Lucas Gabriel Feliciano Costa[1]
30 de abril de 2025
Este texto surgiu e ressurgiu, foi escrito e reescrito. Quando de sua composição, em 2022, redigi uma versão que me serviria como elemento pré-textual da minha dissertação, faria as vezes de “agradecimentos” com o título Uma carta do supramundo, ou Agradecimentos acompanhado da epígrafe: “Às pessoas intemporais da minha vida. Obrigado pela presença e pelos livros na mesa”. Meu objetivo era dar graças a todas aquelas e aqueles que me acompanharam, ofereceram suporte e me ensinaram algo durante a feitura da minha dissertação. Após a última revisão da dissertação, por motivos formais, o conto passou de “agradecimentos” a “anexo III”, rebaixado a penduricalho e texto de brinquedo, mas por fim colocado em lugar adequado para salvaguardar a preciosa convenção daquele gênero acadêmico.
Quase três anos depois, em meados de 2024, enquanto professor substituto numa instituição federal ministrando a disciplina de “Fundamentos Sociológicos da Educação” em um curso de licenciatura, tratávamos, as estudantes e eu, da relação entre educação e trabalho. Uma das estudantes da turma me perguntou como tinha sido a minha trajetória de formação e como era a realidade de trabalho de alguém da minha área, a Sociologia. Com um tom grave e pesaroso, respondi que, para mim, pessoalmente, havia sido a pior-melhor coisa que tinha me acontecido na vida até o momento, mas não dei maiores explicações. Prometi que responderia com carinho na aula seguinte. E assim o fiz. Motivado pela pergunta, busquei por esse texto e fiz uma segunda versão dele, mais literária e totalmente desvinculada das pessoalidades que seu caráter anterior pedia. Abri a aula fazendo menção à pergunta e lendo o conto. Em seguida, discutimos todos os temas vistos até o momento na disciplina e que de alguma forma subjazem ao conto: a diferença entre educação como processo social e educação como processo de escolarização; o sistema escolar; a relação entre escola, formação e sociedade; a causalidade circular entre capital cultural e capital financiero; lutas por reconhecimento e distribuição; e, finalmente, educação e trabalho.
Não está no propósito desta introdução apresentar e avaliar alguns problemas latentes, e outros crônicos, da formação e prática profissional das Ciências Sociais, e, em específico, da Sociologia, tomada pelas modas temáticas (teóricas e de pesquisa), pelo financiamento insuficiente e mal ou inadequadamente distribuído (em forma de bolsas de pesquisa, ensino e extensão para graduação e pós-graduação) e outros elementos mais que o bom senso e o medo do ostracismo e o impedimento de acesso a capital específico dentro desse campo científico me inibem de apontar, mas que estão sublimados também no conto.
Continuando a resposta à pergunta da estudante: se ocupação é, para Howard Becker, aquilo que alguém faz para ganhar a vida, nunca fui sociólogo e pouco fui professor. Boa parte da minha vida profissional passei ocupando-me de outras atividades para poder viver e, só então, fazer Sociologia. E, como Pierre Bourdieu ensinou, se ocupação é uma das características mais importantes para identificação da posição social de um indivíduo dentro do espaço social e caracteriza alguns aspectos de seu habitus de classe, eu não tinha posição social definida, nem identidade possível, se me apresentava como “pesquisador” ou “sociólogo”, e enquanto não “era” professor, envergonhava muito nomear-me outra coisa. Era um acúmulo inútil de capital cultural institucionalizado e incorporado sem conversão ao capital financeiro. Parecia não haver nem reconhecimento, muito menos redistribuição, como propôs Nancy Fraser, para mim.
