Sabrina Sales Araújo[1]
A reprise da novela “Pantanal” feita pela Rede Globo, que estreou na televisão em março de 2022, tem sustentado alto IBOPE, ultrapassando as expectativas da emissora. Para os que assistiram a primeira edição da trama transmitida pela extinta Rede Manchete na década de 1990, a nova peça traz sentimentos de nostalgia e encanta ainda mais com os cenários naturais gravados com tecnologia de cinema. A despeito disso, o bioma que dá título e onde se passa a história, apresenta muitas diferenças entre uma estreia e outra. Isso porque se encontra atualmente mais degradado por diversos fatores, entre eles a intensificação das queimadas. As discussões sobre esses problemas foram atualizadas na nova versão, apontando ora de forma incisiva e ora de modo mais sutil alguns dos desafios para a preservação do bioma.
A questão das queimadas em particular tem sido apontada por alguns dos personagens indiretamente ao falar sobre o turismo, atividade econômica vista como mais viável que a pecuária que é majoritária na região e como proposta para geração de renda e de empregos de forma sustentável. Na trama, a discussão tem início quando o paranaense Tenório (Murílo Benício), com passado obscuro envolvendo grilagem de terras no sul do país, compra uma propriedade no Pantanal e busca uma forma de desenvolver uma atividade lucrativa. Ele propõe uma sociedade para construção de um resort a José Leôncio (Marcos Palmeira), um agropecuarista de sucesso, dono de várias propriedades em outras regiões do Brasil, e morador de longa data no Pantanal, onde trabalha com o gado de forma tradicional, respeitando as particularidades impostas pela natureza pantaneira, pois reconhece que apesar do bioma ser apresentado e visto pelas pessoas de fora como um paraíso das águas, é caracterizado pelos que lá vivem como um ambiente rude, hostil e de difícil adaptação à vida humana frequentemente ameaçada pelos perigos da vida selvagem.
José Leôncio desconfia das altas pretensões de lucro de Tenório. Por isso, faz um alerta para a necessidade de cautela para esse tipo de empreendimento e sugere a construção de um hotel ou pousada, algo menor que se adeque melhor às características do local. Assim seria possível assegurar menos interferência na natureza que, afinal, é o produto turístico cujo valor se encontra em sua singularidade e na não descaracterização. Nas palavras de Tenório, após compreender os conselhos de José Leôncio e identificar a sua ingenuidade quanto a proposta de um resort que causaria alto impacto ambiental, “os turistas estrangeiros pagam muito para ver esse lugar assim, do jeito que está”, isto é, preservado. Assim, o turismo é apontado como uma atividade que, se realizada de forma correta e sob medida às particularidades locais, poderá enfim gerar lucro, renda, empregos, e de quebra ainda contribuir para o fim das queimadas e para a preservação do bioma.
Ocorre que quando a primeira novela foi gravada o turismo já estava sendo desenvolvido no Pantanal há uma década, sobretudo o de pesca esportiva que, atualmente, é o principal segmento turístico desenvolvido no bioma. A atividade foi impulsionada por uma crise na agropecuária motivada pela histórica cheia da década de 1970, pela febre aftosa que atingiu fortemente a produção e pelas novas determinações do mercado internacional que exigiu protocolos produtivos para a carne[2] que aumentaram as despesas dos produtores – que se utilizavam de técnicas desenvolvidas de forma tradicional no Pantanal (RIBEIRO, 2014). Além disso, contribuiu para a chegada de pescadores amadores à região a atração pela alta piscosidade dos rios pantaneiros. Isso porque os rios de outras regiões urbanizadas, como São Paulo, poluídos e desgastados, não atraiam mais esse público que passava a chegar ao Pantanal de forma aventuresca e sem infraestrutura hoteleira para recebê-los. Essas condições foram gradativamente sendo vistas como uma oportunidade para a geração de renda e alternativa para a crise (MORETTI, 2006).
