Paulo J. Krischke[1]
O texto a seguir é o prefácio ao livro de Francisco Canella, Entre o local e a cidade: memórias e experiências de duas gerações de moradores da periferia urbana em Florianópolis (1990-2010) (Editora Todapalavra).
Estou muito agradecido ao professor Francisco Canella por me haver permitido acompanhar a sua trajetória como pesquisador de sociologia urbana na cidade de Florianópolis, durante estas duas décadas de tão grandes mudanças em nosso país. Na verdade, estes meus comentários introdutórios a seu livro têm mais essa pretensão de assinalar os marcos gerais dessa mudança histórica, além de salientar algumas contribuições específicas que este livro oferece aos seus leitores.
O fato é que docentes e pesquisadores voltados à renovação científica, expansão e aprofundamento do ensino universitário no país, aproveitamos então a oportunidade oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC para formar e participar ativamente de um Núcleo de Estudos em Movimentos Sociais desta universidade, que agora já existe há 30 anos, e tem produzido muitos estudos, dissertações e teses acadêmicas, com bastante repercussão, no Brasil e no exterior. Isto só foi possível porque se inaugurava nessa época um período de transição à democracia no país, em que a “abertura” do regime militar sob o governo do General Figueiredo dera lugar a uma Constituinte Nacional em 1988, consagrando as liberdades individuais e coletivas, de associação e manifestação pública, que habilitaram ao exercício e expansão dos direitos de cidadania.
Nesse contexto ocorreu uma diversificação dos movimentos de moradores em bairros populares de Santa Catarina. Este estado da federação fora um dos poucos durante o regime militar que lograram criar e manter uma rede de apoio popular ao governo autoritário, controlando a distribuição e o acesso a bens e serviços de consumo coletivo (água, luz, iluminação, arruamentos, escolas, postos de saúde, policiamento, transporte, etc.) entre essas comunidades. Isto foi feito através principalmente da nomeação estatal de diretorias para os “Conselhos Comunitários”, que passaram a organizar o voto da população nas eleições que passaram então a ser feitas periodicamente no país. Nos bairros que não eram controlados pelos “Conselhos” surgiram “Associações de Moradores, geralmente lideradas pelo partido MDB e outros partidos minoritários, que se opunham ao regime militar e disputavam com os “Conselhos” o acesso aos bens e serviços de consumo coletivo. Outra rede ainda menor, autodenominada “Periferia”, era principalmente organizada por “Comunidades Eclesiais de Base” (CEBs), da Igreja Católica, que se opunham tanto aos “Conselhos” como às “Associações” e lideravam movimentos mais radicais de moradia (ocupação de espaços vagos, públicos e privados), como o Movimento dos “Sem Tetos” — estudado pelo Prof. Canella na primeira parte deste livro.
Como veremos adiante, esta primeira fase ou primeira “geração” dos movimentos de moradores dos bairros populares em Florianópolis foi constituída em meio a fortes conflitos e desafios aos costumes e tradições autoritários da política brasileira — até então contidos pela força durante o regime militar, mas gradualmente disputados pelo processo de democratização, que permitia e enfatizava a livre competição e negociação pelo acesso justo e equilibrado aos bens e serviços necessários à vida urbana.
O grande fascínio desta obra do Prof. Canella está no peculiar caráter comparativo com que examina as diferentes formas e conteúdos, métodos e objetivos de duas gerações de moradores de um mesmo bairro, às vezes membros das mesmas famílias, muitas vezes também amigos e vizinhos entre si. Isso tudo enquanto, mesmo assim, escolhem caminhos diversos, se não opostos, de inserção pessoal, profissional, social e coletiva, nos meandros, desafios e oportunidades da mesma cidade de Florianópolis. E que ainda também encontram, até hoje, dificuldades de inserção e reconhecimento de seus direitos como cidadãos desta cidade — não aquelas mesmas barreiras enfrentadas antes pela geração anterior, mas outras que também desafiam o sentido de justiça e pedem resolução ainda mais ampla dos poderes públicos e da cidadania.
O método e a ciência política comparativa surgiram nos Estados Unidos da Guerra Fria, para enaltecer as vantagens democráticas daquele país em comparação com as conquistas graduais de liberdade, realizadas no mundo inteiro (MUNCK, 2006). Mas hoje esse ângulo está profundamente alterado, por pesquisas comparativas como esta do Prof. Francisco Canella no Brasil. É claro que a própria cidade de Florianópolis também mudou muito (talvez dramaticamente) durante esse processo e período de tempo, para as duas gerações desse bairro estudado por Canella. A ênfase dos noticiários locais é quase sempre posta no assombroso crescimento numérico da população de Florianópolis, que mais que dobrou nestes anos todos, enquanto as limitações de espaço, tempo e recursos materiais disponíveis, assim como as belezas e riquezas naturais, seguem parasitadas pela especulação imobiliária, ou até mesmo têm sido reduzidas ou proporcionalmente devastadas/desperdiçadas pelos mesmos políticos (ou seus descendentes) que paradoxalmente se elegeram prometendo protegê-las e preservá-las para as gerações futuras.
