Pedro Pulzatto Peruzzo[1]
Este texto tem como objetivo sugerir uma reflexão crítica sobre o estado da democracia participativa no Brasil a partir do Decreto 9.759, de 11 de abril de 2019, que extinguiu as instâncias colegiadas de participação social no âmbito da Administração Pública federal, com atenção especial ao Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE). Num momento em que agentes públicos que assumem cargos de alta relevância nas instâncias de exercício do poder político negligenciam por completo a importância ética da clareza argumentativa, é de extrema relevância deixar claro que não falo “em nome” das pessoas com deficiência, pois não me enquadro nesse conceito[2].
A postura negativa de alguns governos à participação de atores organizados em órgãos colegiados de consulta na formulação de políticas públicas evidencia o descaso com a participação cidadã, pois tais órgãos não são criados para restringir o âmbito da atuação governamental, mas para: 1) auxiliar na tomada de decisão; 2) legitimar as decisões tomadas, na medida em que contam com a participação dos grupos destinatários das políticas; e 3) fiscalizar os governos. Apesar de proporcionarem alguma participação em algo que, muitas vezes, já vem dado, esses órgãos não vinculam e não engessam a Administração. Nesse sentido, o CONADE apenas tinha competência deliberativa em relação à aprovação do plano de ação da Política Nacional para Integração da Pessoa com Deficiência e, por isso mesmo, a extinção de órgãos desse tipo não significa negar a interferência de partidos políticos específicos na formulação de políticas públicas, mas anunciar o descompromisso com a eficiência técnica, a legitimidade democrática e a transparência da gestão pública.
Antes de dar sequência à análise dos impactos políticos dessa medida na frágil democracia brasileira, é preciso entender uma questão de ordem técnica . O CONADE foi criado como conselho vinculado ao Ministério da Justiça em 1 de junho de 1999, através do Decreto 3.076, promulgado por Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Em 28 de maio de 2003, na Lei 10.683, que dispôs sobre a organização da presidência da República, já na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o órgão foi transferido para a estrutura da Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Em agosto de 2010, a Lei 12.314, substituiu o termo “pessoa portadora de deficiência” por “pessoa com deficiência”, alinhando-se à Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2007), incorporada no Brasil com força de emenda constitucional pelo Decreto 6.949/09.
A Lei 10.683/03 foi revogada pela Lei 13.502/17, que definiu a estrutura da presidência do governo Michel Temer (MDB), mantendo o CONADE no Ministério dos Direitos Humanos. Em 1 de janeiro de 2019, Jair Messias Bolsonaro (PSL) revogou a Lei 13.502 por meio da Medida Provisória 870, que ainda precisa ser convertida em lei pelo Congresso. Ponto importante é que esse órgão continuou tendo previsão na Medida Provisória 870/19, como parte integrante do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Isso é relevante, pois, ainda que o presidente Bolsonaro tenha declarado extintos os órgãos colegiados pelo Decreto 9.759/19, o fato de existir uma disposição com força de lei impede, por si só, a declaração de extinção, especialmente se a referida medida provisória for convertida em lei pelo Congresso Nacional.
Em outros termos, para manter a coerência constitucional, Bolsonaro poderia somente ter determinado, por decreto, a adequação dos Conselhos aos termos do artigo 6[3] do referido Decreto, sem declará-los extintos. Como a medida provisória tem força de lei, ela deve prevalecer. Nesse sentido, o Decreto 9.759/19 deverá ter seus efeitos sustados pelo próprio Congresso na parte em que determina a extinção de órgãos previstos na lei. Isso, porém, depende de que as instituições estejam funcionando.
De mais a mais, a Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2007) diz expressamente, no artigo 4º, que na elaboração e implementação de legislação e políticas e em outros processos de tomada de decisão, os Estados partes realizarão consultas estreitas e envolverão ativamente pessoas com deficiência. No mesmo sentido, o Pacto de Direitos Civis e Políticos (1966), em seu artigo 25, expressa que todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação e sem restrições infundadas, de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos, direito repetido no artigo 23 da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969).
Assim, tendo a Convenção da ONU sido incorporada como emenda constitucional (Decreto 6.949/09), o Pacto e a Convenção Americana sido incorporados com estatuto supralegal (Decretos 592/92 e 678/92) e sendo o CONADE um órgão de representação e exercício da cidadania pelas pessoas com deficiência, é impossível a extinção desse conselho até mesmo por medida provisória pois, nos termos dos artigos 62 e 68 da Constituição (1988), não se admite essa via legislativa para tratar de direitos individuais e políticos (aplica-se às medidas provisórias, por extensão, as proibições relativas às leis delegadas). Por isso, se Bolsonaro quiser extinguir o CONADE, deverá enviar projeto de lei ao Congresso, conforme o artigo 61 da Constituição, e articular politicamente.
Apesar da clareza que a técnica legislativa nos proporciona, é fato notório que a técnica jurídica tem sido insistentemente desrespeitada pelos poderes constituídos e que a democracia tem sido sistematicamente esvaziada com ataques aos procedimentos previstos constitucionalmente para a sua realização. Uma reflexão crítica, que una teoria e práxis sobre a extinção dos órgãos colegiados e, em especial do CONADE, exige uma análise que considere tanto as questões técnicas que impedem a extinção do Conselho por decreto ou medida provisória quanto, na sequência, a relevância democrática do CONADE para que as políticas públicas para as pessoas com deficiência atendam a padrões mínimos de eficiência e legitimidade.
