J. A. Lindgren-Alves*
No panorama apavorante em que se encontrava o Brasil desde meados de março, quando autoridades estaduais e municipais começaram a adotar medidas de isolamento social para reduzir a disseminação do coronavírus, indo contra a vontade do Presidente da República, a situação política do país foi-se agravando de tal maneira, junto com a tragédia sanitária, que outras questões graves não tinham condições de se impor na consciência do público. Era o caso das violações de direitos humanos acirradas como efeitos colaterais da pandemia.
Denúncias de abusos e retrocessos feitas pela sociedade civil se haviam intensificado desde a posse do governo e continuavam sem interrupção, mas ecoando pouco no país. As autoridades federais, quando as ouviam, desqualificavam-nas como “comunistas” e atentatórias à soberania nacional. Surpreendentemente, na constrangedora reunião ministerial de 22 de abril, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tomou a palavra para assinalar, com veemência, a massa de queixas diárias de violações que sua pasta estaria recebendo. Em suas palavras:
“Idosos estão sendo algemados e jogados dentro de camburões no Brasil. Mulheres sendo jogadas no chão e algemadas sem terem feito nada. Estamos vendo padres sendo multados em noventa mil reais porque estavam dentro da igreja com dois fiéis.[1] A maior violação de direitos humanos da história do Brasil nos últimos trinta anos está acontecendo neste momento. Mas estamos tomando providências.”
Se a intervenção foi inesperada, as providências aludidas eram chocantes. Nada tinham a ver com a omissão federal no controle do coronavírus, nem com a situação aflitiva dos segmentos populacionais desfavorecidos. Tampouco tinham a ver com o aumento das agressões domésticas a mulheres propiciadas pela quarentena, amplamente divulgado por seu ministério. Na ânsia de reforçar o egocentrismo do Presidente contra todos os discordantes, as providências da ministra, integrante do chamado “grupo ideológico” do Executivo, seriam ações judiciais para punir, não os perpetradores das violações, mas os governadores e prefeitos que haviam imposto o confinamento nas jurisdições respectivas.
Para tentar compreender de maneira racional esse tipo de atitude, absurda para quem a vê de fora, normal para quem a assume, é preciso apreender um pouco da ideologia desse grupo.
Curiosamente, “ideologia” era vocábulo usado pelo Presidente exclusivamente para “os outros”, que ele opunha como responsáveis pela implantação de valores degenerados no país, como a chamada “ideologia de gênero”. Embora o comportamento presidencial demonstrasse seu condicionamento ultradireitista em quase tudo, “ideologia” para ele seria sempre de esquerda, socialista ou comunista, hegemônica no Brasil desde o fim do regime militar. A direita não teria ideologia. Por mais que essa seja a ideia que se pretendia fazer passar no mundo globalizado pelo capitalismo neoliberal desde o desmoronamento do comunismo como alternativa, a posição do governo era diferente, voltada inteiramente para a área sociocultural. A postura antiideológica do Presidente, que sempre assinalou nada saber de economia, não dava atenção tampouco aos escritos do funcionário da carreira diplomática escolhido para chanceler, que desde antes de assumir as funções, tentava conferir um lustro intelectual às atitudes arrogantes do Presidente Trump, prosseguindo depois com as da família Bolsonaro. O diplomata, por sua vez, ao mascarar com circunlóquios supostamente eruditos o irracionalismo das atitudes presidenciais, desconsiderava desde então o aspecto mais atraente do populismo do chefe: seu primitivismo antiintelectual, provocado por ignorância e soberba, copiado de maneira feroz por seus seguidores, nas ruas, nas redes sociais, na vida pública, no Ministério da Educação.
Malgrado todos os percalços, uma ideologia sincrética, que escapa a classificações abrangentes, perpassa a atuação do Executivo com certa coerência. Exige, portanto, atenção de todos os que se lhe opõem, em particular dos que se dedicam à área dos direitos humanos. Ainda que para isso seja necessário coser, como em colcha de retalhos, preconceitos e chavões, com aportes simplificados das ideologias extremistas da direita do Século XX.
