Biancka Miranda[1]
Marcia Baratto
O Cacique Natanael Munduruku disse, em entrevista de agosto do ano passado, que não deveria ser necessário demarcar terras. Afinal, os indígenas já vivem nelas desde que o mundo é mundo. Porém, ‘veio o branco e inventou o papel’[i]! E agora o indígena, representante dos povos originários das Américas, tem de provar o uso ou a ocupação de seus territórios através desse papel; reiterando, assim, a lógica do homem branco colonizador. Este documento não é para os indígenas, mas para aqueles que insistem em ocupar suas terras de forma violenta e opressiva desde que o Brasil deixou de ser Pindorama. A comprovação de propriedade através de documentos formais que atestem para o mundo do direito – branco e construído pelo colonizador – aquilo que sempre foi parte integrante da história dos povos indígenas revela a tentativa de evitar o esbulho destas terras e o confronto violento, sendo um retrato pertinente do embate sobre o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas no Brasil.
No governo Bolsonaro, a disputa vem se agravando em torno da oficialidade dos territórios indígenas (TI), expressando-se na polarização entre o direito de uso coletivo das terras indígenas pelos povos originários versus os interesses de exploração econômica dos setores do agronegócio e da mineração. Também somadas aos tradicionais interesses que confrontam os direitos indígenas no Brasil, no atual governo ganha fôlego o papel de setores religiosos conservadores e anti-demarcação de terras indígenas – setores esses que configuram a base de apoio evangélica de Bolsonaro. Mudar o marco legal dos direitos indígenas é medida necessária ao desenvolvimento econômico, e parte essencial da missão civilizatória cristã que agora recebe apoio estatal.[ii]
É sobre a oficialidade dos direitos de uso coletivo das terras indígenas que as ações deste governo se movem, em tentativas de remodelar quem pode acessar essas terras, retirando proteções específicas dos modos tradicionais de vida dos indígenas e também de outras comunidades. Logo, não se trata mais de ‘papel’ para que povos originários comprovem sua existência através de seus territórios, mas de medidas para assegurar aos brancos a exploração de terras que antes pertenciam àqueles. Essa inversão, que contém e limita o exercício de direitos dos povos indígenas tal qual assegurados pela Constituição de 1988, passa fundamentalmente pela redefinição das funções da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
A FUNAI, criada em 1967, no período da ditadura militar no Brasil, tem como objetivo oficial a proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas e, dentre eles, a demarcação e regularização de suas terras, sejam elas oficialmente reconhecidas ou em vias de reconhecimento. A ação desta instituição deveria orientar-se, pois, pelos princípios que assegurassem as tradições dos viveres indígenas, incluindo os meios de vida e reprodução social não-capitalistas. O uso coletivo das terras e a existência das reservas indígenas são exemplos de formas jurídicas de propriedade não individual que permitiriam aos povos originários viverem de acordo com seus próprios códigos sociais. Se assim o fizesse, a Funai contribuiria para o respeito à diversidade e consolidaria as conquistas na “Constituição cidadã” de 1988[2], que reconhece o Estado brasileiro como pluriétnico. Tal reconhecimento jurídico e político de tolerância multicultural está sendo desafiado pelo governo Bolsonaro, que insiste no discurso oficial do progresso econômico como primeira medida de tratamento das comunidades e povos indígenas. Desde a instalação da nova direção da FUNAI, o órgão tornou-se a ameaça institucionalizada à proteção dos direitos indígenas. No sentido de verificar esta hipótese, o artigo tratará de três ações recentes da Funai que demonstram este papel às avessas que vem cumprindo no governo Bolsonaro
A primeira ação exemplificadora é o Despacho no 01026/2019[iii], publicado quando a Funai respondeu à uma recomendação conjunta do Ministério Público Federal (MPF) e da Defensoria Pública da União (DPU). Ambos os órgãos solicitavam a manutenção do fluxo de serviços públicos, por meio do envio de funcionários, para comunidades indígenas em TI homologadas, assim como aquelas em vias de homologação. O pedido era para assegurar, sem discriminação, os mesmos serviços essenciais para povos indígenas em quaisquer terras, homologadas ou não.
O responsável pela resposta da FUNAI, manifesta no despacho supracitado, chamou as comunidades indígenas tradicionais de ‘invasoras’ ou ‘danificadoras’ das terras em disputa e complementou que a continuidade de qualquer auxílio no acesso à direitos fundamentais de pessoas indígenas nestas áreas a serem demarcadas não poderia ser feito, sob a ameaça de onerar indevidamente o Estado e estimular danos a propriedade privada.
A Portaria 419/2020 é outra medida que chegou a ameaçar a segurança dos povos isolados e de contato recente. Essa Portaria, decretada em meio à crise do coronavírus, possibilitaria que as Coordenações Regionais da FUNAI, espalhadas pelo país, autorizassem o contato com esses índios – o que hoje é uma prerrogativa da Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato da FUNAI (CGIIRC). Felizmente, com o impedimento da portaria pela atuação do Ministério Público[iv], garantiu-se que apenas a CGIIRC pode determinar medidas de contato durante a pandemia, como já previa regimento interno da FUNAI. O fato é que a negligência a com o próprio regulamento não passou despercebido por ativistas indigenistas[v], e agravou a já instalada desconfiança em torno da competência da gestão do órgão, presidido pelo delegado Marcelo Augusto Xavier. Acima de tudo, porque o atual presidente foi acusado de agressão e afastado da operação para retirada de invasores de terras indígenas, ocorrida no Mato Grosso do Sul, por ele ter sido possível colaborador dos invasores[vi].