Resultado: disse a ela que a Sociologia me deu a capacidade de andar por esse mundo como quem anda com um mapa, isto é, melhor orientado sobre os possíveis caminhos a se tomar pelas trilhas da vida social, mas que ela também me dava lições muito duras, e uma delas é que existem pessoas que não tem direito a sonhar, a seguir seus projetos, o que no nosso caso seria ter a possibilidade de seguir uma carreira de sua escolha com sucesso e realizações, não por incompetência, incompatibilidade ou pouca destreza, mas sim porque aquela carreira enfrentaria problemas que estariam fora do controle do indivíduo, que estaria no (des)controle de instituições e outras coletividades do social. E encerrei dizendo algo que, reconheço, não foi agradável de ouvir ou falar. Foi algo como: “nem todo mundo aqui vai viver seus sonhos. Às corajosas e aos corajosos que tentarem, saibam, pode ser que isso lhes custe muito mais caro do que vocês consigam bancar. Então, cá entre nós, mais como trabalhador (sem herança ou costas quentes, sem QI[2] ou nome de bacana) e menos como professor, defendam a sua forma de ganhar a vida a todo custo e construam meios para que vocês possam sonhar. Isso significa adotar uma postura maniqueista e utilitarista para com a vida? Não, definitivamente não. Eu diria que é mais uma tentativa de sobreviver para, quem sabe, depois, começar a viver.”
Mesmo com a bomba de frustração e pessimismo estourada, aquela aula e aquele conto apertaram e embelezaram o laço afetivo entre a turma e eu. Em todas as minhas aulas seguintes, mesmo nas sextas-feiras à noite, eu era recebido com o carinho e real entusiasmo de uma turma cheia que me permitiu viver um pequeno sonho.
Boa leitura!
*
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada […]
Para mim só um grande, um profundo […]
Cansaço…
“O que há em mim é sobretudo cansaço”, Álvaro de Campos
Estimado pesquisador,
Ainda é estranho esperar pelas missivas e paquetes que me chegavam com frequência, quase sempre pela tarde numa perua amarela do seu Tião, com um bigode grosso na cara e sotaque tropeiro nos lábios. Ao receber as grossas brochuras, algumas encomendadas, outras chegadas de remetente desconhecido, junto a contas e convites, descansava a tralharia no batente da porta de entrada para poder apertar a mão do fiel carteiro da região. Tião agradecia e se despedia religiosamente do mesmo jeito: “brigado ocê, dotor Carpô”. Era como ouvir o acorde fundamental ao final de um movimento sinfônico tenso, necessário e sem surpresa. No entanto, cá no céu nada se envia, nada se recebe, mas tudo chega e tudo vai, só não em papel cartão, envelope pardo ou com tinta sobre o almaço. Geralmente recebemos notícias sem querer, somos agitados por estímulos exteriores e inesperados que nem ensaio de laboratório em fotorreação. No meu caso, tenho acompanhado seus pensamentos e rotina há algum tempo, desde quando você leu curioso e impaciente as primeiras páginas da introdução à minha História da Literatura Ocidental. Naquele dia, um canal de comunicação entre nós se abriu e não sei bem dizer o motivo.
Sua cabeça é barulhenta. Distinguir os sons e ruídos intencionais dos estouros, não pouco frequentes, lá dentro foi meio difícil num primeiro momento, mas depois que se lê Goethe, interpreta Graciliano Ramos e analisa uma partitura de Beethoven, tarefas difíceis deixam de assustar, ainda mais quando o tempo não corre mais. O mundo intemporal tem suas vantagens, realmente aqui desistir não é uma opção, até porque não há bem motivos para fazê-lo quando não se tem o tempo, nem o dinheiro, regendo a existência. Naquela cabeça cheia e vulgarmente inconstante achei uma ocupação diferente da leitura dos livros: ler mentes passou de um poder fantástico a uma fantástica realidade no meu pós-vida.
Não vou construir um relato longo das muitas coisas que vi em sua cabeça, não quero ocupá-lo com seus próprios pensamentos. Antes quero contar-lhe que acabo de ler sua dissertação e devo dizer que o resultado me impressionou, não só pelo que você conseguiu concluir nas condições em que o mundo viveu desde sua entrada no mestrado, mas também porque pude ter o prazer de acompanhar pela primeira vez daqui de cima a composição de uma obra. O processo me interessou mais que o último ponto final do texto, já que é o processo mesmo o responsável pelo conteúdo de todas as obras, até das mais volumosas e medíocres, adjetivos que você usa para qualificar a sua (e dos quais discordo).