Mas é justamente neste outro sentido qualitativo, ainda tão insatisfatório, que os processos de democratização do Brasil e da América Latina poderão oferecer lições comparativas de validade excepcional para o mundo inteiro. Todos os estudos de padrão internacional sobre política comparada sempre enaltecem a dependência do sucesso econômico como garantia da democracia política. Mas os estudos de casos comparativos dos grupos, bairros, cidades e regiões do Brasil e outros países considerados menos prósperos e “desenvolvidos” do mundo oferecem lições contrárias, de coragem, criatividade, dedicação e persistência, que consagram o valor moral, a persistência imbatível, e a pluralidade de intenções, inovações e liberdades, que animam desde sempre a resistência anticolonial e anti-imperialista dos povos oprimidos.
Francisco Canella conclui este livro dizendo o seguinte: “(…) os projetos que tiveram tanta importância na vida dos jovens, na constituição de atores juvenis diferenciados, não foram obra do Estado e de suas políticas públicas, mas da ação dos próprios moradores, de organizações do terceiro setor e de universidades. Por parte do Estado, apesar das melhorias citadas anteriormente, predominam ainda o abandono e o estigma dessas áreas da cidade.” Esse acompanhamento feito pelo Prof. Canella junto à juventude do bairro, com apoio de seus alunos e colegas da Udesc, demonstra uma visão completamente inovadora e reparadora das carências reconhecidas na cidade.
Longe da competição, individualismo e ambição desmedida, reforçadas pelo neoliberalismo dominante, buscou-se aqui a solidariedade, colaboração e autoestima da cidadania, no enfrentamento dos seus problemas comuns. Isso havíamos aprendido desde o início dos nossos estudos, com a leitura das “Necessidades Radicais” de Agnes Heller, em que as necessidades humanas não podem ser medidas apenas numa escala quantitativa, na busca por sempre mais dinheiro, recursos e ambições materiais. Pois isto recairia fatalmente na corrupção moral, que Hegel denominou “a falsa infinitude”, uma falácia e mistificação da lógica e um sério desvio dos objetivos da vida. Qual seja: a busca sempre alienada e alienante, incessante e interminável de recursos materiais à custa dos demais participantes, e no único benefício e interesse próprio e particular de cada um.
Claro, devemos sempre reconhecer também que cada pessoa necessita e merece cultivar sua vida e realizar seus sonhos e aspirações, com o auxílio e a colaboração dos demais, parentes, amigos e vizinhos, e com a assistência e estímulo de todos que devemos atuar no espaço público, e nas instituições do estado, do município e da nação brasileira. Para isso também pagamos impostos e elegemos nossos representantes numa democracia, não é certo? Para garantir nossa liberdade de iniciativa, colaboração e capacidade de organização, no interesse mútuo e da sociedade em que vivemos. Essas virtudes, conquistas e qualidades da vida democrática são o nosso maior tesouro, que jamais poderemos dispensar, e que estamos apenas conquistando pouco a pouco — cabendo a cada geração determinar os seus próprios caminhos e sua peculiar contribuição.
O panorama que Francisco Canella apresenta nesta crônica de duas gerações da cidadania de Florianópolis é, portanto, um “microcosmo” do processo de democratização em nosso país. Pois houve aqui uma primeira geração com grande coragem, destemor e desafio ao autoritarismo, quando a força conjunta da união dos moradores conquistou seu território, logrando derrubar e superar os preconceitos e a discriminação contra eles mesmos: os mais pobres e injustiçados da cidade. Depois foi necessário negociar formas de convivência mais estáveis e rotineiras, e os jovens principalmente foram buscar estudo e ocupação para seguir vivendo, criando simultaneamente laços e oportunidades mais ricos e variados, de convívio, lazer, fraternidade e empreendimento. As escolas e serviços de saúde, de assistência social e extensão universitária (neste como em outros bairros, com apoio da Udesc) foram muito úteis no estímulo a essas iniciativas, reforçando o caráter público desta etapa de expansão e fortalecimento da democracia.
Tais exemplos mostram como as duas gerações que movimentam este bairro têm construído e partilhado uma trajetória dinâmica e mutante, enriquecedora da vida da cidade e do país. Que elas sirvam de exemplo para nós todos que enfrentamos, no Brasil inteiro, a “falsa infinitude” da alienação materialista neoliberal!
Referências bibliográficas
HELLER, Agnes. Teoría de las Necessidades em Marx. Barcelona: Península, 1978.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito (parte 1). Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
MUNCH, Gerardo. “The Past and Present of Comparative Politics“, Kellog Institute Working Paper, N.330, June 2006.
MÉSZÀROS, Istvan. A Teoria da Alienação em Lukács. São Paulo: Boitempo, 2006.
KOWARICK, Lucio Kowarick. A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
Nota
[1] Ph.D. Ciência Política, York University, Canadá, 1983. Professor Permanente, UFSC, Pesquisador Sênior, CNPq.