Roberto Goulart Menezes[1]
Para quem acompanha os temas de política externa do País, os seis primeiros meses do governo de Jair Bolsonaro parecem reduzi-los ao seu relacionamento com os Estados Unidos. A obsessão do presidente brasileiro com Washington parece não encontrar paralelo na história recente do País. Na sua estreita visão acerca das relações internacionais, o presidente Bolsonaro subordina os interesses internacionais do País ao relacionamento com os Estados Unidos de Donald Trump.
Para o Brasil, as relações diplomáticas com os Estados Unidos ocupam um lugar de destaque em função da proeminência desse país no sistema internacional, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial. E foi depois de 1945 que a presença econômica, política, militar e comercial dos Estados Unidos se intensificou na América Latina, impondo ao Brasil desafios que ainda hoje se fazem presentes. Porém, a forma como o Brasil buscou manter boas relações com Washington desde então esteve aliada a construção de uma margem de manobra para o desenvolvimento de relações políticas e diplomáticas com as demais nações para não confinar a política externa brasileira à agenda com os Estados Unidos. E é justamente esse esforço em prol da multipolaridade e da diversificação das relações internacionais do País que o governo Bolsonaro e seu Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, estão sacrificando com a “diplomacia Mickey Mouse”.
No começo dos anos 1960, o Brasil rompeu com a orientação iniciada desde o tempo de Rio Branco na condução do Itamaraty, orientada pela “aliança especial não escrita” com os Estados Unidos. Assim se deu a multilateralização das ações externas do Brasil no cenário internacional e o forte vínculo entre política externa e desenvolvimento, cristalizou-se. Fundamentada numa visão inovadora do mundo, a Política Externa Independente (PEI) foi fruto de um projeto político e de uma concepção intelectual. Acrescentou novos conceitos à atuação externa do Brasil, a fim de manter e ampliar sua autonomia. Naquele momento, o foco era a “autonomia pela distância”, marcada pela “fuga” do alinhamento às superpotências, tarefa nada fácil para um país situado numa área tida como esfera de hegemonia dos Estados Unidos. A inovação ganhou mais consistência no governo João Goulart (1961-64). Após o breve retrocesso na área externa, marcado pelo alinhamento automático da ditadura civil-militar com os Estados Unidos (1964-1967), a opção universalista se tornaria um traço característico da política externa brasileira desde então. De acordo com Velasco e Cruz (2001), com a PEI o Brasil “expressava a disposição de intervir, com dicção própria, no debate das grandes questões internacionais, de escapar aos alinhamentos rígidos próprios à lógica da Guerra Fria, de multiplicar vínculos diplomáticos e explorar áreas de convergência com países que partilhavam com o Brasil a condição de subdesenvolvidos. No contexto dessa política, a relação com os Estados Unidos continuava sendo decisiva. Mas agora a boa qualidade da mesma não aparecia mais como uma condição para a autonomia”[2] (p. 137).
Com o retorno dos governos civis após os anos de chumbo (1964-85), os fundamentos que orientaram a PEI se mantiveram em linhas gerais. Na gestão José Sarney, entre 1985 e 1988, predominou fortemente a concepção do projeto nacional, com o Estado em busca de retomar o crescimento econômico, traço de continuidade com o paradigma universalista. Porém, a partir de 1989 ocorreu uma guinada liberal. Mas as mudanças mais profundas na orientação externa viriam no governo Fernando Collor de Mello (1990-1992), quando se repôs, de modo subalterno, o eixo central nas relações com Washington, visando atrair apoio para suas reformas políticas e econômicas.
Sob a gestão do ex-Ministro das Relações Exteriores, Francisco Rezek, as diretrizes da opção universalista foram questionadas ao mesmo tempo em que o alinhamento com os Estado Unidos passou a orientar a política externa brasileira no começo dos anos 1990. Porém, toda a energia política empenhada pelo governo Collor nas relações com a Casa Branca não foi correspondida. A subserviência da política externa brasileira nesse período, embora tenha deixado parte do corpo diplomático indignada e envergonhada, encontrou apoio nas fileiras do Itamaraty.
Isso abriu um capítulo sobre até que ponto o próprio Itamaraty teria ou não participado da formulação e implementação desta política. Na época, o presidente Collor chegou a criticar publicamente a falta de ajuda e o descaso por parte dos países ricos com as aspirações do Brasil, declarando que ninguém ajudava, numa clara referência aos países desenvolvidos, marcadamente aos Estados Unidos.
O governo Bolsonaro e seu Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, retomam o alinhamento com Washington e de modo obsessivo. Desta vez, cabe ao Itamaraty, conduzido por Araújo, a parte da encenação e de porta voz da política exterior do País. Já os temas candentes como as negociações econômicas e comerciais foram transferidos para o Ministério da Economia. Diante deste enfraquecimento, se Araújo não recorre a algum tipo de declaração estapafúrdia sobre mudanças climáticas, regimes políticos ou conspiratório, ele praticamente não é notado.
O Ministério da Economia é quem de fato coordena as negociações comerciais do País no governo Bolsonaro. Assinado o acordo Mercosul-União Europeia na Conferência do G-20 financeiro, a equipe do Ministro Paulo Guedes passou a se concentrar nas tratativas de um amplo acordo comercial com os Estados Unidos.[3]
A assinatura do acordo entre o Mercosul e a União Europeia serviu de cortina de fumaça para o que de fato o governo Bolsonaro, avesso ao conhecimento, persegue em sua política externa: aplainar o terreno para um acordo de livre comércio radical do Brasil em separado com os Estados Unidos. Não dá para entender a subserviência do governo Jair Bolsonaro – que se inspira na lógica das relaciones carnales do governo Menem com os EUA[4] – e um acordo de livre comércio do Mercosul com a União Europeia como algo descolado da geopolítica. A melhor parte do bolo certamente está guardada para os EUA. Um indício disso é que, até o momento, o governo Trump não atacou esse acordo, mesmo estando presente no G-20 financeiro.
A presença do presidente Bolsonaro na comemoração do dia da independência dos Estados Unidos na Embaixada em Brasília, todo o seu entusiasmo em ser “aceito” no circuito das altas finanças, combinada com a indicação de seu filho para ser o embaixador brasileiro em Washington não deixam dúvidas de que seu governo passa longe da defesa dos interesses do País. A devastação da Amazônia seja pelo incentivo aos garimpos, a invasão das terras indígenas ou pelo desmatamento, assim como a entrega da Base de Alcântara aos Estados Unidos, nada tem a ver com o real interesse nacional. Some-se a isso as recentes declarações violentas do presidente Bolsonaro sobre os resultados das eleições primárias na Argentina e as do Ministro da Economia, Paulo Guedes, de uma possível saída do País do Mercosul. Essas atitudes e decisões são parte da Diplomacia Mickey Mouse do governo Bolsonaro: tornar o Brasil um protetorado dos Estado Unidos.
[1] Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais da UnB e Professor visitante no Arrighi Center for Global Studies na Johns Hopkins University. Pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INEU).
[2] Velasco e Cruz, S. Opções estratégicas. O papel do Brasil no sistema internacional. Lua Nova, n. 53, 2001, p. 137.
[3] País deve buscar acordo amplo com EUA, diz Troyjo. Valor Econômico, 31. julho. 2019, p. A16.
[4] Sobre este assunto ver: https://boletimluanova.org/2019/04/03/governo-bolsonaro-a-busca-de-relacoes-carnais-com-os-estados-unidos-de-trump/
Referência imagética:
Toni d’Agostinho (https://www.instagram.com/p/BvQ7xLkAlef/).