Gilberto Vergne Saboia[1]
O Boletim Lua Nova republica a homenagem de Gilberto Vergne Saboia ao embaixador José Lindgren Alves e ao Juiz Antonio Augusto Cançado Trindade, realizada no evento “A Importância da Reconstrução das Políticas de Direitos Humanos no Brasil”, organizado pelo Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDH-IEA) do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, em parceria com o Núcleo de Direito e Direitos Humanos (Cedec), e publicada no número 116 da Revista Lua Nova.
***
Sinto-me honrado pelo convite para participar destas homenagens. O Brasil perdeu duas personalidades insignes, cuja ausência será sentida num momento delicado da vida brasileira e da conjuntura mundial. Esses dois notáveis brasileiros seguiram carreiras distintas, mas, em cada uma delas, chegaram ao auge de suas potencialidades, não apenas pelas posições alcançadas, mas, sobretudo, pelo conteúdo científico e ético de suas contribuições. Esses dois Augustos, um José e outro Antônio, partilharam diversos pontos de convergência intelectual e ética. Em ambos vibrava a paixão pela justiça e o anseio pela criação e fortalecimento de normas e instituições livres, democráticas e capazes de reduzir, senão eliminar, as flagrantes desigualdades entre pessoas e grupos humanos, e as aberrantes situações de opressão, discriminação e violência, que continuam a impedir o progresso da humanidade.
Lindgren e Cançado Trindade encontraram-se pessoalmente em um momento crucial para o avanço da proteção internacional dos direitos humanos: na Conferência de Viena de 1993 e durante sua preparação. Cançado Trindade, então membro da diretoria do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, esteve presente em todas as etapas preparatórias e na própria Conferência, tendo integrado a delegação oficial brasileira. Lindgren Alves, por sua vez, era chefe da Divisão das Nações Unidas do Itamaraty, a cargo dos direitos humanos. Cançado também participou ativamente do Plenário e da Comissão Principal da Conferência e atuou, tal como Lindgren Alves, no importante papel de interagir com a numerosa delegação da sociedade civil brasileira, transmitindo o desenvolvimento das negociações e auscultando suas opiniões. Essa participação, como ocorrera na Rio-92, foi mais um marco da ampliação da presença da sociedade civil em conferências internacionais, e repercutiria fortemente no plano nacional.
O embaixador Lindgren Alves teve um papel crucial na negociação dos documentos finais da Conferência de Viena. Coube-lhe, por minha iniciativa como Presidente do Comitê de Redação, presidir a força tarefa encarregada da negociação do Programa de Ação. Esse programa tem grande importância, pois traduz a parte conceitual da declaração em metas concretas. Diretrizes foram adotadas sobre todos os setores da área de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), prevendo, também, a sua operacionalização e a provisão de recursos humanos e financeiros. Do programa de ação, partiu a recomendação à Assembleia Geral da ONU que depois resultou, em poucos meses, na criação do cargo de Alto Comissário para Direitos Humanos da mesma instituição. Foi uma missão coroada de êxitos e assegurou muitos avanços. Inspirou, no Brasil, entre outros efeitos, o primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH I), lançado em 1996, que teve dois sucessores, podendo ter uma quarta versão em breve.
O embaixador Lindgren tornou-se, em 1995, o primeiro chefe do recém-criado Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Itamaraty, desenvolvido a partir de recomendações da Conferência de Viena. Nessa condição ou com o seu anterior chapéu institucional, Lindgren participou de todas as conferências sobre temas sociais da década de 1990 e dos respectivos processos de preparação e seguimento.
Isso significou uma experiência ímpar numa época em que o tratamento desses temas no plano internacional era uma novidade para o Brasil, recém-saído de uma ditadura de vinte anos. Foi uma época de florescimento de organizações da sociedade civil e de sua interação com instituições do Estado. Nem tudo foi fácil, o diálogo às vezes não era fluído. A familiaridade de Lindgren com ativistas e órgãos da sociedade civil, aliada ao seu profundo conhecimento sobre os temas, tornara-o um ator importante nesses diálogos.
Ao lado dessa extraordinária vivência, Lindgren mostrou-se um arguto analista do sistema internacional de proteção dos direitos humanos e de suas relações com as diferentes sociedades nacionais. Nessa vertente intelectual e acadêmica, produziu várias obras sobre os direitos humanos. Tornou-se, graças a esse talento e dinamismo, membro ativo do CEDEC. Foi nessa condição que preparou o que talvez seja seu último texto, intitulado O itinerário Brasília-Viena-Brasília dos Direitos Humanos, de quinze de janeiro de 2022, chegando-me aos olhos pelo caderno 134 do CEDEC, que relatou o seminário Construção e Desmonte das Políticas Nacionais de Direitos Humanos, realizado em outubro de 2021.