Circunstâncias que facilitam sua penetração
Começando pela obsessão militarista, com louvores à repressão e aos abusos nefandos de torcionários conhecidos, é preciso, para obstá-la, ter em mente fatores conjunturais relevantes.
A maior parte da população brasileira nasceu muito depois do período militar, iniciado em 1964. Não tem experiência vivida para saber o quanto aquela ditadura multifásica representou na generalização do medo. Não somente por meio de batidas e invasões sinistras, bisbilhotice, detenções abusivas, desaparecimentos e torturas. O receio de delações infundadas, desconfiança de todos e sensação de insegurança permanente abarcava os cidadãos comuns, não envolvidos na luta armada. A maioria atual ignora, sobretudo, que os pavores rotineiros provocados pelas ações do regime não eram sequer compensados por tranquilidade com relação ao crime comum, ou por menor corrupção no país.
Por outro lado, a par desses aspectos empíricos, os jovens idealistas de hoje não parecem haver compreendido adequadamente o quanto os direitos universais, declarados pela ONU em 1948, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, foram instrumentos formidáveis nas lutas pela redemocratização do Brasil. Tal como o vinham sendo alhures, para a erradicação de outros regimes opressivos, de direita e de esquerda, constituindo fatores conducentes ao fim da Guerra Fria.
Um pouco em virtude desses dois fatores de natureza distinta, uma parte não negligenciável da juventude e mocidade brasileiras tenha sido tão facilmente conquistada pelo populismo de extrema direita, contra a “velha política corrupta”, as instituições da democracia representativa, o Judiciário independente e o discurso dos direitos.
A ideologia do governo e sua retroalimentação
Chamar a ideologia do Executivo atual de “conservadora”, de simples “direita”, ou até mesmo “fascista”, é prestar-lhe uma reverência. A reação de um general no governo contra comparação feita por ministro do Supremo entre a situação do Brasil com a da Alemanha em 1933, num momento de tensão elevada em Brasília, com manifestantes cobrando o fechamento de instituições democráticas, foi positiva, mas de interpretação duvidosa. Não dava para entender se era um desabafo individual patriótico ou um ultimato ao Supremo para possível intervenção militar. Consta que os militares no governo, apesar de gestos de devoção a seu chefe, não se enquadrem integralmente na ideologia dominante. Talvez. Que esta assume riscos de comparações com o nazismo, assume. Basta notar a semelhança, difícil da não ser percebida, do slogan “Brasil acima de tudo” com o “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über Alles), de conhecidos efeitos funestos. O ex-Secretário de Cultura que imitou Goebbels não foi exonerado porque sua fala ia além do programado. Caiu porque a cena hitlerista, com fundo musical wagneriano, ofendeu a comunidade judaica. Esta, por sua vez, é cultivada pelos protestantes fundamentalistas em função de ensinamentos do Velho Testamento, sem qualquer pitada de tolerância humanista. Pode não ser deles a autoria, mas certamente lhes agrada a complementação do slogan com um segundo refrão “Deus acima de todos”.
Variação superficial e racista do velho fascismo italiano, o nazismo místico de Hitler, para ser rejeitado, é dado como ideologia de esquerda, como o comunismo, rotulação considerada infamante para tudo o que não seja de ultradireita. “Neoliberal” no campo econômico é apenas o Ministro da Economia, aliado circunstancial de 2018. De “Estado mínimo” a ideologia presidencial tem pouco. Autoritária e absolutista, tem tudo com a ideia de amor ao líder, pregado por Mussolini. Seu argumento é a confrontação, numa relação polarizada que encara o adversário como inimigo, a ser vencido e eliminado.