Ainda prefiro a singeleza e rapidez dos contos de Clarice Lispector e de Machado de Assis, que contêm o mundo, ou da contundência dos versos de Antonio Machado, Manuel Bandeira ou Drummond de Andrade, todos reflexos do meu amor à concisão que, suponho, cativei em você. E por aqui começo.
Nas poucas páginas de texto que seu manuscrito final guardou, vi um esforço crescente de alguém que precisava dar provas de certeza do que sabia, antes a si mesmo que para os outros. E isso é um motivo melódico-rítmico no seu texto composto com figuras longas e notas graves, com alguma frequência caminhando em notas conjuntas. Suas formas prediletas de composição do texto são a binária simples, o tema com variações e grandes corpos em seções livres, ensaios mesmo. Seu argumento é ostinato, que se faz presente e compreendido pela repetição.
Aliás, a repetição é a sua obsessão, e talvez por isso a forma e a duração de suas páginas sejam tão inconstantes, como é seu autor: um primeiro extremo, os ensaios e artigos são longos e pesados, adensam-se até a última linha, sem descanso para a mente, mas martelando constantemente uma proposição e colocando em evidência o mote dos argumentos. É quase impossível se perder no capítulo dois, por exemplo, não há descanso para quem lê, não há muito espaço para variações, as notas são sempre as mesmas: representações sociais, relações sociais de sexo, individualização, trabalho, poder. Em textura predominantemente homofônica, você constrói ali grandes colunas sonoras que fazem cadências simples (quando existentes), mas o resultado sonoro é sempre duro, um empilhar de quartas, quintas e oitavas. É lindo, apesar de carregado e de conclusão simples, ainda que válida e, a meu ver, correta. No outro extremo estão as peças em tempo andante e allegreto (mas nunca em allegro ou vivace porque de pronto percebi que seu mundo não é agitato; aliás, é andante, quasi-grave), mais curtas e com maior desenvolvimento horizontal. Essas peças-texto cativam a atenção pelos enlaces que realiza entre diferentes referências e potentes explicações e justificativas das escolhas e conclusões que faz. Eu diria que são polifônicas, às vezes fugazes, outras em corais breves, mas você ainda não aprendeu contraponto, nem pesquisar sobre “teoria pura”. Ainda assim, no texto, você sabe manipular os materiais dos quais dispõe, e importar os que também quer, e construir cadências (aqui sim, existentes) interessantes e com conclusões potentes. Sua maior fraqueza nesses casos é, seguramente, o formalismo e um rigor limitador, que impossibilita o pensamento e trava as ideias. Muito apegado à necessidade de mostrar de onde vem seu pensamento, perde-se e estanca durante os momentos de escrita. Preocupa-te menos o ritmo e a persecução do descanso das tensões e mais o movimento das vozes, e isso te toma muito tempo. Felizmente, esses textos são mais fáceis e rápidos de ler, como é a seção 2 do capítulo 1. O leitor não recebe o sangue da expiação silenciosa que vi escorrer da sua mente.
Há no seu texto uma vontade de colocar o mundo, o seu mundo, o seu saber e interesse em poucos parágrafos. As peças, longas e duras, movimentadas e mais variadas, são sempre concisas, em conteúdo e ideias. Mostram com pouco recurso, ou em pouco espaço, com precisão e com palavras suas, o que você quer dizer, propor, concluir; como entendeu, compreendeu e interpretou documentos, textos e contextos. Não nego que uma centelha da vaidade me aqueceria o coração encarnado de dantes se lesse suas expressões de admiração e apreço escritas com o rosto ao ler alguns ensaios meus, especialmente aquele sobre Os contos de Machado de Assis. Não entendi bem se era admiração pela descoberta e aprendizado, fascínio pelo estilo da pessoa autora ou uma projeção meio sádica que comparava seu estado atual de formação às ideias e conhecimentos ainda tão distantes de si que eu mostrava ter naqueles textos. Seu semblante era doce e doloroso, como é o seu texto, mas sempre conciso e deciso, dizia o que queria, em voz própria e sem desenvolvimentos ou acessórios que lhe pareciam impertinentes (mas nunca innecesários).
