota.
*Este texto não reflete, necessariamente, as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W. Sobre a situação social da música. In: Escritos Musicales V. Obra Completa, 18. Madri: Ediciones Akal, 2011.
_________________. Adeus ao jazz. In: Escritos Musicales V. Obra Completa, 18. Madri: Ediciones Akal, 2011a.
_________________. Sobre o jazz. In: Escritos Musicales IV. Obra Completa, 17. Madri: Ediciones Akal, 2008.
_________________. Música Ligeira. In: Introdução à Sociologia da Música. São Paulo: Editora UNESP, 2011b.
BERENDT, Joachim-Ernst. A favor e contra o Jazz. In: Arte Filosofia, n.16. Ouro Preto:
IFAC/UFOP, julho de 2014, p.4-10.
ESTEVEZ, Lucas Fiaschetti. A questão racial na crítica de Adorno ao jazz. In: A Terra é Redonda, 06 de Março de 2022. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/a-questao-racial-na-critica-de-adorno-ao-jazz/
GAY, Peter. A cultura de Weimar. Trad. De Laura Lúcia da Costa Braga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
HOBSON, Wilder. American Jazz Music.Londres: Dent & Sons Ltd., 1940.
KUEHN, Frank M. C. Adorno e o jazz: uma questão de gosto, desgosto ou miopia? In: Gosto, interpretação e crítica, v.2. Belo Horizonte: UFMG, p.110-122, 2015.
MARTÍN-BARBERO, J. De los medios a las mediaciones: comunicación, cultura y hegemonia. México: G. Gili, 1987.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Trad. Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004.
PATRIOTA, Rainer. Apresentação à Edição Brasileira. In: BERENDT, Joachim-Ernst. O livro do jazz: de Nova Orleans ao século XXI. São Paulo: Perspectiva: Edições Sesc São Paulo, 2014. p.15-21.
POTTER, Pamela M. A mais alemã das artes: musicologia e sociedade da República de Weimar ao fim da Era Nazista. São Paulo: Perspectiva, 2015.
RICHARD, Lionel. A República de Weimar (1919-1933). São Paulo: Companhia das Letras (Círculo do Livro), 1988.
ROBINSON, J. Bradford. The jazz essays of Theodor Adorno: some thoughts on jazz reception in Weimar Germany. In: Popular Music. Cambridge: Cambridge University Press, Vol. 13, nº 1, p.1-25, jan. 1994.
SARGEANT, Winthrop. Jazz, Hot and Hybrid. Nova York: Da Capo Press, 1975.
TOWNSEND, Peter. Adorno on Jazz: Vienna versus the Vernacular. In: Prose Studies. Vol. II, n.1, Maio de 1988.
WIPPLINGER, Jonathan O. The Jazz Republic: Music, Race and American Culture in Weimar Germany. Social History, Popular Culture, and Politics in Germany (Série). EUA, Michigan: University of Michigan Press, 2017.
[1]Doutorando em sociologia pela Universidade de São Paulo. Este texto é uma versão resumida do artigo A crítica ao jazz de Theodor W. Adorno à luz da história: de qual música estamos falando?, publicado pela revista Áskesis (v.10, n.1, p.56-78, jan. – jun. 2021). As ideias aqui tratadas são resultado da pesquisa em curso, intitulada Theodor W. Adorno e o Jazz: Desenvolvimentos, Contradições e Rupturas de um Diagnóstico Crítico. Contato: lucas.estevez@usp.br
[2] Neste texto, nos concentraremos na primeira dessas cenas musicais.
[3] A chamada hot music é aquela que, proveniente da tradição do jazz de Nova Orleans, contém elementos rítmicos, harmônicos e melódicos que fogem à tradicional estrutura da música europeia. Algumas de suas características fundamentais são: a polirritmia, a síncope, o uso de dissonâncias, a prática da improvisação, a distorção de timbres e o uso de uma instrumentação mais variada.
Fonte Imagética: Metrópolis (Großstadt), cena central de tríptico. Otto Dix, 1927-1928. Técnica mista sobre madeira, 181 cm × 402 cm. Kunstmuseum Stuttgart, Alemanha.