Diana de Azeredo[1]
A cada cem candidatas negras, apenas quatro foram eleitas vereadoras em 2020. Essa média dos 5.568 municípios brasileiros sobe para seis quando as pessoas que concorrem são mulheres brancas, para treze no caso de homens negros e para dezesseis se homens brancos. Embora os dados sinalizem a diminuição das taxas de sucesso dos brancos entre 2016 e 2020, as possibilidades de vitória para negros e brancas não mudaram significativamente e as chances de candidatas negras permaneceram inalteradas nos índices mais baixos. Esses são os resultados preliminares da pesquisa apresentada no VII Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política em fevereiro deste ano. Na síntese elaborada para este blog, cabe dizer que se parte de uma perspectiva interseccional (CRENSHAW, 2002; COLLINS; BILGE, 2021) para avançar no debate acerca da desigualdade na sociedade brasileira e sobre seu impacto tanto na representação quanto na participação nas disputas democráticas pelo poder institucional.
Pioneira na definição do termo, Crenshaw (2002, p. 177) explica que a interseccionalidade “trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras”. Analisando situações como a de mulheres pobres em área rural, Collins e Bilge (2021, p. 17) avaliam que “em determinada sociedade, em determinado período, as relações de poder que envolvem raça, classe e gênero, por exemplo, não se manifestam como entidades distintas e mutuamente excludentes. De fato, essas categorias se sobrepõem e funcionam de maneira unificada”.
No contexto brasileiro, são encontrados muitos exemplos de opressões diferentes, mas articuladas, que contribuem para limitar a emancipação de pessoas específicas como mulheres negras. Carneiro (2011) e Gonzalez (1984) partem do sistema escravocrata para entender as origens das desigualdades no país e dos estereótipos em relação às pardas e pretas. Levantamentos de Stegmann (2018) e Biroli (2018) comprovam que negras tendem a ser maioria nos trabalhos de menor remuneração e visibilidade. Hirata (2014) e Hilário (2021) atualizam dados referentes à pandemia de Covid-19, evidenciando que, também nas atividades de cuidado e de maior exposição na área da saúde, pretas e pardas recebem os menores salários.
O impacto dessas disparidades pode ser percebido na ausência de negras nos espaços de poder do Brasil. Embora sejam maioria na população[2], são minoria nos cargos eletivos tanto no Executivo quanto no Legislativo. Utilizando dados referentes às eleições proporcionais de 2016 e 2020, obtidos por meio do pacote ElectionsBR e tratados no R, foi possível mensurar o quanto gênero e raça (variável x) alteram as chances de vitória (variável y) das pessoas que se candidataram.
Entre 57.869 vereadores e vereadoras eleitos/as em 2016, 48,6% autodeclaram-se brancos, 37,1% negros[3], 8,4% brancas, e 4,9% negras; em 2020, as porcentagens foram de 44,1% de brancos, 38,4% de negros, 9,5% de brancas e 6,3% de negras. Como resultado do pleito de 2020, a presença de homens brancos nas câmaras municipais chega a sete vezes mais que a de mulheres negras. Em 2016, a diferença foi de quase dez vezes. Além de outros dados, o Quadro 1 mostra que a possibilidade de um homem branco ser eleito é, aproximadamente, cinco vezes maior que a de uma mulher negra ser eleita.
Quadro 1 – Sucesso eleitoral de brancos, negros, brancas e negras em 2016 e 2020
Gênero e raça | Nº de pessoas que se candidataram (2016) | Nº de pessoas que foram eleitas (2016) | Taxa de sucesso eleitoral (2016) |
Brancos | 153.109 | 28.156 | 18,38% |
Negros | 154.471 | 21.492 | 13,91% |
Brancas | 80.993 | 4.875 | 6,02% |
Negras | 71.213 | 2.879 | 4,04% |
Gênero e raça | Nº de pessoas que se candidataram (2020) | Nº de pessoas que foram eleitas (2020) | Taxa de sucesso eleitoral (2020) |
Brancos | 155.629 | 25.607 | 16,45% |
Negros | 175.970 | 22.287 | 12,66% |
Brancas | 88.468 | 5.485 | 6,19% |
Negras | 88.269 | 3.639 | 4,12% |
Observando a frequência absoluta das candidaturas às câmaras municipais, já é possível verificar que o número de candidatos brancos equivale a quase o dobro da quantidade de candidatas negras. E mesmo se candidatando mais do que os homens brancos, os negros são menos eleitos. A proporção de pessoas eleitas em cada grupo evidencia um problema de desigualdade que não se resolve apenas inserindo mais mulheres e negros na disputa eleitoral. As diferenças nas taxas de sucesso, que ficam mais evidentes na separação por gênero e raça, são melhor expressas no gráfico a seguir.
