Fernando Brancoli[1]
A desintegração do governo do Afeganistão nas primeiras semanas de agosto – com a retomada relâmpago do país pelo Talibã – é o fato político mais relevante para a região em 2021. As repercussões do retorno do grupo fundamentalista islâmico ao poder, após 20 anos de ocupação dos Estados Unidos, ainda são difíceis de serem calculadas, mas incluem desde o aumento expressivo do fluxo de refugiados e o transbordamento da crise humanitária para toda a região; a reinserção do país no fluxo internacional de narcotráfico – agora como maior produtor de ópio no mundo; além de reforçar o envolvimento definitivo da China nas dinâmicas conflitivas no Oriente Médio.
É inevitável, em meio a profusão de informações circulando, que as análises acabem por se centralizar em elementos imediatistas, como a decisão de Joe Biden de não ordenar a retirada dos soldados de forma mais ordenada ou a sinalização de que Pequim pretende negociar com o Talibã, após o governo chinês rapidamente divulgar fotos de lideranças do grupo com altos funcionários chineses. Essas reflexões são permeadas ainda por uma espécie de “soterramento midiático”: pela primeira vez na história do país, temos uma crise dessa magnitude sendo registrada por smartphones e divulgada em redes sociais, processo facilitado pelo aumento expressivo do uso dos celulares pela população local nos últimos anos. Uma pesquisa rápida no Twitter ou no Facebook revela um número gigantesco de vídeos gravados por afegãos nos últimos dias, desde cenas de soldados do Talibã sendo recebidos com flores por parte da população em Cabul, ao mesmo tempo em que uma multidão desesperada na capital tenta fugir em direção ao aeroporto. Em uma gravação chocante, um avião cargueiro norte-americano decola com dezenas de pessoas agarradas na fuselagem externa: conforme a aeronave ganha altitude, os corpos, pequenos pontos negros na gravação, vão caindo por centenas de metros em direção a cidade abaixo.
Esse pequeno ensaio pretende explorar alguns elementos que considero relevantes para se pensar criticamente a crise no Afeganistão, em uma tentativa de se somar à cacofonia analítica das últimas semanas. Não tenho como objetivo, obviamente, esgotar as reflexões – mas sim reforçar a necessidade de um debate qualificado sobre o tema e indicar caminhos para futuras pesquisas e análises.
O primeiro ponto importante diz respeito à necessidade de certa moderação analítica ao se empregar analogias históricas. As imagens da saída de diplomatas norte-americanos da embaixada em Cabul rapidamente foram interpretadas como uma nova “queda de Saigon”, referência à debandada atabalhoada, em 1975, de norte-americanos do Vietnã. Em outras análises, no mínimo pitorescas, a retomada dos Talibãs foi comparada à derrota de Alexandre, o Grande, em 330 a.C, a ação do Império Britânico no século XIX ou a invasão dos Soviéticos ao país em 1979. O fio que une essas comparações é aquele que o filósofo palestino Edward Said (2002) chamava de “congelamento histórico do Oriente”. Isto é, a ênfase de analistas ocidentais de imaginar a região como derivada de uma estrutura historicamente homogênea e inalterada, com os grupos sociais locais, as instituições políticas e as relações humanas se organizando de forma idêntica através do tempo. O essencialismo dessa narrativa apontaria para o povo afegão como “indomável” e “acostumado” a resistir a forças mais poderosas.
Uma análise minuciosa do Afeganistão precisa levar em consideração que o país passou por modificações importantes ao longo do tempo, com formas de governo sendo adaptadas e transformadas. Um exemplo do “congelamento” apontado por Said se dá nas análises sobre o Conselho de Anciões – Mesherano Jirga, que reúne figuras notáveis e funciona como uma das câmaras do parlamento, que é constantemente apontado como um “método ancestral” de organização política do país que permanece até hoje. A literatura indica (Wardak 2003; Jochen et al 2006), entretanto, que os membros, as estratégias e a forma como o Conselho se organiza mudaram de forma substancial nos últimos anos. Com a adoção do Distritão como procedimento eleitoral no Afeganistão nas últimas duas décadas, até mesmo a relação com os “Anciões” se tornou mais próxima do processo eleitor-eleitorado visto em outros países da região, como o Paquistão e a Índia.