Sua dissertação mostrou muito o desejo de conter um inventário de saber na alma para mobilizar o que quisesse, quando quisesse e falar tão somente o necessário a cada nova proposta de pesquisa. Bom, era essa, ao menos, a descrição que sempre aparecia na sua fala ao comentar um texto meu com um de seus grandes amigos. Sempre vinha um “eu queria ser assim” pesaroso e imaturo para concluir suas palavras elogiosas que relatavam copiosamente meus argumentos ao amigo. Imagino que foi durante a conversa mais interessante que tiveram, esse seu amigo Alexandre e você — da qual participei pelos temas de meu Caminhos para Roma — que percebi a força da influência que aquele com nome de rei macedônio teve e tem em seus processos e conclusões. Não só ele, havia outros nomes que diariamente lia em seus pensamentos. Impressiona-me que haja redes ainda, mesmo que escondidas no berço das privacidades e nas periferias dos campos científicos, sem reconhecimento nem redistribuição (promessas meio vazias que você parece hoje desacreditar, mas não nego que isso me cheira mais a ressentimento e frustração, e menos a ceticismo), redes fortes de relação e influência mútua no espírito das pessoas que amam o conhecimento, ainda que sem prestígio. Ocupo-me de falar da sua. Mas não antes de fazer algumas notas sobre a sua metodologia de trabalho.
Começo com uma pequena máxima vinda do fundo da minha experiência como pesquisador. O que te deixo, além de minha obra, é um conselho: seja mais constante nos projetos e estudos e escreva mais. Você tem ideias potentes e boas propostas de trabalho, de vida, de arte. No entanto, sua memória se provou uma traidora; e sua vida de trabalho desagradável e de (alguma) privação não a impulsionam. Então, pare o quanto antes de anotar ideias e compor textos na caderneta da cabeça por… que… co-mo… n… u.. m.. so-pro… e-las… se… per-d…
*
— Ou… ou… bóra, o ponto tá chegando! Falou Alexandre chamando o amigo enquanto se levantava do assento da última fileira do ônibus que ganzava milagrosamente vazio.
O jovem piscou forte e repetidamente por alguns segundos, pelo visto havia ficado com os olhos abertos por muito tempo sem perceber. Guardou na mochila o calhamaço que tinha sobre o colo. Levantou-se rápido e grudou a bolsa preta e pesada nas costas, a costumeira carapaça que lhe acompanhava.
— Quê que cê tava lendo? Karpéuks, é?
— Nada, moço. Era Jane Austen, Sense and sensibility, articulou o rapaz orgulhoso de seu sotaque inglês quase emulado de um vídeo de notícias da BBC.
— Só se fô um Sénsibílitchi mesmo, exibido, redarguiu com o violento carinho que lhe era peculiar. E acrescentou:
— Mensch, du bist so billig.
— Vete a la mierda, anda ya. A bajar del autobús, bestia, respondeu rindo para esconder a ignorância do alemão que não entendeu, como sempre, nos dois passos que deu para fora da lataria barulhenta que os deixou na parada já conhecida. Plá, plá, vruuuuuum…
— Como foi a defesa? Perguntou Alexandre enquanto caminhavam rumo à antiga casa da família do outro. Era dia de festa lá por ocasião da recuperação de sua mãe, após anos internada por um mal sem nome que acometeu a mulher. Somava-se ao festejo a despedida de Alexandre da família e dos amigos pois estava de partida para outro país na semana seguinte para tentar a vida, já que os muitos diplomas e idiomas que conquistara não estavam sendo suficientes para consegui-la por aqui. Sua companheira já estava lá, além mar, e mais cedo falara com os dois por telefone e mandou no mais lindo som espanhol “abrazos y buena suerte” ao mestre recém-formado.
