Taís Dias de Moraes[1]
13 de junho de 2024
As mulheres vêm, ao longo do tempo, se tornando mais pobres do que os homens. Por essa razão, os domicílios chefiados por mulheres representam o principal objeto de estudo a respeito desse fenômeno, por serem os mais pobres e por estarem aumentando em número ao longo dos anos. Nesse sentido, o artigo “Transformações político-econômicas e políticas públicas para mulheres na perspectiva da Feminização da Pobreza no Brasil (1995-2015)” busca trazer uma análise condições socioeconômicas desses domicílios de forma como forma de compreender tal fenômeno conhecido como Feminização da Pobreza – termo primeiramente usado por Diana Pearce, em 1978 –, a partir do entendimento de que este se dá como consequência de uma série de características próprias às mulheres e sua inserção no mercado de trabalho.
Os estudos que se seguiram tinham muitas vezes como objetivo traçar formas que as políticas públicas poderiam amenizar ou reverter esse cenário. Porém, como expõe Castro (2001), o contexto neoliberal fez com que uso da ideia de feminização da pobreza muitas vezes fosse utilizada para justificar medidas normativas compensatórias, as quais elegem um grupo restrito de beneficiários, deixando de fora uma larga faixa da população em condição semelhante.
Realmente, ao analisar o desemprego, é possível observar que este é maior entre os pobres, assim como a informalidade. É indiscutível que há uma relação de classe importante entre as mulheres, principalmente no que diz respeito às relações étnicas, remodeladas por meio das migrações femininas e da exploração de serviços particulares que fomentam a externalização do trabalho doméstico – que representa um apaziguamento das tensões nos casais burgueses, mas também processo de polarização entre as mulheres como consequência. Nesse sentido, a situação da mulher na sociedade brasileira é altamente complexa, e são vários os sistemas de dominação-exploração que atuam na diferenciação da mulher na sociedade capitalista (gênero, raça e classe). É necessário, dessa forma, que a análise desse objeto explicite também as formas de interação entre estes sistemas já que, na realidade, eles operam juntos e, por isso, devem ser analisados na sua globalidade (SAFFIOT, 1987).
Porém, essas diferenciações não podem ser usadas de forma a enfraquecer o sistema de proteção social ao defender políticas focalizadas, típicas do neoliberalismo, em detrimento de políticas universais. Isso porque, mesmo que haja diferenças importantes entre as mulheres, ao medir a desigualdade na população economicamente ativa, é possível observar que a taxa de atividade, assim como a jornada de trabalho, é maior para as mulheres no geral, sejam elas pobres ou não-pobres. Dessa forma, Lena Lavinas (1996) e Mary Castro (2001) são exemplos de pesquisadoras que defendem políticas públicas universais, que procuram reduzir a pobreza de todos, e não apenas de grupos específicos, sem que se deixe de considerar as diferenciações e intersecções entre gênero, raça e classe, que devem ser analisadas e consideradas na projeção e implementação de programas governamentais.
Entretanto, com a diminuição do papel do Estado frente ao mainstream neoliberal de políticas fiscais e monetárias a serviço da estabilidade financeira, a atuação do Estado para combater as desigualdades fica fortemente limitada. E as regras fiscais de controle de gastos não financeiros da União penalizam, principalmente, os grupos mais vulnerabilizados: negros, mulheres, indígenas, quilombolas e empobrecidos (BEGHIN, 2021).
Políticas como programas de privatização e flexibilização afetam a classe trabalhadora como um todo, mas atingem de forma especial as mulheres e os domicílios chefiados por elas dada a divisão sexual do trabalho e a inserção ocupacional precarizada e desigual. Além disso, as mulheres sofrem de forma particular com a perda de serviços públicos – como saúde, educação e segurança social –, visto que recai sobre elas a carga maior de trabalho doméstico e de cuidado, resultando muitas vezes na acumulação de uma dupla (ou até tripla) jornada. Nesse sentido, entende-se que as políticas públicas e sociais devem ser discutidas considerando tanto o combate à pobreza quanto a luta por igualdade de gênero, assim como a busca por justiça racial.