Pensando uma nova concepção de cidadania, Evelina Dagnino esclarece que essa concepção não se limita a meras conquistas legais ou ao acesso a direitos previamente definidos, mas inclui a criação de novos direitos, que emergem de lutas específicas e da sua prática concreta. A nova cidadania é uma estratégia dos não cidadãos, dos excluídos, uma cidadania “de baixo para cima” (DAGNINO,1994). Criar direitos, portanto, exige não apenas a previsão de novos bens jurídicos protegidos, mas também de novos procedimentos para a criação, interpretação e aplicação de direitos já anunciados na lei.
Em outros termos, sair do modelo representativo que entrega a um Parlamento estruturalmente classista, machista, capacitista e racista o poder de criar direitos e deveres, a um Executivo com as mesmas características o poder de idealizar e implementar políticas públicas com orçamento público e a um Judiciário igualmente estruturado o poder de controlar judicialmente os atos do Legislativo e do Executivo, é o que configura de fato essa nova cidadania. Mais que isso: caminhar no sentido de criar nesses poderes constituídos procedimentos que permitam aos grupos vitimados por essas formas estruturais de exclusão e opressão ao menos anunciar suas prioridades. Nesse sentido, o CONADE, apesar de ser um órgão especialmente de consulta e não de deliberação, tem como propósito funcionar como um espaço de diálogo onde as prioridades das pessoas com deficiência são negociadas através de sua participação.
A declaração de extinção de todos os órgãos colegiados de participação popular, em especial do Conselho da Pessoa com Deficiência, evidencia uma postura tutelar, de caridade, e não de emancipação, aqui considerada como a capacidade de servir-se de seu entendimento sem a orientação de outrem (KANT, 2004; ADORNO, 1995). Para que um governo seja responsivo às preferências de seus cidadãos, é fundamental que todos tenham oportunidade de formular e de expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo através das ações individuais e também coletivas, além de ter suas preferências consideradas na conduta do governo (DAHL, 1997, p.26). Desse modo, os efeitos do Decreto que colocou fim ao CONADE anunciam um ponto final aos procedimentos que foram adotados como apostas para a consolidação democrática no Brasil. Em seu lugar ficou o vazio de representatividade ou, no máximo, uma cena sórdida montada no dia da posse, onde estrelou, em LIBRAS, a primeira dama.
Apesar de não existir exigência constitucional a priori para a criação desses colegiados, também não há argumento legal que justifique qualquer tipo de arguição de inconstitucionalidade dos conselhos e/ou outros órgãos de participação social, isso considerando a previsão expressa na Constituição da democracia participativa no artigo 1, parágrafo único, bem como a autorização do artigo 84, inciso VI, dada ao presidente para dispor, mediante decreto, sobre organização e funcionamento da administração federal. Ou seja, o fechamento democrático pode ser potencializado dependendo da postura do governo.
Enquanto a Dilma Rousseff (PT), com todos os seus problemas de articulação política, havia tentado ampliar as vias de participação social por meio da criação da Política Nacional de Participação Social, através do Decreto 8.243/14, o atual presidente revogou esse instrumento idealizado por sua “obsessão política” e adotou postura diametralmente oposta em relação à participação popular, afrontando a técnica legislativa e a democracia que tentava se enraizar a duras penas. Tempos difíceis virão, visto que além de negar a participação do povo em seu governo, Bolsonaro parece seguir a velha política anunciada pelo porco de George Orwell (2007), onde todos os bichos são iguais, porém uns mais iguais que os outros.
[1] Advogado popular e professor do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Desenvolvimento Social da PUC-Campinas. Mestre e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Consultor geral da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no estado de São Paulo.
[2] A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (Decreto 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/15) utilizam o seguinte conceito: Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
[3] Esse artigo exige que as propostas de criação de novos colegiados, de recriação de colegiados extintos em decorrência do disposto neste Decreto ou de ampliação dos colegiados existentes observem alguns parâmetros, como estimativa de gastos com diárias e passagens dos membros do colegiado e comprovação da disponibilidade orçamentária e financeira para o exercício em curso, justificar a necessidade, a conveniência, a oportunidade e a racionalidade de o colegiado possuir número superior a sete membros, dentre outros.
Referências Bibliográficas:
ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
DAGNINO, E. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In. Anos 90 – Política e sociedade no Brasil, Evelina Dagnino (org.), São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 103-115.
DAHL, R. A. Poliarquia: participação e oposição. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Edusp, 1997.
KANT, Resposta à pergunta: que é iluminismo? In: A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2004.
ORWELL, George. Revolução dos Bichos. Trad. Heitor Aquino Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Referência imagética:
https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/notas-oficiais-abrasco/nota-de-repudio-a-extincao-do-conselho-nacional-de-direitos-da-pessoa-com-deficiencia-conade/40797/ (Acesso em 19 de maio de 2019)