Murilo Santos1
13 de novembro de 2024
Este texto faz parte de uma série especial do Grupo de Reflexão G20 no Brasil do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Leia os textos anteriores aqui.
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Em 3 de julho de 2024, a Presidência da República enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei da Política Nacional de Cuidados (PL 2.762/2024), resultado de um Grupo de Trabalho que envolveu membros de 20 ministérios, sociedade civil organizada, academia e de governos estaduais e municipais (Câmara dos Deputados, 2024)2. Apesar da morosa tramitação do projeto no Poder Legislativo, a articulação de uma política pública de caráter nacional focada na diminuição do desproporcional “fardo do cuidado” que recai sobre as mulheres é inédita no país. A proposta também visa combater um dos principais pilares estruturantes da violência baseada em gênero, que é a desigualdade econômica.
A discussão sobre trabalhos de cuidado é uma de crescente, mas recente, relevância no plano internacional e doméstico. Esse debate, por exemplo, figurou, de uma forma ou de outra, na agenda de múltiplos GTs do G20, que nasceu tendo como eixos norteadores os problemas da economia global, mas que hoje busca discutir problemas e soluções para além do campo meramente econômico. Embora seja possível enquadrar as problemáticas envolvendo o trabalho de cuidado como um problema econômico, também é possível avaliá-lo sob uma perspectiva do desenvolvimento social justo e inclusivo, conforme explicitou a declaração do GT de Empoderamento das Mulheres da Presidência Brasileira do G20.
O diagnóstico do problema é o seguinte: as responsabilidades que decorrem do trabalho de cuidado acabam por limitar a capacidade de inserção feminina no mercado de trabalho formal, restringir as possibilidades de qualificação e, sobretudo, por limitar a independência econômica feminina. Vulnerabilidades emergem a partir do momento em que a renda familiar depende exclusivamente do(a) parceiro(a) dessa mulher presa no ciclo do trabalho de cuidado não remunerado, abrindo margem para a perpetuação das diversas formas de violência baseada em gênero e suas consequências.
A “crise do cuidado” pode ser definida como uma pressão crescente por capacidades como, por exemplo, cuidar de crianças, idosos e enfermos, bem como manter a casa e a comunidade que a habita (Fraser, 2016). Antes da pandemia de Covid-19, a chamada “crise do cuidado” já era um problema visível, sobretudo nos países do Norte Global, com populações envelhecendo e suscitando uma maior demanda por trabalhos de cuidado. Podia também ser antevista no horizonte de alguns países do Sul Global, que estavam vivenciando uma desaceleração no crescimento vegetativo de suas populações.
O trabalho de cuidado não remunerado no Brasil, como no restante da América Latina e Caribe, é executado majoritariamente por mulheres. Em estudo de 2023 do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-IBRE), verificou-se que 65% do trabalho de cuidado não pago no Brasil é realizado por mulheres, com uma dedicação semanal em média dez horas maior do que os homens durante o período 2016-2022 (21,3h para as mulheres contra 11,1h para os homens) (Duarte Kelly et al., 2023). Se adotamos uma perspectiva interseccional, observa-se, ainda, que mulheres negras sofrem com disparidades ainda mais acentuadas, com uma renda em média 71,31% menor do que a de homens brancos (Feijó, 2021)
O pós-pandemia revelou que as mulheres foram afetadas de maneira economicamente desigual em relação aos homens. Além do risco de contrair o coronavírus, muitas mulheres ainda enfrentaram uma espécie de “pandemia paralela” de violência doméstica e de aumento do volume de trabalho de cuidado não remunerado (Ahmed et al., 2022).
Além disso, as respostas à crise econômica que ocorreu em razão da pandemia também não foram capazes de mitigar ou aliviar o problema do cuidado em muitos países. Programas de austeridade forçaram a manutenção de gastos sociais sem correção para a alta inflação dos anos que se seguiram à pandemia, minando a qualidade de infraestruturas físicas e o êxito de estruturas burocráticas que poderiam auxiliar nessa demanda.
Resgatando a hipótese de Nancy Fraser (2016): o crescimento econômico sustentado depende da reprodução social, que encontra seus limites nas próprias capacidades humanas de cuidar de si e de oferecer cuidado a outros. Ou seja, o crescimento econômico, em razoável medida, sustenta-se no trabalho de cuidado não remunerado exercido por mulheres que, por uma divisão sexual do trabalho que está entremeada ao tecido social da maioria das sociedades ao redor do mundo, o exercem sem chance alguma de escapar da pobreza e ainda correndo o risco de jamais poderem se livrar de uma situação de violência doméstica.
Para se ter uma dimensão da invisibilização do trabalho de cuidado de natureza não-remunerada, é possível estimar que, se fosse reconhecida, essa atividade acrescentaria pelo menos 12 pontos percentuais ao PIB brasileiro em 2022, e teria adicionado, no mínimo, 9,8% ao produto interno bruto do Brasil no período entre 2001 e 2022 (Duarte Kelly et al., 2023).
Fonte: Duarte Kelly et al., 2023, n. p.