E, apesar dos enunciados aparentemente progressistas da iniciativa privada – em meio a evolução do neoliberalismo –, que frisam a importância do empoderamento e da diversidade em seus discursos, continua-se a reproduzir os mesmos ambientes e relações econômicas que reforçam o neoliberalismo conservador e a desigualdade de gênero e raça (MORENO, 2017). Por isso, a questão do neoliberalismo deve ser discutida quando tratamos de tal tema, dado que o processo de informalização da economia, principalmente nos países da periferia, aprofundado com a globalização neoliberal, liga-se à persistência da pobreza entre este setor importante da população representado pelas mulheres (BENERÍA, 2003).
Além disso, entende-se que os avanços sociais, seja por políticas públicas ou programas sociais, são essenciais para que a situação de pobreza e vulnerabilidade da mulher chefe de domicílio e, consequentemente, de sua família seja revertida ou, ao menos, amenizada. Por essas razões, um estudo a respeito das políticas e dos programas sociais adotados pelos governos é essencial, de modo também a observar como esses interferiram na situação desses domicílios e comparar os cenários nacionais. A análise dos diferentes cenários políticos na perspectiva da feminização da pobreza, é essencial para o entendimento das raízes da desigualdade e vulnerabilidade que atingem esse grupo populacional, de forma que torne possível também elaborar e avaliar as possíveis políticas públicas para mulheres, sempre considerando a realidade brasileira – visto que o país se encontra inserido no contexto internacional e neoliberal de globalização, o que limita a ação de um Estado de país periférico.
O “ciclo vicioso” das políticas de austeridade, defendidas pelo neoliberalismo, só seria interrompido se o aumento das exportações fosse suficiente para compensar a retração acumulada da demanda interna, pública e privada. Porém, essa situação é pouco provável com a lenta recuperação da demanda, maior competição pelos mercados e o crescimento do comércio exterior menor do que o PIB mundial já deprimido.
Nesse sentido, como é possível observar no gráfico abaixo, no período entre 1995 e 2015, no Brasil, o governo Lula (em comparação aos governos de Fernando Henrique Cardoso e Dilma) parece ter sido o que mais obteve resultados na questão da distribuição de renda, –considerando que os efeitos de políticas se dão ao longo do tempo e não imediatamente. Isso não só pelo cenário internacional favorável ao crescimento da economia brasileira, mas também pela adoção de políticas anticíclicas e pelos investimentos em proteção social e políticas públicas. Porém, mesmo com essa melhora, a diferença entre as famílias chefiadas por homens e mulheres continuou a aumentar em favor dos primeiros – que, persistentemente, mantêm uma melhor condição quanto aos recursos financeiros, confirmando o fenômeno da feminização da pobreza.
Por essa razão, a ampliação de serviços públicos também é essencial para a proteção dos domicílios chefiados por mulheres, de forma que elas consigam ter acesso a serviços básicos de reprodução da vida, principalmente frente à alta vulnerabilidade das mesmas no acesso a postos de trabalho e, consequentemente, na obtenção de renda. Essa ampliação, porém, requer combinação de recursos e mecanismos de gestão e controle social como parte integrante da estratégia do país.
Além disso, ações como o Plano Nacional de Políticas para as mulheres (PNPM) ou a Lei Maria da Penha – implementadas/sancionadas durante o governo Lula – são essenciais no estabelecimento de um patamar mínimo de direito à vida das mulheres, mães e chefes de família pobres nesse país. É por meio de comprometimentos como esses que se cria precedentes para a luta do direito das mulheres em todos os âmbitos e ambientes, inclusive juridicamente. Ações como essas devem ser ampliadas e continuamente atualizadas perante as novas discussões acerca do tema e, consequentemente, contínua evolução. É preciso também que medidas como essa sejam amplamente divulgadas.