— Como um dia qualquer. Acho que a melhor parte foi quando acabou. Como tudo acabou. Acabou texto, acabou vínculo, acabou a universidade (ao menos como aluno, pensou consigo), acabou dinheiro.
— Moço, quer realização maior que o realizar mesmo do trabalho? Acabou nada, concluiu. Cê foi ótimo, e eu sei que você sabe disso, só não consegue admitir.
O outro respondeu apenas indicando com a mão direita a rua em que desceriam, ao lado de um velho hospital, enquanto apertava as lágrimas com o punho esquerdo cerrando os próprios dedos, contendo a emoção. Conteve também palavras e choro por um instante. A rua continuava feia e suja como de costume, mas os ventos sopravam reconfortantes no cabelo longo do rapaz acompanhado do amigo-irmão. Finalmente, as palavras receberam liberdade:
— É, cê tá certo. Mas, xeu te falar um negócio procê: quase que não sai o nome do Hugo de Carvalho Ramos lá na hora que fui ler um trecho do que cê me mandou. Quis morrer de forma trágica, que nem ele, mas não podia ainda. No começo eu tava parecendo que acompanhava um cortejo. Um colega que assistia à defesa me falou no intervalo da banca que minha cara tava de morte mesmo, por mais que a fala tava ativa e atenta. Fiquei preocupado e perguntei pra ele na hora. Ele disse que falei bem. Mas, na hora de ler o maldito trecho, pra fechar os agradecimentos, quem disse que saía, tartamudeei.
— Só tenho duas coisas pra te dizer: ri-dículo. Só você pra usar o verbo “tartamudear”, seu anacrônico. Mas deixa eu te falar, meu jovem — modulando a voz depois das risadas — acho que é isso mesmo. Concluir algo é sempre assustador. E é porque logo em seguida algo novo precisa começar. E que bom que você pôde ir até o fim, teve bolsa, apesar da pandemia e do pandemônio que a gente viveu. Ainda bem que a instituição de fomento ainda pôde te fornecer o subsídio, ainda bem que a universidade é uma instituição muito responsável. As coisas poderiam ter sido piores e que bom que só foram mais ou menos ruins, com pandemia e pandemônio em desgoverno. Logo cê vai estar em outro início de algo, e aí é aproveitar tudo, o caminho. Porque, assim, nóis que escolheu ser professor e cientista nesse brasilzão de meu Deus, é assim mesmo, demora pra gente conseguir nosso sustento e manter nossas paixões. Na nossa vez ninguém avisou que nascer, crescer e viver como pobre e seguir nossos sonhos não é combinação boa, mas eu acho que consegui. Agorinha é você conseguindo também.
— Pois é, maninho, mas como que eu vou fazer pra pagar as contas? Os caras lá do estágio que eu passei não me chamaram até hoje.
— Moço, cê não tá sozinho. Cê tem família, cê tem nóis. Cê ajudou a gente, a gente te ajuda. Fome cê não passa.
Pausa pra atravessar a rua.
— E aproveito pra te agradecer suas correção do texto final e dos “agradecimentos” (falou fazendo as aspas com os dedos). Os povo da banca elogiou umas coisas que nóis discutiu sobre o capítulo três, especialmente as partes sobre Lima Barreto, e realmente, cê tinha razão: ‘ranquei as parte de crítica e denúncia do pessoal da faculdade e dos departamento de pós que eu andei, das coisa que eu passei na graduação e no mestrado… foi a melhor coisa. Evitei briga e indisposição com o povo de lá; coisa que Lima Barreto não fez. Até porque, quem eu queria que lesse aquilo jamais vai ler uma página minha, disso eu tô certo. Aliás, acho que nunca serei lido. Então, deixei só meus elogio e carinho pra galera mais legal da faculdade, as tia da limpeza, as técnicas e os fessores que eu gosto.
