Boletim n.12 – CIENTISTAS SOCIAIS E O CORONAVÍRUS
Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEG), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
Acompanhe e compartilhe!
Mariane da Silva Pisani *
Como antropóloga que sou me dou o direito de iniciar este texto a partir de uma observação etnográfica. No dia 23 de Março de 2020, foi publicado no jornal O Globo[i] a matéria intitulada: “NASA usa experiência de astronautas para dar dicas de confinamento durante a pandemia de COVID-19”. Esta trouxe aos leitores e às leitoras cinco habilidades desenvolvidas por astronautas da Agência Espacial dos Estados Unidos da América (NASA) para viver isolamentos em períodos prolongados de tempo. A saber: comunicação, liderança, cuidados pessoais, cuidados do coletivo e vivência em grupo.
A reportagem em questão foi replicada em diversas redes sociais de grupos de WhatsApp, atualmente nosso principal meio de comunicação e contato com amigos, amigas e familiares. Acompanhei algumas reações ao material veiculado:
“Existe criança na estação espacial? Não, não é mesmo!? Então essas dicas não me servem para nada!”
“Eu devo seguir essas dicas antes ou depois de lavar, passar, cozinhar e arrumar toda a casa?”
Essas reações partiram, em sua grande maioria, de mulheres. Embora homens e mulheres estejam em reclusão neste momento – podendo, portanto dividir as tarefas domésticas e os cuidados com filhos – coube às mulheres desvelar – mais uma vez! – uma clássica questão dos debates feministas: mulheres arcam com o acúmulo e com a sobrecarga de tarefas no ambiente familiar. É preciso lembrar que com a sobrecarga o cansaço físico, emocional e mental aparecem e enfraquecem o sistema imunológico nos deixando sujeitas, portanto, às diversas infecções e doenças, inclusive a COVID-19.
Para além da iniquidade referente à divisão dos trabalhos domésticos, o Coronavirus nos obriga a evidenciar outras situações nas quais as relações de gênero apontam para inúmeras desigualdades entre homens e mulheres. Nesse sentido, uma série de reportagens on-line vem sendo veiculadas em diversos jornais de circulação nacional e internacional.
O site Centre for Feminist Foreign Policy[ii] (Centro de Política Feminista Estrangeira/do exterior, em tradução livre) fez um compilado daquelas que podem ser consideradas as mais expressivas. É sobre estas reportagens, disponíveis no site em questão, que escrevo agora minha reflexão. Quando necessário, trarei outras que – embora não disponíveis neste repositório – também nos ajudam a pensar a temática.
Ainda falando sobre as relações de gênero estabelecidas e vivenciadas no âmbito doméstico, vem sendo notificado em diversos países uma crescente onda de violência física e sexual contra as mulheres.
Países como China, França e Reino Unido já anunciaram que as medidas de quarentena impostas em todo o mundo, associadas ao uso indiscriminado de álcool e das dificuldades financeiras – que surgem a partir da impossibilidade de trabalhar – propiciam o desenvolvimento de comportamentos coercitivos, controladores e violentos por parte dos agressores [iii].
O distanciamento social – medida também imposta para contenção do Coronavirus – faz com que muitas mulheres em situação de violência doméstica não tenham como procurar redes de apoio e atendimento. Já no Brasil, no dia 31 de março de 2020, o site do Senado Federal divulgou que os estados Rio de Janeiro, Santa Catarina, Paraná e Goiás já apresentam – durante o período de quarentena – um aumento de 9% nas ligações de denúncia através do número 180 (Central de Atendimento à Mulher)[iv]. Surgem campanhas de combate e enfretamento à violência contra mulher; é o caso do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) que divulgou em seu site oficial e redes sociais o seguinte slogan: “Quarentena sim! Violência não!”.
Outro ponto que precisa ser destacado nesta reflexão diz respeito aqueles que estão prestando os serviços básicos de saúde e que estão atualmente na linha de frente no combate à COVID-19, logo mais vulneráveis à exposição ao vírus. A reportagem veiculada no jornal The New York Times, no dia 12 de Março de 2020, intitulada Why Women May Face a Greater Risk of Catching Coronavirus (Por que as mulheres podem enfrentar um risco maior de pegar Coronavírus, em tradução livre), nos alerta que o mercado de trabalho da saúde ainda é bastante marcado por papéis de gênero[v].
Atualmente, em escala global, as mulheres representam cerca de 70% da força de trabalho na área de saúde. Ou seja, são as médicas, enfermeiras, técnicas de enfermagem e agentes de saúde que estarão mais expostas ao novo vírus.