A racionalização do espaço pantaneiro e a organização criada para atender este segmento, logo evidenciou as suas contradições e problemas, tais como: a construção de hotéis, pousadas e pesqueiros de forma desordenada e não fiscalizada, com materiais exógenos e não adaptados às características ambientais do Pantanal; e o funcionamento desses estabelecimentos em espaços rurais onde não há saneamento ou coleta de lixo, gerando a poluição dos rios e da paisagem, impactando negativamente a própria pesca. O turismo atraiu trabalhadores das pequenas cidades pantaneiras que nas zonas rurais se estabeleceram de forma improvisada, gerando o nascimento e crescimento de pequenas comunidades ribeirinhas que vivem em condições precárias, como a comunidade Passo das Lontras em Mato Grosso do Sul, conhecida como a “Favelinha” (BANDUCCI JÚNIOR, 2001). Esses moradores que fornecem a sua mão de obra para o turismo são vistos por segmentos como o Ecoturismo – que se desenvolveu mais recentemente – como problemáticas, por modificar a paisagem natural e, pelas suas condições de moradia, contribuírem para a poluição. A falta de fiscalização da pesca esportiva também foi um dos fatores que contribuiu para a redução do estoque pesqueiro, causando ainda problemas para as populações ribeirinhas que viviam da pesca profissional, muitas das quais encontraram no próprio turismo outra alternativa de trabalho e renda (Idem).
Apesar desses problemas causados pelo turismo, a escassez de peixes que atualmente conduz ao declínio desta atividade também ocorreu por outros motivos. O primeiro é a exploração desordenada de terras no entorno pantaneiro, com desmatamento intenso para plantio de lavoura e pasto e o uso de agrotóxicos que chegam aos rios e causam sérios prejuízos à vida aquática. Um segundo motivo é a pesca desenfreada de atravessadores de outras regiões para atender aos interesses de frigoríficos utilizando equipamentos para pesca massiva, até então desconhecidos no Pantanal e que hoje são proibidos. Por causa disso, no estado de Mato Grosso do Sul, onde está a maior parcela do bioma, por exemplo, foram impostas leis restritivas à pesca, o que também tem contribuído para afastar os turistas que não podem mais levar grandes quantidades de peixe para casa (Idem).
Na década de 1990, a transmissão da novela intensificou o interesse de outro tipo de turista pelo Pantanal, um público encantado com as belezas cênicas apresentadas pelas telas a distância e que buscavam a contemplação da natureza e o contato com a vida selvagem. A essa altura, os problemas envolvendo o turismo de pesca já apontavam para um declínio, e modalidades como o Ecoturismo surgiam como uma espécie de panaceia. De acordo com Almeida (2002), o típico ecoturista possui uma demanda ativa caracterizada pela preocupação com o futuro da humanidade e a conservação do meio ambiente buscando praticar um turismo de natureza em locais e regiões inexploradas ou pouco exploradas, causando o mínimo impacto no local.
Apesar dessa preocupação, em muitos casos as pousadas que são os principais estabelecimentos que desenvolvem esta modalidade turística na região, vendem os seus serviços turísticos com o rótulo do Ecoturismo, mas não se adequam totalmente aos princípios e exigências do segmento (OLIVEIRA, 2017) contribuindo assim como o Turismo de Pesca de forma paradoxal para o seu próprio declínio ao poluir o ambiente e impactar negativamente no valor de seu produto: a natureza pantaneira (MORETTI, 2001; 2006). A pesquisa de Almeida (2002) em pousadas no Pantanal revelou que os estabelecimentos não fazem, por exemplo, a reciclagem integral de seus resíduos e que também não exploram um dos princípios do segmento que é a cultura local. Desse modo, possuem pouco envolvimento com as populações e comunidades residentes no Pantanal no processo de planejamento e desenvolvimento das atividades turísticas. Por isso, esses grupos acabam servindo, de forma geral, apenas como mão de obra para o setor (ALMEIDA, 2002; OLIVEIRA, 2017).
A despeito disso, o segmento tem contribuído com a mudança de valores para a preservação da fauna e da flora. Um exemplo é o fato de que a onça pintada, antes vista como uma ameaça à produção pecuária por atacar o gado, sendo caçada e morta pelo prejuízo que causava, é atualmente preservada mesmo com os males causados ao gado. Nesse sentido, muitas pousadas foram instaladas em fazendas que praticam a pecuária e o turismo, sendo este último, em alguns casos, mais lucrativo. Assim, a onça se tornou um verdadeiro símbolo explorado como atrativo turístico – mas apesar da preservação, ocorrem casos em que para atender ao desejo dos turistas de vê-las, esses animais são domesticados.
É ao Ecoturismo, essa denominação que tem sido utilizada para qualquer tipo de turismo que se relacione com a natureza (WESTERN, 2001, p.20), que Tenório se refere quando fala do turismo ambiental. Mas a crítica a este segmento também aparece na novela na fala da personagem Guta (Luciene Adami), sua filha. Ela, que é advogada, alerta o pai para a necessidade de seguir as leis, mostrando que mesmo o turismo mais preocupado com questões ambientais pode ser bastante nocivo. Um exemplo disso é quando aponta a ceva da onça, prática de atrair o animal com carne de outros animais para os turistas tirarem fotos, como criminosa e problemática[3]. A personagem enfatiza que para uma prática verdadeiramente responsável, as leis de preservação têm de ser seguidas a rigor.
