Luis Fernando Ayerbe[1]
Uma mudança que marca a administração Trump nas relações com a América Latina é o antagonismo explícito frente a governos situados em campo adversário, seja no âmbito regional, como nos casos de Nicarágua, Cuba e Venezuela, incluídos na categoria “troika da tirania” (AYERBE, 2019), como extra regional, esboçando reação frente ao avanço econômico da China e a presença militar russa.
No caso chinês, busca-se estabelecer convergências com governos aliados ativando alarmes sobre um suposto estilo predatório de negócios por parte da potência asiática. Assim o expressa o Secretário de Estado Mike Pompeo em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, após participar da posse do presidente Jair Bolsonaro.
Nós chegamos a uma posição inquestionável de que a China não pode ser liberada para se engajar numa atividade econômica predatória ao redor do mundo. Isso não é do interesse de ninguém. Onde a China se apresenta, no Brasil, Chile, Equador ou qualquer parte, tem de haver competição, transparência e liberdade… Isso não é apropriado e vocês têm visto que nosso presidente (Trump) está preparado para lutar contra isso, onde quer que, em questões comerciais, a América não encontre práticas justas e recíprocas da China. Isso vale para outras atividades em que a China esteja envolvida (CANTANHEDE, 2019).
Se bem a tendência nos anos recentes é de uma maior convergência de governos latino-americanos politicamente favorável aos Estados Unidos (EUA), isto não significa alinhamento automático com a agenda internacional do país. É o que acontece no caso da China, em que prevalecem interesses nacionais associados a comércio exterior e investimentos. De acordo com estudo da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), o país asiático avança para o segundo lugar no intercâmbio comercial, antes ocupado pela União Europeia, com EUA mantendo-se na primeira posição. Em termos de investimento direto, em 2017 o stock de capital chinês aumentou 46% com relação a 2016, alcançando 115 bilhões de dólares, tornando-se o maior investidor externo nesse ano. Argentina, Brasil e Peru se destacam como principais sócios comerciais da China e receptores de 81% do investimento direto entre 2005 e 2017 (CEPAL, 2018a). Com relação ao financiamento para o desenvolvimento na região, a participação chinesa correspondeu a 80% dos empréstimos entre 2005-2016, outorgados quase na sua totalidade por bancos estatais, sendo que “a maioria do montante (93%) foi para a República Bolivariana da Venezuela (44%), Brasil (26%), Equador (12%) e Argentina (11%)” (CEPAL, 2018b, p. 22).
No caso da Rússia, desde a chegada de Vladimir Putin ao poder tem havido um crescente interesse pela região. Estudo do think tank estadunidense Center for Strategic and International Studies (CSIS) destaca o caso da Venezuela, receptora de investimentos na indústria petroleira, principalmente através da empresa Rosneft, controlada majoritariamente pelo Estado, e destino de 75% do total de armamentos exportados para América Latina (MILES, 2018). No âmbito militar, as relações envolvem a cooperação entre as forças armadas dos dois países, gerando especulações no governo estadunidense sobre ambições geopolíticas regionais russas. É o caso da chegada à Venezuela em dezembro de 2018 de delegação de oficiais para exercício conjunto, incluindo dois aviões militares com capacidade de transportar mísseis de longo alcance e armas nucleares. A reação de Mike Pompeo, combinando o alerta de segurança com críticas aos sistemas políticos de ambos países, teve tons de Guerra Fria: “O governo de Rússia enviou bombardeiros do outro lado do mundo para Venezuela. Os povos russo e venezuelano deviam ver isso pelo que é: dois governos corruptos dilapidando fundos públicos e esmagando a liberdade enquanto seu povo sofre” (ARKHIPOV; KRAVCHENKO, 2018).
Discurso e realidade
Para além da ofensiva retórica estadunidense esboçando preocupação com a América Latina, disposição para gerar mudanças de governo em países não alinhados e combater a presença chinesa e russa, há dados da realidade que mostram situação contraditória com relação aos recursos de poder disponíveis e a decisão de utilizá-los em escala adequada aos desafios exaltados.
Diferentemente da China e da Rússia, em que o Estado aparece como agente decisório e executor privilegiado das políticas para a região, proporcionando, especialmente no caso chinês, amplo estoque de recursos para comércio, investimentos e financiamento, no caso estadunidense, decisões desse tipo correspondem essencialmente ao setor privado, a partir de avaliações em que lógicas de mercado prevalecem sobre vetos ou encorajamentos político-ideológicos oriundos da esfera pública.