Nesse contexto desafiador, a escolha de pessoas contrárias aos objetivos da função para a qual são indicadas não é mera provocação. O objetivo assumido como prioridade, em vídeos do Presidente, consiste em desconstruir tudo o que foi feito pela “ideologia” de esquerda, na imposição de costumes decadentes ao país, a fim de restabelecer crenças e práticas anacrônicas como valores nacionais autênticos. Com eles o Brasil voltaria a ser – se é que algum dia o foi – uma nação homogênea, conservadora, sem diversidades, classes sociais ou fissuras, de religião pentecostal cristã, contrária ao racionalismo científico, ao iluminismo e à liberdade acadêmica. Idealmente, talvez, a exemplo de alguns de seus equivalentes islâmicos, uma “República Evangélica do Brasil”, a perdurar como um segundo império, branco, patriarcal, mercantilista e escravagista.
Tradicionalista radical, a força do bolsonarismo não vem apenas de dentro. É alimentada de fora, pela direita vitoriosa alhures, e retroalimentada pelas posturas contraproducentes de militâncias de esquerda com discurso de direitos humanos. Esse discurso, identitário, dito “progressista”, malgrado contradições intrínsecas e irrealismo circunstancial chocante, prevalecia no Brasil e no exterior, pelo menos até a presente expansão do coronavírus em ameaça planetária.
O Percurso de Duas Vias
Desde o início da campanha eleitoral, os militantes de direitos viam com apreensão o candidato Jair Bolsonaro. O ex-capitão do Exército fizera toda a carreira de deputado com louvores ao regime militar. Suas atitudes sempre foram contrárias à proteção de minorias, aos movimentos antirracistas, ao feminismo, aos LGBTIs, aos defensores de presidiários, aos povos indígenas, à preservação do meio ambiente, às manifestações de cultura laica, às artes, à academia, aos intelectuais em geral, a tudo que pudesse ser declarado “politicamente correto”. Foi seu discurso agressivo, repetitivo e simplório, que lhe angariou uma massa de seguidores fanáticos, ativíssimos nas redes sociais. Ao comportamento tosco, de efeito populista notável, somaram-se crenças retrógradas de fundamentalistas evangélicos, misturados à paranoia de um guru megalomaníaco desbocado, residente nos Estados Unidos, que, como a extrema direita intelectualizada euro-americana, vê conspirações comunistas em tudo. Culminando essa receita indigesta de como ganhar eleições, há o modelo vivo, egocêntrico e vitorioso do milionário Donald Trump, assumidamente amado e copiado por aprendiz sem recursos.
Enquanto esses elementos se juntam como princípio ativo do lado da emissão, outros fatores influem de parte da recepção. Ao contrário dos anos 90, os direitos humanos perderam popularidade. As razões dessa perda são muitas, e as analisei em outros textos.[2] O que importa no presente ensaio é notar que a maioria dos eleitores, no Brasil e em outros países, perdeu a admiração por eles. Destroçados pela economia neoliberal e confundidos com reivindicações em favor de grupos, parecem provocações perante necessidades imediatas mais amplas. Com base no que ocorre nos Estados Unidos e na Europa, Yascha Mounk explicita que, “…ansiosos com o futuro, os cidadãos passaram a ver a política como um jogo de soma zero – um jogo em que todo ganho para imigrantes ou minorias étnicas será obtido à sua custa”.[3] Embora no Brasil as minorias desse tipo sejam mais integradas, reações assemelhadas se encontram entre as populações afetadas de Roraima, contra venezuelanos, de São Paulo, contra bolivianos, africanos e brasileiros nordestinos.
O discurso dos direitos é omnívoro. Assim como abraça necessidades individuais de todos, reforça postulações difusas (direitos à autodeterminação, ao desenvolvimento, à paz etc.) e serve à construção de categorias normativas para proteger coletividades específicas (povos indígenas, minorias nacionais, religiosas ou linguísticas, populações campesinas, trabalhadores migrantes etc.). Enquanto isso era positivo “como ponto de apoio para as reivindicações jurídicas dos desprivilegiados”, no dizer irretocável de Celso Lafer em tempos mais favoráveis,[4] hoje a situação é distinta e se agrava desde o início do século. Já existem movimentos ativos que, contra a posição racional de juristas, pretendem estender a titularidade dos direitos humanos a animais (movimento “especista”), à natureza (variação do ambientalismo), em breve, provavelmente, a cyborgs e robôs autônomos de inteligência artificial.