Atenta, portanto, aos problemas que se apresentam hoje no Pantanal como os desafios à preservação de sua diversidade natural, a novela que em sua primeira edição apresentou o bioma ao Brasil (LEITE, 2008), traz na nova versão adaptações ao roteiro que atualizam nacional e internacionalmente sobre o difícil cenário que impõe questões ao futuro das várias regiões que compõem o Pantanal, mostrando as mudanças, a chegada de pessoas de outras regiões, além de problemas como o conflito entre as relações tradicionais e modernas. Nesta última questão, o turismo tem aparecido através de uma perspectiva não ingênua, como uma atividade que pode gerar renda, empregos, contato com turistas internacionais, ao mesmo tempo em que tem como incumbência, como necessidade e desafio, a preservação. Dessa forma, a novela até então, apresenta, pondera e adota postura crítica à atividade que desponta hoje como principal alternativa econômica ao Pantanal.
Referências
ALMEIDA, N. P. Segmentação do Turismo no Pantanal Sul-Mato-Grossense. Dissertação (mestrado em desenvolvimento local). Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande – MS, 2002.
BANDUCCI JÚNIOR, A. Turismo de Pesca e suas contradições no Pantanal Mato-Grossense. BANDUCCI JÚNIOR, Á; MORETTI, E. C. (Orgs). Qual Paraíso?: turismo e ambiente em Bonito e no Pantanal. Editora UFMS. Campo Grande – MS, 2001, p. 75-99.
MORETTI, E. C. Atividade turística: produção e consumo do lugar Pantanal. BANDUCCI JÚNIOR., Á; MORETTI, E. C. (Orgs). Qual paraíso? Turismo e ambiente em Bonito e no Pantanal, Ed. UFMS, 2001, p. 41-73.
MORETTI, E. C. Paraíso invisível e real oculto: a atividade turística no Pantanal, Editora UFMS, Campo Grande – MS, 2006.
LEITE, E. F. Do éden ao Pantanal:considerações sobre a construção de uma representação. In Espaço Plural, n. 18, 2008.
OLIVEIRA, M. S. Estrada Parque Pantanal e o conhecimento tradicional das comunidades locais na potencialização do desenvolvimento territorial. Dissertação (mestrado em desenvolvimento local). Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, 2017.
RIBEIRO, M. A. Entre ciclos de cheia e vazante a gente do Pantanal produz e revela geografias. Tese de Doutorado. Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pp. 279, 2014.
RIBEIRO, M.A; MORETTI, E. C. Pantanal/MS/Brasil: a construção de novas geografias. XII Coloquio Internacional de Geocrítica: las independências y construcción de estados nacionales: poder, territorialización y socialización, siglos XIX – XX, Bogotá – Colômbia, maio, 2012.
WESTERN, D. Definindo o Ecoturismo. In BRASIL. MINISTÉRIO DO TURISMO. Ecoturismo: orientações básicas 2. ed. Brasília, Ministério do Turismo, 2010.
[1] Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGAS/UFMS). Bolsista CAPES. Email: sabrina.araujo@ufms.br
[2] Entre as exigências do mercado internacional e condições para manter a produção bovina competitiva estão: a suplementação nutricional, a plantação de gramíneas exóticas, modernas técnicas de manejo, com inserção de máquinas tecnológicas, substituição dos cavalos nas atividades dos peões por triciclos, motocicletas e caminhonetes, administração das fazendas e acompanhamento do gado feito por técnicos profissionais como administradores, veterinários e zootecnistas, o transporte dos bois feito por caminhões em substituição das tradicionais comitivas (Cf. RIBEIRO & MORETTI, 2012).
[3] BOURSCHEIT, A. Alimentando as feras no Pantanal. Jornal ((o))eco. Disponível em: <https://oeco.org.br/reportagens/19976-alimentando-as-feras-no-pantanal/>. Acesso em: 9 maio 2022.
Fonte Imagética: ICMBIO. Pesquisadores rastreiam onças no Pantanal. 24 jun. 2019. Foto do Acervo ESEC Taiamã. Disponível em: <https://www.gov.br/icmbio/pt-br/assuntos/noticias/ultimas-noticias/pesquisadores-rastreiam-oncas-no-pantanal>. Acesso em: 9 maio 2022.