Murilo Calafati Pradella[1]
Esse trabalho representa o primeiro estágio de uma pesquisa que se propõe a analisar quais seriam os possíveis impactos para a democracia brasileira caso o voto deixasse de ser obrigatório e se tornasse facultativo à luz do conceito de Poliarquia desenvolvido por Robert Dahl. Isto é, a abolição da obrigatoriedade do comparecimento eleitoral contribuiria ou não para o desenvolvimento da democracia Brasileira rumo ao ideal poliárquico desenvolvido e discutido pelo autor?
“Poliarquia: Participação e Oposição” é uma obra fundamental escrita por Robert Dahl, um dos mais proeminentes cientistas políticos do século XX. Publicado em 1971, e traduzido para o português em 1997, a obra oferece uma análise abrangente e minuciosa do conceito de poliarquia como forma de regime político, além de explorar os requisitos e características fundamentais da democracia.
No cerne da obra está uma análise profunda do conceito de poliarquia como uma forma de regime político que enfatiza a descentralização do processo decisório e a competição política aberta e inclusiva entre múltiplos atores políticos. Dahl destaca os pilares fundamentais da poliarquia, que incluem a liberdade de associação, eleições justas e livres, liberdade de expressão e acesso a fontes alternativas de informação. Além disso, ele argumenta que uma democracia saudável não se limita apenas às eleições, mas também implica a proteção dos direitos civis e políticos de todos os cidadãos. Esses elementos combinados formam a base de uma poliarquia funcional, promovendo a participação ativa e a liberdade em sociedades democráticas.
Dahl (1971, p. 26) inicia seu trabalho definindo o conceito de poliarquia como um sistema político no qual a tomada de decisões é descentralizada e há uma competição aberta e inclusiva pelo poder entre múltiplos atores políticos. Em contraste com regimes autoritários e oligárquicos, onde o poder é concentrado nas mãos de uma elite governante, a poliarquia valoriza a participação ativa dos cidadãos e a proteção de seus direitos políticos e civis.
Uma das características centrais da poliarquia, como destacado por Dahl (1971, p.27), é a liberdade de expressão. Nesse tipo de regime, os cidadãos têm o direito de expressar suas opiniões livremente, participar de debates políticos e influenciar a formulação de políticas públicas. A liberdade de associação também é valorizada na poliarquia, permitindo que os cidadãos se organizem em partidos políticos, sindicatos e grupos de interesse para representar seus interesses e influenciar o processo político.
Dahl argumenta que a realização de eleições livres e justas é um elemento central da poliarquia. As eleições são vistas como um mecanismo fundamental para garantir a responsabilidade dos governantes perante os cidadãos e para a transferência pacífica do poder. Além disso, a poliarquia enfatiza a igualdade de voto, onde cada indivíduo tem o mesmo peso em termos de influência política, independentemente de sua posição social ou econômica.
No entanto, o autor (1971, p.37) ressalta que a poliarquia vai além das eleições e envolve a proteção dos direitos individuais e das minorias. Para que a democracia seja verdadeiramente inclusiva, é essencial garantir a igualdade de oportunidades políticas, bem como a proteção dos direitos das minorias contra a tirania da maioria. Dahl enfatiza a importância de salvaguardas institucionais e legais que protejam os direitos civis, a liberdade de imprensa e a independência do judiciário.
Ao longo do livro, Dahl (1971, p.30) diferencia a Poliarquia de outros regimes, como: Hegemonia Fechada, que seria aquele estágio mais longe da poliarquia caracterizados por uma notável carência ou total ausência de oposição pública, resultando em uma falta de competição pelo poder político. As Hegemonias Inclusivas são caracterizadas quando um mesmo grupo se mantém no poder, sem dar margem à competição justa, mas permite algum nível de participação por parte da população. Já as Oligarquias competitivas são sociedades onde o poder é disputado com relativas condições de igualdade, mas por um pequeno número de elites fechadas ou com exclusão de grande parte da população. Desse modo o autor examina as características distintivas da poliarquia em comparação com esses sistemas, apontando suas vantagens e limitações. Por exemplo, em contraste com as autocracias, a poliarquia valoriza a participação e a competição política, permitindo que os cidadãos influenciem as decisões governamentais.
Fonte: Dahl (1971, p. 30)
Dahl (1971, p.27) também explora o conceito de requisitos de uma democracia efetiva. Ele destaca que uma democracia saudável requer não apenas eleições, mas também a proteção dos direitos civis e políticos dos cidadãos. Isso inclui garantias de liberdade de expressão, associação e a proteção dos direitos das minorias. Dahl argumenta que esses requisitos são cruciais para evitar a tirania da maioria e garantir que a poliarquia seja verdadeiramente inclusiva e representativa. Nesse sentido, o autor destaca a importância do direito ao voto, uma vez que é, a partir desse princípio que se pode analisar e comparar diferentes regimes segundo sua inclusividade. Quando um regime garante este direito a apenas alguns de seus cidadãos, ele caminha para uma maior contestação pública. Mas, quanto maior a proporção de cidadãos que desfrutam do direito, mais inclusivo será o regime.