Modulando a voz, o tom mofoso das primeiras palavras deu lugar a uma resposta aliviada do amigo-irmão:
— Até que enfim você me escutou, pelo menos uma vez na vida eu vou ter visto esse senhor não caçando briga com gente que tá fadada a vencer. Jovem, esquece esse povo. Deixe seus coleguinhas e os “super acadêmicos” continuarem vivendo as hipocrisias e contradições deles. Quando nóis for professor universitário, vâmo tentar ao máximo não repetir algumas besteiras que as regras do jogo obrigam fazer, nem repetir as maldade e as idiotice que fizeram com a gente. Ou repetir, se necessário. Você mesmo me ensinou isso que vou te dizer, baseado num monte de palavra difícil dum tal de Bourdieu: pra gente como a gente, mais importante é defender nosso ganha-pão, nosso sustento. Vamos ter que dobrar a língua, baixar a cabeça mais vezes que alguns outros por aí. Não importa quanto nóis sabe, quão preparado nóis seja, a gente ainda não tem poder pra mexer nas regras do jogo, muito menos costas quentes pra arriscar demais; nada que fazemos fica impune ou sem vigia. Só isso. Mas, ó, parabéns, de novo, viu? Que bom que cê evitou problema e quem sabe deixou algumas portas abertas. —“puf…” fez o outro com desdém e sorriu amargo. Ale segue: — Ah, cê me desculpa por não ter ido, só que eu não tô nem aí pro que cê acha, porque nem no meu casamento você foi, então, estamos quites.
— A velha mania de me jogar as coisas na cara, né? Ainda colho os frutos podres que plantei naquela temporada de depressão. Mas, relaxa, moço, cê já tinha avisado que não ia. Paia é que cê tinha que dar aula na hora, mas também, né, 9 horas da manhã, quase ninguém de nóis podia. Aí, quando acabou, por volta do mei’dia, eu voltei pra casa pra deixar uns documentos e o computador e almoçar. Dormi depois de dar uma chorada de desespero. Só nóis que tá chegando agora, eu acho. O pessoal disse que vem mais tarde. Ainda bem que nóis ia tomar o mesmo ônibus.
— Eu não tomo ônibus nenhum, seu cretino. Ironizou aos risos fazendo a mesma piada de sempre com o maldito hábito de deturpar verbos que tinha aquele homem triste e alto, adjetivos que ele carregava consigo depois de morrer em um conto de Clarice.
A gargalhadas, o jovem dos cabelos longos devolveu a piada com um sorriso sincero de quem ia terminar a noite de um dia qualquer de um mês desimportante na casa dos pais com seus seres mais amados. Mas ainda era preciso terminar o exame de consciência que o recém-mestre havia começado meses antes da defesa. De la nada, abre-se uma sessão de autoanálise. O ritmo da caminhada diminui, a intensidade dos sentimentos aumenta. O carácter é tempestuoso. Cadenza:
— Cara, não fiz a dissertação que me propus fazer, não tem sangue e suor de trabalho ali, tem sangue e lágrima de dor. Não fiz o melhor que pude, nem o que pude de melhor. Apenas fiz. Nada mais. Num trabalho sobre mulheres musicistas, veja só, esperava-se um pouco mais de música em seu conteúdo. Meu trabalho não tem nada de nada. É mais sociológico do que precisa ser, é menos literário do que eu gostaria que fosse. Não é nada erudito como esperei, é menos musical como desejei. É só mais um. E… (Ale tenta interromper o solo improvisado, sem sucesso). E além do que eu descobri tarde o quanto errei, por ação ou por omissão, naquela faculdade. E sobre isso, nóis já conversou antes de eu entregar a dissertação, então não tem mais o que dizer. Você já sabe o que aconteceu. Arrependo-me todos os dias de ter escolhido esse caminho, eu queria ser feliz, trabalhar com o que eu gosto e viver em paz, mas parece que nem isso sou digno. E nem na universidade, esse mundo que tanto amo, há lugar pra mim.