A atuação governamental tem como protagonista destacado o Departamento de Estado, especialmente através da Assistência ao Desenvolvimento (DA). Nesse sentido, analisando o Orçamento para Assuntos Internacionais destinado ao Hemisfério Ocidental, a anunciada importância da região adquire dimensões reais. Conforme o quadro abaixo, na DA e no Fundo de Apoio Econômico (ESF, na sigla em inglês), que a administração atual reúne numa nova área denominada Fundo para Apoio Econômico e Desenvolvimento (ESDF), há redução na destinação orçamentária se compararmos com as solicitações de Obama para o ano fiscal de 2017 somando DA e ESF. Essa tendência acompanha a queda de recursos para o conjunto do Hemisfério.
Frente à implementação por parte da China de uma agenda de comércio, investimentos e financiamento capaz de seduzir governos regionais em situação econômica difícil, a ofensiva estadunidense carece de recursos de poder equivalentes para influenciar aliados a que compartilhem sua ofensiva contra “atividades predatórias” da potência oriental.
A exacerbação ativista contra a “troika da tirania”, ameaçando países mais vulneráveis com um cerco de isolamento dirigido a asfixiar e colapsar seus governos, estaria aparentemente mais próxima da capacidade real de influência de EUA. No entanto, a constituição de um apoio substantivo regional a essa postura se dá fundamentalmente com relação à Venezuela, mas é menos veemente para Nicarágua e de escasso apelo no caso cubano.
No ensaio intervencionista trumpiano, contrapontos entre discurso e realidade demarcam os alcances das relações com a América Latina. Retóricas inflamadas em tons de Guerra Fria pretendem erigir inimigos e ameaças, sem a correspondente disposição de recursos para o exercício da política externa, que se pretende compensar com a convocação de aliados dispostos a assumir os custos de incerto protagonismo.
Bibliografia
ARKHIPOV, Ilya; KRAVCHENKO, Stepan. Pompeo Blasts Russia for Strategic Bombers Sent to Venezuela. Bloomberg, 10 de dezembro de 2018. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-12-10/two-russian-strategic-bombers-arrived-in-venezuela-tass-says. Acesso em: 14 out. 2019.
AYERBE, Luis Fernando. Trump e a América Latina. Tempos de Doutrina Monroe. Boletim Lua Nova, 19 de abril de 2019. Disponível em: https://boletimluanova.org/2019/04/19/trump-e-a-america-latina-tempos-de-doutrina-monroe/. Acesso em: 14 out. 2019.
CANTANHEDE, Eliane. “Ficamos satisfeitos com a oferta da base militar”, diz Pompeo. O Estado de São Paulo, 6 de janeiro de 2019. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ficamos-satisfeitos-com-a-oferta-da-base-militar-diz-pompeo,70002668765. Acesso em: 14 out. 2019.
CEPAL. CEPAL vê alta do investimento chinês na América Latina e no Caribe em 2017. Nações Unidas Brasil, 7 de fevereiro de 2018a. Disponível em: https://nacoesunidas.org/cepal-ve-alta-do-investimento-chines-na-america-latina-e-no-caribe-em-2017/. Acesso em: 14 out. 2019.
CEPAL. Explorando nuevos espacios de cooperación entre América Latina y el Caribe y China, janeiro de 2018b. Disponível em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/43213/1/S1701250_es.pdf. Acesso em: Acesso em: 14 out. 2019.
MILES, Richard. Virtual Russian Influence in Latin America. Center for Strategic & International Studies, 9 de maio de 2018. Disponível em: https://www.csis.org/analysis/virtual-russian-influence-latin-america. Acesso em: 14 out. 2019.
U.S. DEPARTMENT OF STATE. Congressional Budget Justification – Foreign Operations Appendix 3, Fiscal Year 2017, 26 de fevereiro de 2016. Disponível em: http://www.state.gov/documents/organization/252734.pdf. Acesso em: 14 out. 2019.
U.S. DEPARTMENT OF STATE. Congressional Budget Justification – Foreign Operations Appendix 2, Fiscal Year 2020, 11 de março de 2019. Disponível em: https://www.state.gov/wp-content/uploads/2019/05/State-and-USAID-Appendix-2.pdf. Acesso em: 14 out. 2019.
[1] Professor de História e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (UNESP), pesquisador do Instituto Nacional de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).
Referência imagética: Reprodução Redes Sociais. Disponível em: https://jornalggn.com.br/america-latina/o-desgaste-e-os-ataques-de-trump-a-america-latina/.