A questão é: tratar o combate à feminização da pobreza é lutar contra a exclusão social, o que só é possível com o crescimento econômico, com aumento da produção e do emprego, com esforços para a democratização e com a melhoria da educação. Para isso, é preciso enfrentar políticas neoliberais e lutar contra a reprodução continuada da pobreza e da desigualdade social, entendendo que o Brasil carrega uma dívida com sua própria população em reverter a situação de pobreza que foi imposta a grande parte dos brasileiros por séculos. Sem políticas de gasto social, de serviços públicos e de redistribuição de renda não se supera a pobreza. Não será o mercado, nem o neoliberalismo, com suas políticas focalizadas e restritas, que irão reverter essa situação. É preciso de uma força direcionada nessa direção, força suficientemente abrangente que faça com que as instituições, a representatividade e os recursos dentro do país estejam comprometidos com um fim comum de luta pela igualdade social e econômica.
No mesmo sentido, sistemas de opressões para além do machismo também devem ser encarados como limitantes de uma mesma estrutura. A violência contra a população negra e periférica, por exemplo, limita o desenvolvimento e a luta contra a pobreza, já que o encarceramento em massa de jovens negros, assim como o alto índice de assassinato deles, destrói famílias e desestabilizam qualquer estrutura – familiar e social – que esses homens uma vez fizeram parte, inclusive pelo desamparo às famílias e filhos.
Ou seja, é importantíssimo colocar no debate a luta interseccional das mulheres, a fim de entender e valorizar a luta contra opressão que cada grupo social dentro do feminismo nos traz. Cada grupo dentro da população feminina se encontra num lugar social diferente e sofre opressões diferentes, por isso é importante também dar voz, por exemplo, a mulheres negras e mulheres da periferia. Todas essas lutas são essenciais para o enfrentamento de políticas neoliberais, caso contrário, o combate às estruturas machistas fica restrito aos grupos mais privilegiados entre as mulheres, brancas e de classe alta e apenas no mercado de trabalho mais “moderno” e especializado.
Em conclusão, para o confronto e reformulação das políticas neoliberais vigentes, que tanto afetam as chefes de famílias pobres, é preciso que se dê voz a essas mulheres, lhes concedendo a possibilidade de escolha, empoderamento sobre seus corpos, acesso a direitos básicos, inclusão igualitária e oportunidades. Só os que foram privados de condições básicas de vida e dignidade conhecem a verdadeira gravidade de tal desumanidade e o privilégio daqueles que as têm; sabem que direitos básicos não são dados, mesmo que estejam previstos em leis, mas devem ser reivindicados e ampliados para parte significativa da população. O que alguns nunca nem pensam a respeito, é motivo de preocupação diária para muitos. Se tivermos apenas pessoas que acumulam privilégios dirigindo o país, as prioridades estarão no lugar errado. Como disse Carolina Maria de Jesus (1963): “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças”.
* Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
BEGHIN, Nathalie. “A face racista e patriarcal da ‘austeridade’”. Outras Palavras, 2021. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/a-face-racista-e-patriarcal-da-austeridade/. Acesso em: 12 de janeiro de 2022.
BENERÍA, Lourdes. Crisis de los cuidados, migración internacional y políticas públicas. El trabajo de cuidados. Historia, teoría y políticas, p. 359-389, 2011.
CASTRO, Mary Garcia. Feminização da pobreza em cenário neoliberal. Mulher e trabalho, v. 1, 2001.
JESUS, Carolina Maria de. Pedaços da fome. Editôra Aquila, 1963.
LAVINAS, Lena. As mulheres no universo da pobreza: o caso brasileiro. Estudos Feministas, v. 4, n. 2, p. 464, 1996.
MORENO, Renata Faleiros C. Ameaças do avanço neoliberal e conservador sobre a vida das mulheres. Anais do Encontro Internacional e Nacional de Política Social, v. 1, n. 1, 2017
PEARCE, Diana. The Feminization of Poverty: Women. Work and Welfare, The Urban and Social Change Review (Special Issue on Women and Work), v. 11, p. 28-36, 1978.
SAFFIOT, Heleieth I B. O poder do Macho. 4.ed. São Paulo: Editora Moderna, 1987.
[1] Cientista Econômica pela Universidade Estadual de Campinas. Mestranda em Desenvolvimento Econômico, Área Social e do Trabalho, no Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. Assistente de pesquisa na Rede A Ponte e pesquisadora no Núcleo de Pesquisas sobre Mercado de Trabalho e Pessoas com Deficiência (NTPcD) do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT – UNICAMP). Email: t187260@dac.unicamp.br