Costas Douzinas observa que “(U)ma atração intelectual principal do discurso dos direitos é a sua capacidade de descrever situações sociais e políticas complexas e, especialmente, conflitos, em termos normativos simples. Mas esse também é seu efeito mais grave”.[5] O uso excessivo da expressão “direitos humanos” em reivindicações para os “diferentes” não somente acarreta perda de sentido para ela, como serve de munição aos opostos. É esse o fenômeno que ocorre com a cobrança exagerada de “direitos” para a população carcerária, menores infratores, criminosos armados e casos assemelhados, alimentando sua interpretação como “direitos de bandidos”.[6] O mesmo tipo de reação existe em outras áreas.
A “diferença” é fator protegido pelo princípio da não discriminação. Direitos especiais não se enquadram no espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas em 1948. Por se tratar de instrumento que tudo pode digerir, o discurso dos direitos humanos não precisa ser insaciável. O identitarismo sempre foi historicamente de direita, cultivadora demagógica de tradições nacionais tacanhas. Em fase de reversão política conservadora, desprovida de crenças revolucionárias utópicas, a extensão irrealista desse discurso confere aos direitos humanos feições meramente irritantes. É delas o retroalimento que ajuda a eleger a direita.
Isso pode ser evitado, sem prejuízo dos destinatários. Para tanto é necessário que o ativismo tenha consciência prática dos riscos de retração eleitoral que o falso “progressismo” implica. Se progressistas consequentes não tomarem a dianteira na correção de exageros, a direita a tomará para finalidades retrógradas. É o que tem ocorrido com o discurso obsessivo da “igualdade de gênero”, dos direitos sexuais e do multiculturalismo diferencial, exageradamente martelados em oportunidades absurdas.
Direitos na Pandemia
Tendo sido dos primeiros a apontar tais tendências contraproducentes, por mais que eu desconfiasse das motivações do novo governo brasileiro ao substituir a Secretaria Especial dos Direitos Humanos por um Ministério abrangente, para a Mulher, a Família e os Direitos Humanos, decidi não internalizar de imediato as críticas da sociedade civil. Apesar das declarações bobocas dessa pastora evangélica nomeada para a pasta, optei por esperar para ver o que faria. Pelo que pude acompanhar, embora o governo tivesse ojeriza pelo que ele próprio denomina “ideologia de gênero”, as disposições normativas existentes sobre a mulher, ou a igualdade de direitos civis dos homossexuais, não chegaram a ser revertidas. Problemas houve muitos, em muitas áreas, fora do novo Ministério. O vexame da reviravolta de posições externas sobre direitos reprodutivos e sobre a palavra “gênero” ficou, como muitas outras, por conta exclusiva do chanceler, que “ideologizou” totalmente o Itamaraty e nossa política externa.
O discurso da Ministra na primeira sessão do Conselho de Direitos Humanos, em 25 de fevereiro de 2019, não era substancialmente ruim. Prometia continuidade nos compromissos do Brasil, incluindo uma promessa de apresentação dos relatórios atrasados a órgãos de tratado. Ressaltou sua dedicação pessoal aos direitos dos povos indígenas, ilustrando-a com a filha adotiva de origem camaiurá. Referiu-se à Venezuela, expressando preocupação com as violações “cometidas pelo regime ilegítimo do ditador Nicolás Maduro” e apelando à comunidade internacional para reconhecer “o governo legítimo de Guaidó”.[7] O Brasil era, então, candidato a membro do Conselho nas eleições que iriam ocorrer na Assembleia Geral, no final do ano. Malgrado a oposição de ONGs importantes, o país foi eleito. Isso era previsível pelo fato de haver apenas dois Estados postulantes, precisamente Brasil e Venezuela, para as duas vagas disponíveis para a América Latina.