Dahl (1971, p. 27)
Em resumo, “Poliarquia” de Robert Dahl é uma obra essencial para quem deseja compreender a natureza e os princípios fundamentais da poliarquia como forma de regime político, uma vez que o autor oferece uma análise detalhada dos requisitos e características da poliarquia, destacando sua importância para a construção de sociedades democráticas, participativas e inclusivas. Com sua análise perspicaz e embasada em evidências, Dahl fornece aos leitores uma base sólida para entender a complexidade dos sistemas políticos contemporâneos e as possibilidades e desafios associados à busca por uma governança democrática.
Sendo assim, baseado no que Robert Dahl teorizou e nos ofereceu para pensarmos, gostaria de propor uma reflexão crítica, baseada em seu conceito, sobre a construção e consolidação da jovem (se comparada a outros países) democracia do Brasil. Neste sentido, será que a abolição do voto obrigatório no Brasil iria contribuir para a promoção da Poliarquia no país ou, ao contrário, acabaria por contribuir para arrochar os mecanismos e procedimentos democráticos brasileiros, nos afastando cada vez mais do ideal poliárquico?
No Brasil, como sabemos, o voto e o alistamento eleitoral são obrigatórios para pessoas alfabetizadas entre 18 e 70 anos, sendo facultativos para analfabetos e para os indivíduos com idade entre 16 e 18 ou acima de 70 anos. A obrigatoriedade se baliza pela ideia de que o comparecimento às urnas não está sob o arbítrio, sob o poder de escolha do eleitor, e seu não cumprimento prevê sanções legais (ARAÚJO, 2007), como por exemplo o pagamento de multas a União, caso o indivíduo não justifique sua ausência a justiça eleitoral dentro dos prazos estabelecidos por Lei.
A ideia de que o voto obrigatório se configura como uma atitude positiva para as sociedades democráticas por se tratar de um meio que incentiva a participação política está intimamente relacionada com a ideia de que o envolvimento do cidadão é crucial para o pleno desenvolvimento e real funcionamento de uma democracia. Do mesmo modo, a noção de que um dos princípios fundamentais de uma democracia é a igual consideração dos interesses e preferências de todos os cidadãos (VERBA, 2001) é uma concepção moralmente orientada. De acordo com o Verba, sendo a participação política o meio pelo qual os cidadãos transmitem aos seus governantes suas vontades e necessidades, a igualdade nessa participação é condição necessária a uma resposta igualitária por parte do governo, portanto à igualdade política.
Vê-se, portanto, que mais do que apenas a participação eleitoral geral, a participação eleitoral igualitária possui grande importância para a compreensão normativa de democracia, sendo a compulsoriedade do voto um instituto capaz de promover essa igualdade e evitando que determinados grupos e segmentos sociais, já afetados por desigualdades existentes em outras áreas (social e econômica), permaneçam desfavorecidos na arena política.
Nos países onde o voto é facultativo verificam-se importantes desproporções nas taxas de comparecimento entre diferentes clivagens sociais, destacando-se o nível de escolaridade, a renda, a cor e a idade dos eleitores. Verba, Nie e Kim (1978), assim como Lijphart (1997), mencionam que a introdução do voto facultativo na Holanda acarretou, além de uma queda geral no comparecimento, um aumento no viés de escolaridade (da casa dos 90%, com baixo viés de classe, para taxas variantes entre 66% e 87% entre os grupos menos e mais escolarizados). Wattenberg (2007) demonstra lacunas de comparecimento que atingem 27 pontos percentuais entre eleitores com mais de 65 e menos de 30 anos nos Estados Unidos. Ainda, o comparecimento eleitoral de negros é historicamente inferior ao de brancos no mesmo país (ARAÚJO, 2007; VERBA,SCHLOZMAN & BRADY, 1995). Há também conhecida baixa de participação dos mais jovens em democracias avançadas e recentes apontada por Quintelier, Hooghe e Marien (2011).
Sendo assim, é válido o questionamento: se introduzido o voto facultativo no Brasil, que impactos podem ser esperados sobre a democracia brasileira no que diz respeito, especialmente, à igualdade de participação entre diferentes grupos sociais? Isto é: nos termos propostos por Robert Dahl (1971), a introdução do voto facultativo estaria contribuindo para o afastamento ou aproximação do Brasil à poliarquia?