Segundo a médica norte-americana Celine Gounder, especialista em doenças infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade de New York, as enfermeiras estão mais propensas à exposição ao Coronavirus do que médicos ou médicas, afinal são as enfermeiras e técnicas de enfermagem que estão em contato direto com as secreções que facilitam o contágio e disseminação da COVID-19 como, por exemplo, saliva, catarro e fezes.
Além disso, no que diz respeito aos cuidados com doentes no âmbito doméstico, mais uma vez as mulheres em todo o mundo têm maior probabilidade de assumir esta tarefa caso alguém na família seja acometido/a pelo Coronavirus.
A mesma reportagem ainda pontua outra questão: as epidemias e as pandemias geram impactos econômicos desproporcionais entre homens e mulheres. São as mulheres que ocupam grande parte dos trabalhos informais e de meio período. Esses trabalhos, por sua vez, são os primeiros a serem descartados ou mesmo dispensados em períodos de incerteza econômica.
No Brasil, o Ministério do Trabalho (MT) veiculou em Nota Técnica 04/2020, no dia 17 de Março de 2020, que trabalhadoras e trabalhadores domésticos devem ser dispensados de seus trabalhos sem que, contudo, percam sua remuneração e/ou direitos trabalhistas[vi].
Apesar da nota do MT, não é um consenso entre “patrões” e “patroas” que usufruem dos serviços desta categoria[vii]. É de conhecimento geral que em nosso país a primeira vítima fatal da COVID-19 foi uma trabalhadora doméstica, de 63 anos, que contraiu o vírus de sua empregadora que, apesar de apresentar os sintomas característicos da doença, recusou-se a dispensá-la[viii].
Por fim, ainda sobre esta questão, é comum que em tempos de pandemia muitas mulheres desistam de seus empregos e/ou mesmo de suas fontes de renda para ficar em casa cuidando de suas famílias. Muitas delas enfrentarão, futuramente, dificuldades para voltar ao mercado de trabalho, mesmo depois de findado o período de pandemia.
Pouco ainda se fala no Brasil da paralisação ou suspensão de serviços essenciais para a manutenção da vida sexual e reprodutiva das mulheres em tempos de pandemia COVID-19.
Contudo, o artigo científico recentemente publicado por Julia Houssein – Editora Chefe da Revista Sexual and Reproductive Health Matters -, aponta algumas dificuldades que poderemos enfrentar futuramente. Para Houssein, com a emergência dos atendimentos direcionados à COVID-19 surgirão desequilíbrios na prestação de serviços de saúde das mulheres como, por exemplo, interrupção dos serviços essenciais de rotina como, por exemplo, os exames de Papanicolau e os acompanhamentos pré-natal.
Para a autora, os serviços de saúde materna e reprodutiva podem ser os mais atingidos uma vez que as com instalações médicas estarão limitadas às áreas de isolamento da COVID-19. Mulheres em trabalho de parto e bebês recém-nascidos deverão enfrentar escassez e falta de infra-estrutura no atendimento hospitalar (HOUSSEIN, 2020)[ix] o que, por sua vez, pode ocasionar altos índices de mortalidade materna e infantil.
Para finalizar esta reflexão é preciso que realizamos uma pergunta crucial: Quem está tomando as principais decisões sobre respostas à pandemia COVID-19?
É de conhecimento de todos que os líderes mundiais são majoritariamente homens, e esses homens tendem – vias de regra – a representar uma elite e um grupo social dominante em escala global. Da mesma forma, na publicação Global Health Report[x] do ano de 2019,constata-se que 72% dos chefes executivos em saúde global são homens.
Contudo, é urgente adotar uma postura feminista ativa e eficaz para o enfrentamento e para sobrevivência frente ao Coronavírus. Ou seja, é preciso que as parcelas mais vulneráveis de nossa sociedade – mulheres negras, mulheres mais pobres, trabalhadoras informais – sejam levadas em consideração no enfretamento à pandemia COVID-19.
*Antropóloga e professora na Universidade Federal do Tocantins. Contato: mariane.pisani@uft.edu.br
Links de referência:
[ii] https://centreforfeministforeignpolicy.org/
[v] https://www.nytimes.com/2020/03/12/us/women-coronavirus-greater-risk.html
[vi] https://mpt.mp.br/pgt/noticias/nota-tecnica-no-4-coronavirus-1.pdf
[ix] Hussein, Julia. COVID-19: What implications for sexual and reproductive health and rights globally? IN Sexual and Reproductive Health Matters. Londres, 2020.
[x] https://globalhealth5050.org/wp-content/uploads/2019/03/Equality-Works.pdf
Referência imagética: Campanha do Tribunal de Justiça da Bahia: Quarenta, sim! Violência, NÃO!