As analogias históricas mais difundidas nas análises, contudo, são aquelas que estabelecem vínculo direto entre as forças mujahedins apoiadas pelos Estados Unidos em 1979, durante a invasão soviética ao Afeganistão, e o Talibã moderno. Nessa narrativa, Washington teria armado, treinado e capacitado um grupo de fundamentalistas na década de 1980 – inclusive com uma menção hollywoodiana ao lado de Rambo – que, após um processo de rebranding, teria se transformado no Talibã na década de 1990. Essas análises acabam por reforçar uma dimensão caricata da estratégia dos EUA, em um processo em que o criador é atacado pela criatura que ajudou a constituir. É ponto pacífico que Washington é um dos principais responsáveis pelo caos da região, seja pela influência política exercida durante a Guerra Fria, pelo apoio na década de 1990 a governos autoritários, ou pela invasão e ocupação iniciada em 2001. Porém, a relação direta “Mujahedin – Talibã” ignora que os grupos que lutaram ao lado dos norte-americanos na década de 1980 entraram em guerra civil nos anos subsequentes, dando origem a organizações bastante diferentes e muitas vezes antagônicas. O Talibã como conhecemos hoje é composto por fragmentos das estratégias adotadas pelos soldados anti-soviéticos em 1979, mas é informado e constituído principalmente por sujeitos que moraram e treinaram no vizinho Paquistão durante a década de 1990 e nos anos 2000, com a anuência de Islamabad (Farell e Giustozzi 2013). Os EUA são co-responsáveis pelo Talibã por meio de decisões políticas desastrosas adotadas nas últimas décadas, mas as perspectivas sobre a crise afegã necessariamente precisam levar em conta outros fatores, como a constelação de atores envolvidos e suas mudanças através do tempo.
O segundo elemento que vale a pena ser citado diz respeito à incapacidade dos EUA em “reconstruir” o Afeganistão após a invasão de 2001. Os Estados Unidos derrubaram o governo do Talibã com o objetivo explícito de encontrar os responsáveis pelos ataques realizados em 11 de setembro. Apesar da maior parte dos terroristas responsáveis pelo crime serem sauditas, a Al Qaeda teria encontrado abrigo no Afeganistão, de onde, inclusive, os ataques foram planejados. A caça ao mentor do grupo, Osama Bin Laden, só terminaria dez anos depois, quando o saudita é morto por forças especiais norte-americanas no Paquistão. O objetivo de “destruir o Talibã”, entretanto, foi combinado com uma estratégia de “modernização” das estruturas políticas no Afeganistão que impediriam o país de abrigar terroristas novamente. Essa estratégia é materializada pela adoção do famigerado conceito de “Construção de Estado” (State Building), que indicaria a necessidade de transferência de modelos políticos ocidentais para o Afeganistão.
Esse processo se daria a partir da implementação de reformas no sistema judicial e político, passando pelo currículo das escolas locais e até mesmo leis de trânsito. O país, tido aqui como um Estado falido, foi transformado em um laboratório, tal como uma tábula rasa, onde especialistas europeus e norte-americanos poderiam imprimir a modernidade e o progresso. Aureo de Toledo Gomes (2017) demonstra que a perspectiva de State Building no Afeganistão é um amontoado de estratégias e práticas difusas, muitas vezes baseadas em premissas racistas, que ignoram, na maior parte das vezes, qualquer experiência prévia de organização política local. Essas dinâmicas de construção do Estado envolveram projetos de trilhões de dólares que acabaram por reforçar uma lógica de corrupção endêmica que, dentre outras coisas, beneficiou a elite afegã ao mesmo tempo em que não se constituiu como uma ferramenta que gerasse independência de auxílio externo.
Não só os EUA buscaram implementar um modelo heterônomo, impondo aos afegãos modelos institucionais ocidentais, como também a lógica de implementação de um modelo externo no Afeganistão tornou a tomada de decisão bastante demorada e concentrada em práticas “Do Alto para Baixo”, com a burocracia em Washington administrando minuciosamente todos os aspectos decisórios. Um bom exemplo desse dilema foi o programa para auxiliar a população rural do país. Parte desse grupo sobrevivia, nos últimos anos, plantando papoula e vendendo para o Talibã, que usava como matéria-prima para a produção de ópio. Os EUA, em um primeiro momento, decidiram realizar ataques aéreos para destruir as plantações, arrastando fazendeiros e agricultores para o desemprego e, dessa maneira, contribuindo para manutenção de sua aproximação junto ao grupo terrorista. Posteriormente, decidiu-se incentivar o plantio de milho e soja – mas o programa foi interrompido novamente ao se descobrir que os fertilizantes estavam sendo vendidos para o Talibã para a confecção de bombas caseiras. Nos dois casos, a ignorância e incapacidade de dialogar com grupos locais acabou por tornar os programas anacrônicos e verdadeiros escoadouros de verbas.