No Brasil, pouco se produziu em matéria de políticas públicas voltadas exclusivamente ao empoderamento econômico feminino para a superação da violência de gênero. Programas de transferência de renda condicional como o Bolsa Família possuem um impacto positivo na promoção de maior independência financeira entre mulheres de baixa renda, embora seja um impacto indireto (Bartholo et al., 2019). Iniciativas e políticas públicas de combate à violência de gênero no Brasil têm focado primariamente no aspecto punitivo dos agressores, o que é indubitavelmente positivo em um país enraizado no machismo e na violência de gênero. Essa tendência, no entanto, deixa de lado a dinâmica socioeconômica por trás da violência doméstica.
Iniciativas como a supramencionada Política Nacional de Cuidados possuem potencial para preencher o vácuo normativo que existe no Brasil em matéria de cuidados. Entretanto, o texto do PL é enxuto, sem definições concretas além da delegação de ações mais robustas a um Plano Nacional de Cuidados, ainda em elaboração. Outra iniciativa promissora, mas que também está sob os cuidados de um conservador Congresso Nacional e sem perspectivas de andamento em um futuro próximo, é o estabelecimento de um orçamento sensível à população feminina do Brasil. Isso porque o Projeto de Lei Complementar (PLP 218/2023) está parado desde setembro de 2024.
Entre caminhos de políticas públicas que poderiam mitigar as problemáticas referente ao nexo entre trabalho de cuidados não-remunerados e violência de gênero, é possível elencar a elaboração de programas acessíveis (no sentido de oferecer infraestruturas básicas de cuidado, como creches, que permitam a participação plena no mercado de trabalho) de empregabilidade entre mulheres desempregadas e de baixa renda, a instituição de um programa de renda básica universal, financiamento de coleta de dados e de pesquisas interseccionais voltadas ao estudo e ao mapeamento da economia de cuidados não-remunerados e o estabelecimento de um processo orçamentário sensível a demandas de gênero (Hoveni et al., 2024, pp. 8-9).
No sentido de construção de políticas públicas para a economia do cuidado e o enfrentamento à violência de gênero, a presidência brasileira do G20 ofereceu, ao longo de 2024, uma plataforma multissetorial e interseccional que envolveu atores relevantes da sociedade civil organizada doméstica e internacional, múltiplos ministérios, governos dos membros do G20 e organizações internacionais. O progresso da temática na arena internacional perpassa pela agenda que a presidência sul-africana levará ao G20 em 2025, e na arena doméstica, da capacidade do Governo Federal e do Congresso Nacional de negociarem o andamento, por exemplo, da Política Nacional de Cuidados e de outros projetos que versem sobre o tema.
De toda sorte, o caminho é complexo para a questão em cena. São necessárias múltiplas etapas para que se construa um framework de políticas públicas que integre a valorização do trabalho de cuidado, o estabelecimento de infraestruturas de cuidado de qualidade razoável e a oferta de oportunidades profissionais formais antes que possamos ter o empoderamento econômico feminino como ferramenta efetiva de combate à violência de gênero. Portanto, ao mesmo tempo que o avanço nas políticas públicas relativas ao tema é de grande relevância, também é preciso compreender quais são as forças históricas e socioeconômicas que movem as engrenagens da desigualdade para combatê-las com eficácia e inteligência.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta do nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
Referências bibliográficas
AHMED, Nabil et al. Inequality kills: The unparalleled action needed to combat unprecedented inequality in the wake of COVID-19. Oxfam, 2022.
BARTHOLO, Letícia; PASSOS, Luana; FONTOURA, Natália. The Family Grant Program, Female Autonomy and Gender Equity: What do national studies indicate?. Cadernos Pagu, p. e195525, 2019.
Câmara dos Deputados do Brasil. Presidente envia ao Congresso proposta da Política Nacional de Cuidados. 9 jul. 2024. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/secretarias/secretaria-da-mulher/noticias/presidente-envia-ao-congresso-proposta-da-politica-nacional-de-cuidados. Acesso em: 04 nov. 2024.
DUARTE KELLY, Isabela; CONSIDERA, Claudio; PEREIRA DE MELO, Hildete. Quanto vale o amor materno? Apenas abraços e beijos?. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2023. Disponível em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/quanto-vale-o-amor-materno-apenas-abracos-e-beijos. Acesso em: 05 nov. 2024.
FEIJÓ, Janaína. A mulher negra no mercado de trabalho. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2021. Disponível em: https://blogdoibre.fgv.br/posts/mulher-negra-no-mercado-de-trabalho. Acesso em: 05 nov. 2024.
FRASER, Nancy. Contradictions of capital and care. New Left Review, n. 100, 2016.
HOVENI, Jamela B.; KASAN, Juhi; POLETINE, Júlia; BESELGA, Mariana; SANTOS, Murilo. Challenges and Perspectives on the Intersection Between the Care Economy and Gender-Based Violence (GBV) in Brazil and South Africa. T20 Brasil, 2024.
- Graduando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (IREL-UnB), Associado de Relações Institucionais do Policy Hub for Inclusive Development. E-mail: batistamurilo6@gmail.com ↩︎
- Este trabalho é um resumo derivado do policy brief “Challenges and Perspectives on the Intersection Between the Care Economy and Gender-Based Violence (GBV) in Brazil and South Africa”, publicado pela Task-Force 01 do T20 Brasil. ↩︎
Fonte: Secretaria de Comunicação Social, “Cuidadora ajuda idoso a calçar sapato: no Brasil, quase 75% do total de postos de trabalho no setor de cuidados é ocupado por mulheres” 06 de nov. de 2023. Foto Freepik. Disponível aqui. Acesso em: 07 de nov. de 2024.