A desativação ou descaracterização de órgãos e comissões importantes na área interna, como a Comissão dos Desaparecidos, decorreu de escolhas presidenciais. Da pasta de direitos humanos, poucas ações se viam. Algumas, pontuais, em defesa de crianças, mulheres em situação difícil, saúde de indígenas, soavam positivas. Na área externa, o Brasil patrocinou resolução do Conselho de Direitos Humanos que determinava o envio de missão de investigação à Venezuela, a ser nomeada pela Alta Comissária, para examinar “execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e torturas, desde 2014” (Resolução 42/25, de 27/09/2019). Pouco importava que o Presidente da República tivesse escrito absurdos contra a Alta Comissária, Michelle Bachelet, ex-Presidente do Chile, quando ela, pela primeira vez, em 2019, mostrou preocupação com a situação do Brasil.
Em 2020, o discurso da Ministra no Conselho, em 24 de fevereiro, começou assinalando uma redução de 20% no número de homicídios, resultado de políticas de segurança – aparentemente do então Ministro da Justiça, que seria levado à demissão pouco depois, por outros motivos. Seguiu-se o anúncio de uma nova ouvidoria em seu Ministério, cuja central telefônica vinha atendendo 20.000 chamadas por dia. O restante foram referências ao combate à corrupção, a reforço do programa Bolsa Família, a novas leis de proteção às mulheres e crianças, a LGBTs nos presídios, ao fortalecimento do SUS. Reiterou a promessa de atualização de relatórios devidos e voltou a condenar o regime de Maduro na Venezuela.[8] Retirou-se do recinto, mais tarde, em sinal de protesto, quando o chanceler venezuelano subiu ao pódio para fazer seu discurso.
Com base nesses elementos, que não chegaram a representar retrocessos, não poderia ser mais lamentável a intervenção da mesma autoridade na reunião ministerial de 22 de abril. Não porque as denúncias referidas fossem duvidosas. Abusos na aplicação de medidas de prevenção ao coronavírus são reais e frequentes. A par dos perpetradores dos abusos citados, deveriam ser punidos os desviadores de fundos para hospitais públicos, os que praticam superfaturamento de material médico-hospitalar, os 620 mil brasileiros civis e militares com recursos, alguns dos quais empresários afluentes, que se inscreveram, sem direito, para receber o auxílio emergencial de 600 reais do Estado, os celerados que roubam o mesmo auxílio emergencial das contas de pobres, os religiosos que utilizam o medo da pandemia para vender salvações milagrosas, como os pastores que comercializam água imunizadora em garrafas, ou um feijão curativo por 1.000 reais o quilo, com anúncios na televisão. Sem falar no mau exemplo do Presidente, sem máscara, em concentrações de pessoas. Mais grave que tudo isso é, contudo, a rejeição presidencial ferrenha às medidas de prevenção ao contágio. As ações judiciais contempladas pela Ministra, mais do que simples desvios, constituem uma fraude, uma falsificação grotesca da ideia dos direitos humanos. Para agradar ao errado, propunham castigar o correto.
Quando as vítimas do coronavírus haviam ultrapassado um milhão, em meados de junho, essa inversão era a tônica do Executivo federal, sempre negativista da tragédia sanitária e insensível diante da mortandade de seus compatriotas: a culpa pelo aumento de casos seria dos Governadores e Prefeitos.
Genocídio, Eugenia ou Loucura?
A situação que vivia o Brasil em junho soava inacreditável. O cargo de Ministro da Saúde permanecia vago em plena explosão epidêmica. O chefe do Executivo usava os fins de semana em passeios de jet ski, giros de helicóptero e comparecimento a manifestações de apoio que pediam intervenção militar. Numa delas desfilou garbosamente a cavalo, em pose de dar inveja a todos os grandes fascistas. Enquanto a televisão mostrava gente desesperada na porta de hospitais sem leitos, sem respiradores e sem médicos, o Presidente se dedicava a armar a população, a proteger seus parentes de investigações criminais necessárias, a provocar a imprensa, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal. Seu esforço contra a pandemia reduziu-se a um jejum dominical com pastores.