A análise fica ainda mais complexa – ou desesperadora – ao se levar em consideração que os EUA promoveram uma verdadeira privatização da guerra do Afeganistão já a partir de 2002. Ações de desminagem, entrega de remédios, segurança de bases militares e o treinamento do exército afegão ficaram sob responsabilidade de empresas norte-americanas, o que fez do Afeganistão a primeira guerra terceirizada da história. Para cada soldado regular da OTAN, o país abrigava dois civis contratados. Em relatório sobre o tema, reforcei em conjunto com colegas pesquisadores (De Winter-Smith et al 2013) como tais companhias operaram, muitas vezes, em um cálculo único de aumento de verbas e produção de lucros imediatos, contribuindo para o caráter caótico e desastroso da ocupação.
Por fim, as análises sobre o Afeganistão precisam levar em consideração interesses, dinâmicas e disputas dos grupos locais. Avaliações descuidadas costumam descrever essas lideranças como “Senhores da Guerra” ou “Líderes tribais”, coligações sem-nome que são interpretadas como bestializadas ou incivilizadas. Ocorre que o Afeganistão como espaço de disputa política é um mosaico de organizações que envolvem desde articulações urbanas em cidades como Cabul e Kandahar até organizações rurais com fortes vínculos com o Paquistão. Essa pulverização analítica pode ser expandida até mesmo para considerações sobre gênero, já que as mulheres afegãs são constantemente retratadas como figuras sem capacidade de organização e em uma constante necessidade de serem salvas. Lila Abu-Lughod (2002) aponta que as narrativas sobre o feminismo foram fundamentais para justificar a intervenção de 2001 – ao mesmo tempo em que apagavam a mulher como figura capaz de pensar em estratégias para definir seu próprio destino. A ativista afegã Mariam Wardak reforça essa dimensão, ao afirmar que “entre o Imperialismo dos EUA e o fundamentalismo do Talibã, ninguém parece lembrar de perguntar a opinião das mulheres”.
O Afeganistão deve ser entendido, nessa lógica, como um espaço plural, com uma constelação de atores e interesses que necessariamente precisam ser considerados e interpretados para qualquer análise. Reflexões sobre a crise, no Brasil, parecem reforçar pontos que dizem respeito mais fortemente ao nosso país do que ao Afeganistão, com ativistas comemorando a chegada do Talibã como um debacle da potência imperial ou a retirada dos EUA como um sinal explícito da desintegração de qualquer grupo não ligado ao Talibã. A meu ver, é necessário relativizar esses discursos monolíticos em favor de análises menos instantâneas, produzidas no tempo acelerado das redes sociais, levando em consideração a pluralidade de elementos como ponto essencial para quem deseja se dedicar a entender melhor o país.
Referências bibliográficas:
Abu‐Lughod, L. (2002). Do Muslim women really need saving? Anthropological reflections on cultural relativism and its others. American anthropologist, 104(3), 783-790.
De Toledo Gomes, A. (2017). Statebuilding and the Politics of Budgeting in Afghanistan. Journal of Intervention and Statebuilding, 11(4), 511-528.
DeWinter-Schmitt, R. (Ed.). (2013). Montreux Five Years On: An analysis of State Efforts to Implement Montreux Document Legal Obligations and Good Practices. Barcelona: Adjuntament de Barcelona. Retrieved from http://ihrib.org/wpcontent/uploads/2013/12/MontreuxFv3.pdf
Farrell, T., & Giustozzi, A. (2013). The Taliban at war: inside the Helmand insurgency, 2004–2012. International Affairs, 89(4), 845-871.
Jochem, T., Murtazashvili, I., & Murtazashvili, J. (2016). Establishing local government in fragile states: Experimental evidence from Afghanistan. World Development, 77, 293-310.
Said, E. W. (2012). Culture and imperialism. Vintage: New York.
Wardak, Ali. Jirga—A traditional mechanism of conflict resolution in Afghanistan. Pontypridd, UK: University of Glamorgan, Centre for Criminology, 2003.
[1] Professor Adjunto do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