O debate divide opiniões, inclusive entre os estudiosos. Entre os que defendem a abolição do voto obrigatório, os principais argumentos são: o voto é um direito, de livre exercício, e não um dever, imposto pelo Estado; o voto obrigatório diminuiria a qualidade das eleições, pois obriga a participação de pessoas “despreparadas”, que não estão interessadas em participar e consequentemente acaba por abrir terreno para práticas clientelistas e pouco republicanas (Mendieta Ramírez, 2016; Mata, 2009; BIRCH, 2009). Já os que defendem a manutenção da regra, os argumentos estão relacionados a ideia de que o voto é um instrumento pedagógico de participação democrática, fomentando uma cultura cívica com o tempo; como também advogam que a abstenção eleitoral não é aleatória, mas sistemática, afetando principalmente as parcelas menos favorecidas da população. Logo, a obrigatoriedade do voto diminui esse viés e torna as eleições mais representativas da população (Soares 2004; Aguiar 2017). Apesar de ser bastante estudado e debatido, poucos são os estudos que promovem uma interpretação dos impactos da adoção do voto facultativo para a democracia brasileira tomando por base o proposto e desenvolvido por Robert Dahl (1971).
Sem entrar no mérito do debate e pretender dar uma resposta definitiva a ele, a proposta aqui a ser apresentada é fornecer subsídios para discussão em torno da regra da obrigatoriedade do voto no Brasil, justamente refletindo se sua abolição nos colocaria mais próximos a noção de poliarquia ou nos aproximaria de outros regimes políticos propostos pelo próprio Dahl em seu plano cartesiano, uma vez que a ideia de voto facultativo pode ser interpretada de maneira ambivalente pela obra de Dahl (1971).
O autor enfatiza a importância da participação ativa e da competição política aberta como elementos essenciais de uma poliarquia funcional. Nesse contexto, o voto facultativo poderia ser interpretado como uma limitação da participação, pois permite que os cidadãos escolham não participar do processo eleitoral. Isso poderia ser visto como contraproducente para a democracia, uma vez que a inclusão máxima dos cidadãos no processo político é um dos pilares de sua teoria.
Por outro lado, Dahl também reconhece a importância da liberdade na poliarquia, e isso inclui a liberdade de escolher se deseja ou não participar das eleições. Portanto, a ideia de voto facultativo também pode ser vista como um exercício da liberdade individual e do direito de escolher quando e como se envolver na política, o que está alinhado com a ênfase de Dahl na liberdade de associação e expressão. No cerne dessa consideração, a interpretação do conceito de voto facultativo à luz das contribuições teóricas de Robert Dahl implica um delicado equilíbrio a ser buscado entre a promoção da participação ativa dos cidadãos no processo político e a salvaguarda de suas liberdades individuais dentro do contexto de um sistema democrático.
*Este texto não reflete necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, Cícero. Voto obrigatório. In: ANASTASIA, Fátima, AVRITZER, Leonardo (Org.). Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
BIRCH, Sarah. Full Participation: A Comparative Study of Compulsory Voting. New York:
United Nations University Press. 2009.
DAHL, Robert. La poliarquía. Participación y oposición, 1971.
LIJPHART, Arend. Unequal participation: Democracy’s unresolved dilemma presidential address, American Political Science Association, 1996. American Political Science Review, v. 91, n. 1, p. 1-14, 1997.
MATA, J. (2009). IDEAS. Obtenido de IDEAS: https://ideas.repec.org/p/ioe/clabwp/3.html
MENDIETA, R, A. (2016). Electopartidismo: El voto obligatorio ventaja o desventaja para la cultura política ciudadana? Opción, 937-951. Obtenido de https://www.redalyc.org/pdf/310/31048902055.pdf
QUINTELIER, E.; HOOGHE, M.; MARIEN, S. The effect of compulsory voting on turnout stratification patterns: a cross-national analysis. International political Science Review.32(4), p. 396-416, 2011.
VERBA, Sidney; NIE, Norman H.; KIM, Jae-on. Participation and political equality: A seven-nation comparison. Cambridge University Press, 1978.
VERBA, Sidney. Political Equality: What Is It? Why Do We Want It? 2001. Disponível em: <https://www.russellsage.org/sites/all/files/u4/Verba.pdf> Acesso em 22 set 2021
VERBA, S., SCHLOZMAN, K.L.; BRADY, H.E. Voice and equality. Civic voluntarism in American politics. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1995
WATTENBERG, Martin P. Where have all the voters gone? Cambridge: Harvard University Press, 2002. Is voting for young people? Nova Iorque: Pearson, 2007.
[1] Mestrando Ciência Política PPGPOL/UFSCar – murilopradella@estudante.ufscar.br
Fonte Imagética: Urna eletrônica brasileira de votação para as eleições presidenciais de 2022 (Superior Tribunal Eleitoral). Disponível em <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brazilian_DRE_voting_machine_for_2022_elections.jpg>. Acesso em 11 ago 2023.