Por fim, o terceiro exemplo. No dia 22 de abril de 2020, Marcelo Augusto Xavier da Silva, imbuído de sua competência legal para “editar atos normativos internos”, emitiu a instrução Normativa no 9/2020[vii]. Esta medida alterou o regime de emissão do documento chamado “Declaração de Reconhecimento de Limites”[3] que, até então, tinha por finalidade fornecer aos proprietários de imóveis rurais mera certificação de que fossem respeitados os limites com os imóveis vizinhos onde vivem indígenas. Agora, a FUNAI certificará que os limites de imóveis, e até mesmo de posses (ocupações sem escritura pública), não incidam apenas para (TIs) homologadas por decreto do presidente da República, mas sobre qualquer propriedade privada ou pública. Eis o sentido da antecipação administrativa do Projeto de Lei da Grilagem (PL 2,633/2020) na questão indígena. Em reação a esta Instrução Normativa, o Ministério Público Federal (MPF) acionou judicialmente a FUNAI e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em razão da inconstitucionalidade da Instrução Normativa n. 09/2020. Para o MPF, a normativa representa retrocesso na proteção socioambiental, incentivando grilagem de terras e conflitos fundiários, além de restringir indevidamente o direito dos indígenas às suas terras. Enfim, na espera pela derrubada também desta portaria, fica aberto cenário propício à tomada violenta das terras e ao assassinato de indígenas.
O governo Bolsonaro define um cenário ainda mais restritivo e negativo para o respeito aos povos originários do aquele visto na década anterior. Nele, a política passou a ser a da aniquilação das culturas tradicionais indígenas. Políticas de representação, de modo geral, estão sob ameaça, assim como o princípio do uso coletivo das terras indígenas assegurado em Capítulo da Constituição de 1988[4]. Aos povos e comunidades, cabe continuar lutando contra a assimilação e extermínio. E eles, que se fazem representar por atores como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e Coordenações Regionais, contam com apoio de vários segmentos da sociedade civil também fora do Brasil, sendo que o etnogenocídio, promovido com o apoio e a incompetência do governo, tem sido ferozmente denunciado. A resistência permanece, mesmo em tempos sombrios, e tempos como esses não são excepcionais na história dos povos indígenas no Brasil.
“A Terra, para seus povos originários, não é mera propriedade, é a própria possibilidade de existência da vida. Índios não possuem a Terra, a Terra é quem os possui”.
Notas
[1] Biancka Miranda e Marcia Baratto são cientistas política e ativistas pelos direitos humanos. Vivem em Munique e fazem parte da Aruanas Initiative pela Democracia
[2] A constituição, através de seus Artigos 231 e 232, rompeu “com a lógica tutelar, assimilacionista, integracionista, portanto genocida e etnocida”, vigente desde que o Brasil deixou de ser Pindorama. Estas conquistas foram impulsionadas pelo movimento dos povos originários com forte apoio de amplos setores da sociedade civil. No entanto, apesar das garantias constitucionais, os direitos indígenas têm sido sistematicamente desrespeitados e negados pela maioria dos governos.
[3] Este cenário é possível (fica facilitado), porque, dentre outros fatores, não existe um registro único de terras nem um cadastro específico para as grandes propriedades. Além disso, não há uma articulação e cruzamento de dados entre os órgãos fundiários nos três níveis de governo (federal, estadual e municipal). Ao mesmo tempo que existe uma profusão de títulos de propriedade para uma mesma área e fiscalização ineficiente juntos aos Cartórios de Registro Imobiliário. Nesse contexto, multiplicam-se as terras de papel e leva-se a uma situação onde as propriedades privadas podem chegar a uma dimensão maior do que a própria Amazônia.
[4] Desde os anos 2000, políticas públicas de representação e de expansão de direitos sociais, como saúde e educação estavam avançando. A graduação em Universidades em conhecimentos indígenas foi criada para capacitar professores em educação intercultural com a preservação das línguas indígenas e da cultura. Foi criado o Plano Nacional de Saúde Indígena, com a alocação de médicos cubanos para áreas de terras. Oficialmente, a política de reconhecimento do valor inerente dos povos indígenas para a história futura do país estava assegurada.
[i] MUNDUKURU, Cacique Natanael, Brasilia, 2019.
[ii] Folha de São Paulo. ´Governo Bolsonaro nomeia evangelizador de indígenas para chefiar setor de índios isolados‘. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/02/governo-bolsonaro-nomeia-evangelizador-de-indigenas-para-chefiar-setor-de-indios-isolados.shtml acessado em 20/03/2020.
[iii] FUNAI, 2019. Despacho nº 01026/2019/GAB/PFE/PFE-FUNAI/PGF/AGU
[iv] MPF. Covid-19: Funai acata recomendação do MPF para garantir proteção a indígenas isolados. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/covid-19-funai-acata-recomendacao-do-mpf-para-garantir-protecao-a-indigenas-isolados
[v] O Globo. Portaria da Funai sobre Coronavirus e Indíos isolados contraria o próprio regimento do órgão. https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2020/03/18/portaria-da-funai-sobre-coronavirus-e-indios-isolados-contraria-regimento-do-proprio-orgao.ghtml acessado em 18/03/2020.
[vi] BBC Brasil. Presidente da Funai de Bolsonaro é investigado porque teria dado soco no rosto do próprio pai. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49173621 acessado em 12/15/2019.
[vii] FUNAI, 2020. Instrução Normativa n 9/2020, disponível em: Instrução Normativa nº 9/2020.
Referência imagética:
https://www.brasil247.com/brasil/governo-bolsonaro-comunica-a-diplomatas-europeus-que-vai-liberar-mineracao-em-terras-indigenas (Acesso em 2 jun. 2020)