Pausa para atravessar o cruzamento e tomar a próxima via à esquerda. Retoma sua peça solo confusa pela metade e com compassos em branco, mal escritos. Ale teve dificuldade de ouvir o amigo que vinha um ou dois passos atrás, depois de parar um instante para tirar carrapichos da barra das calças. Não que fosse a distância o problema, mas Ale ouvia mal e um caminhão passava na rua de cima e somava o barulho de seu motor e buzina, fon fon!, aos do bar com tlim tlim das garrafas e copos, somada a o som roco das vozes e de uma jukebox velha, que ficava a poucos metros de uma igreja em que alguém berrava com em um microfone, rivalizando com o mundo pela a atenção dos céus. Do que conseguiu escutar, a peça parecia anunciar seu final:
— … A verdade é: fui pro sertão, e fui armado. Quando construí uma fortaleza e baixei as armas, os muros já estavam altos demais, as pessoas já não conseguiam me ver depois do trabalho do tempo. Além do mais, mesmo virando gente, meu tom de voz e a minha incapacidade de pensar com a cabeça do outro me fazem de um sociólogo amante da teoria relacional que não entendeu ainda como funcionam as mais básicas relações na minha própria vida, da academia, do mundo público e privado. Perdi.
Última quadra, quase no destino, silêncio do solista. Ale responde impaciente o amigo sensibilizado, insensível a si mesmo. Mesmo sem ouvir toda a longa palestra, sabia do que ele estava falando. Coda:
— Jovem, parou. Já passou. Cê já errou, lide com isso. E não perdeu não, virou gente e nós hoje vemos isso. O que cê tem que largar de mão é de ficar escondendo essa humanidade que te escapa pelos dedos quando você tá perto da gente, com a gente, seus amigos. Quanto aos problemas da faculdade, ou das faculdades, não discordo, mas nada podemos fazer pra mudar, apenas não repetirmos essa besteira quando for a nossa vez de estar lá, se a gente conseguir, claro, coisa essa que te falei agorinha. De resto, te falta tato. Faz diferente daqui pra frente. Todos os lugares e pessoas são hostis quando se trata de lutar por prestígio e grana, e você sabe muito bem disso. Pronto.
Chegaram, fim de tarde, início de noite, casa de esquina à vista num bairro de nome comum. Depois de uma pausa abrupta, a barra dupla anunciava uma mudança de tom enquanto os dois atravessavam a última rua antes do destino. Alexandre, como quem quer uma resposta curta e rápida, pergunta baixinho diante do portão:
— Vai fazer o que pra nóis? Acrescentou Alexandre bem rápido para dissipar a gravidade da conversa anterior.
— Prometi arroz carreteiro pro meu pai.
Ale entra primeiro a pedido do amigo que, ocupado com a cadelinha que os recebera e logo lhe subiu aos braços, se demora olhando pro céu no poente rabiscado de fios de energia e de telefone dos postes. Retira a máscara do rosto meio úmido de suor e lágrimas, cheira com carinho o pescoço do animalzinho de pelo branco, suspira um “oi”. Para o céu púrpura e alaranjado que anunciava uma noite amena, diz “obrigado” em silêncio por todas as suas estrelas.
*Este texto não representa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC. Gosta de nosso trabalho? Apoie o Boletim Lua Nova!
[1] Doutorando em Sociologia (PPGSol/UnB); E-mail: lucasgfc.lg@hotmail.com; Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4915542141356819
[2] “QI”, expressão para “quem indica”, ou, como coloquei em aula naquela ocasião, uma das expressões de lucro resultado de investimento e uso do capital social.
Fonte imagética: Fotografia de Andrea Davis disponível em Unsplash, acesso em 23 abr. 2025.