Quando advogados aventaram a possibilidade de um processo internacional contra o Presidente pelo crime de genocídio, minha reação foi descrente. Na Convenção de 1948, a tipificação decorre da intencionalidade. Atos de genocídio são aqueles praticados com a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” (Artigo II). Com o passar do tempo, minha reação mudou. Os interessados no reinício imediato das atividades econômicas diziam que, nos segmentos sociais elevados, a curva de expansão da doença já estava em posição descendente. Justificavam assim o fim do isolamento para jovens e adultos ativos. A quarentena seria para idosos e demais pessoas de risco. Epidemiologistas foram então os primeiros a indagar se isso não seria eugenia. Não lembrava a seleção dos mais fortes, praticada na Alemanha nazista? Não vejo circunstâncias idênticas, mas reconheço resultados parecidos. Não em pessoas com recursos, fisicamente mais fracas. Tampouco vejo genocídio contra um grupo racial específico, embora o movimento negro deva pensar ao contrário. Vejo sim um morticínio terrível na classe dos novos proletários, “trabalhadores informais” na logomaquia corrente, sem despertar maiores atenções nas classes favorecidas, exceto, naturalmente, seus velhos. Sem contar o lumpen crescente de excluídos do mercado, cuja constrangedora existência o mundo contemporâneo e as ideologias ignoram.
Em 19 de junho, os casos de coronavírus acumulados no Brasil ultrapassaram um milhão. Dois dias depois, os óbitos passaram de 50.000. Em Ruanda, em 1994, onde o papel da Rádio Mille Collines teve papel semelhante ao das redes sociais aqui no fomento do ódio, o genocídio de tutsis pelos hutus teve um milhão de mortos. Os responsáveis ruandeses foram julgados por tribunal ad hoc da ONU, em Arusha. Na Bósnia, na mesma época, as vítimas mortais das três nacionalidades em luta – bosníacos, sérvios e croatas – nunca chegaram a esse número. Os principais responsáveis pelo morticínio entre as partes cumpriram sentenças na Haia por crimes contra a humanidade, embora somente um episódio, contra os muçulmanos de Srebrenica, fosse considerado genocídio.
No Brasil, afinal, o que ocorre? Um genocídio eugenista? Um crime contra humanidade, que atinge de preferência velhos pobres? Um surto de insanidade mental, que ameaça fisicamente o conjunto? Um caso de necropolítica para o poder soberano?[9] Uma chanchada grosseira que fortalece a pandemia mortífera?
Como a história comprova, no final, tudo será aceitável, menos o esquecimento, que permite repetir a tragédia.
Brasília, 25 de junho de 2020, 100° de confinamento do autor
Notas:
* Membro do Comitê Assessor do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
[1] Num período de lockdown em que, para evitar concentrações de pessoas, os templos religiosos também estavam interditados.
[2] Em especial no livro É Preciso Salvar Os Direitos Humanos! , S.Paulo, Ed. Perspectiva, 2018.
[3] Yascha Mounk, O povo contra a democracia, trad. Cássio de Arantes Leite e Débora Landsberg, S.Paulo, Companhia das Letras, 2018, p.31.
[4] Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos, S.Paulo, Cia das Letras, 1988, p. 131.
[5] Costas Douzinas, O Fim dos Direitos Humanos, trad. Luzia Araújo, São Leopoldo, Editora UNISINOS, 2009, p.257.
[6] Não são raras as pessoas pobres que, sem condições de sobrevivência decente, realmente veem os direitos de presidiários e suas famílias com inveja e rancor. Acabo de ouvir afirmação nessa linha de assistente social atuante em bairro pobre de Fortaleza.
[7]https://www.youtube.com/watch?v=fwBbLyp_e78
[8] https://www.youtube.com/watch?v=0QwV4s6Xl3Y
[9] V. Achille Mbembe, Necropolítica, trad. Renata Santini, S.Paulo, N-1 edições, 2020.