Gráfico 1 – Frequência da taxa de sucesso eleitoral por gênero e raça
O histograma mostra que, dos cinco níveis de frequência relativa, as candidaturas de mulheres negras sequer atingem o mínimo, indicando que a proporção de eleitas entre as candidatas é muito pequena. Ainda que as brancas ultrapassem o segundo nível e os negros, o terceiro, os únicos que conseguem se aproximar do mais alto nível de frequência são os brancos. Esses dados sinalizam, portanto, que, neste grupo, a vitória eleitoral é mais comum. Tanto em municípios onde a taxa de sucesso é de 100% quanto em cidades onde as chances são de 50%, os homens brancos são os vitoriosos mais frequentes, denotando a discrepância entre presença na população e no Legislativo.
De um pleito para outro, as medidas que visam à diminuição da desigualdade nas disputas eleitorais ainda foram insuficientes, tendo em vista que não ampliaram significativamente as chances de sucesso eleitoral de grupos marginalizados do poder institucional – ainda que, em números absolutos, a quantidade de parlamentares negros, brancas e negras tenha aumentado. Embora as possibilidades de vitória de homens brancos tenham diminuído e talvez migrado para mulheres brancas, este segundo movimento ainda não é relevante ao nível dos testes de hipótese[4]. Além disso, os cálculos das médias de 2016 e 2020 chegam ao mesmo resultado quanto às taxas de vitória das mulheres negras – grupo majoritário na população e que sofre as maiores desvantagens nas eleições.
As determinações do TSE quanto à distribuição proporcional do Fundo Eleitoral, entre outras, para aumentar a presença de mulheres e negros nas câmaras municipais, além das campanhas de sensibilização e articulação promovidas por grupos da sociedade civil, desafiam muros de uma desigualdade constituinte da sociedade brasileira e até mesmo mundiais – como no caso da disparidade de gêneros. A crise econômica e as medidas de isolamento interferiram nas campanhas eleitorais e certamente ajudam a explicar por que as chances de sucesso de grupos minoritários não cresceram, apesar das ações que buscaram elevá-las.
Atualmente, a abordagem interseccional de fenômenos políticos torna-se imprescindível sob o risco de esconder aspectos relevantes em quaisquer análises. A realidade brasileira, onde mulheres negras são maioria, para ser melhor compreendida, requer uma avaliação que combine gênero e raça. Tais eixos, articulados, criam condições específicas. Observando como essas categorias se sobrepõem e funcionam de modo unificado, torna-se evidente a posição inferior quase sempre destinada às mulheres negras. Começando pelo ensino básico, seguindo para a pós-graduação, passando pelo mercado de trabalho e chegando aos cargos eletivos, pardas e pretas encaram desvantagens que pouco diminuíram ao longo dos anos. Mensurá-las com métodos que primam pelo rigor científico e inseri-las no debate mais amplo sobre democracia, mesmo com resultados de pesquisa em fase preliminar, é um passo modesto, porém, necessário.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Boletim Lua Nova ou do Cedec.
Referências
BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo:
Boitempo, 2018.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.
CRENSHAW, Kimberlé W. Documento para o Encontro de Especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, ano 10, 2002.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, 1984.
HILÁRIO, Rosangela Aparecida. Palestra proferida no 45º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), 20 out. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bBuAj_2-86s. Acesso em: 20 out. 2021.
HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça. Tempo Social, São Paulo, v. 26, n. 1, 2014.
STEGMANN, Philip Barbosa. A luta contra a desigualdade de renda entre gêneros e raças: estamos vencendo ou perdendo?. São Paulo: Insper, 2018.
[1] Jornalista e mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Agradeço aos professores doutores Glauco Peres da Silva e Jonathan Phillips, da Universidade de São Paulo (USP), que me permitiram assistir, na condição de aluna especial, às suas aulas sobre métodos e análise de dados. Esse conhecimento foi fundamental para iniciar os estudos sintetizados aqui.
[2] De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 51,8% das pessoas residentes no país são mulheres e, destas, 56,2% declaram-se pretas ou pardas. Informações disponíveis no site do IBGE: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-mulheres.html Acesso em: 13 jan. 2021.
[3] As raças preta e parda foram consideradas raça negra, de acordo com o Art. 1º do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm Acesso em: 30 set. 2021.
[4] O trabalho original traz detalhes dos quatro testes t para verificar a diferença na média de sucesso de brancos, negros, brancas e negras entre os anos 2016 e 2020. Considerando o nível de significância 0.05, o único valor p menor foi relativo aos homens brancos, sugerindo que foi estatisticamente relevante a diferença entre as médias de um pleito para outro.
Fonte Imagética: Mulheres negras querem mais espaço na política, Agência Senado (Créditos: Geraldo Magela/Agência Senado). Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/11/19/mulheres-negras-querem-maior-espaco-na-politica>. Acesso em 28 abr 2022.