Nesse texto, Lindgren sintetiza o processo que conduziu Viena, o significado da Conferência e seus resultados, tanto no plano internacional quanto no que diz respeito ao Brasil – como os que já citei -, e a criação de comissões de direitos humanos no Congresso e em estados e municípios. Faz nesse texto elogio ao nosso outro homenageado, o juiz Cançado Trindade, por sua atividade antes e durante a Conferência de Viena e por seu engajamento em favor dos direitos humanos no Brasil, em particular com vistas a promover o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo país, o que ocorreu em 1998.
O embaixador Lindgren Alves teve participação ativa, como especialista da ONU, desde 1994, devendo-se citar a sua presença no Comitê sobre a Eliminação do Racismo e todas as formas de Discriminação Racial (CERD), no qual exerceu vários mandatos. Guardava ainda, ao falecer, a condição de assessor do CDH.
O juiz Cançado Trindade iniciou jovem sua carreira acadêmica e formou-se em Direito na UFMG em 1969, com um primeiro prêmio em Direito Civil. Poucos anos depois, galgava o mestrado e doutorado na Universidade de Cambridge, tendo recebido sua tese de doutorado sobre Esgotamento dos recursos internos em direito internacional o prêmio York, em 1977. Em 1981, Cançado Trindade foi assessor jurídico da delegação brasileira na VI Conferência da Comissão Mista Brasil-França de Limites para demarcação da fronteira com a Guiana Francesa. Consultor Jurídico do Itamaraty de 1985 a 1990, foi um dos mais destacados titulares desse importante cargo, tendo produzido mais de duzentos pareceres e integrado, em sua qualidade de consultor jurídico da chancelaria brasileira, várias delegações oficiais a conferências da ONU, da OEA e de natureza especializada.
O período de Trindade como Consultor Jurídico foi muito fértil em mudanças políticas e sociais, com a volta à democracia e a elaboração e promulgação da Constituição de 1988. Como Consultor Jurídico, Cançado Trindade contribuiu para dar fundamentação jurídica à adesão do Brasil aos tratados universais e regionais sobre direitos humanos.
O talento e o entusiasmo com que Trindade se lançava às suas atividades e especulações no âmbito do direito sempre foram marcados por uma incessante busca de justiça e igualdade. Para ele, não fazia sentido uma lei que não correspondesse ao objetivo de promover uma sociedade justa. Formou, assim, uma visão humanista do direito internacional. Propagou essa visão em sua intensa atividade como professor. No Brasil, foi professor titular da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco entre 1978 e 2007. E continuou, durante o resto de sua vida, a exercer essa função de difusor do conhecimento como conferencista e palestrante em universidades e centros de ensino e pesquisa, falando sobre direito internacional em todos os continentes, com ênfase para os países latino-americanos. Ministrou o Curso Geral de Direito Internacional Público da Academia de Direito Internacional da Haia em 2005, o primeiro ofertado por um brasileiro desde a fundação da Academia, em 1923.
Sem interromper sua missão de professor, Cançado Trindade abraçou a vocação de juiz, aquela que enseja a aplicação do direito a casos concretos, na qual ele vislumbrou a oportunidade de impulsionar o direito internacional para rumos mais compatíveis com a razão humanista dos pais fundadores que se inspiravam do direito natural. Depois de exercer a função de juiz ad hoc da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH), entre 1990 e 1994, foi eleito juiz titular em 1995, reeleito em 2000 e exerceu a presidência da Corte em duas ocasiões, tendo permanecido nela até 2008, quando foi eleito para a Corte da Haia.
A jurisprudência da CtIDH foi enriquecedora nesse período, e pode-se verificar sua importância pela frequência com que as teses adotadas nas sentenças constituem fonte de citação em textos jurídicos de obras acadêmicas, de outros tribunais ou nos trabalhos da Comissão de Direito Internacional. As opiniões separadas, complementares ou divergentes, tornaram-se uma marca registrada de Trindade, que ele repetiria na Haia.
No campo dos direitos humanos, mas também em outros ramos do direito, Cançado Trindade batalhava em favor de uma justiça que levasse em conta o ser humano. Insistiu sempre em fortalecer a posição do indivíduo como sujeito de direito no plano internacional e pleiteou o seu direito de comparecer aos tribunais. Na Corte Internacional de Justiça desde 2009, Cançado Trindade continuou a propugnar uma visão humanista da aplicação do direito internacional, centrada no indivíduo e não exclusivamente no Estado, como sustentavam a maioria de seus pares. Trindade se opôs à visão estritamente interestatal, que tem prevalecido nos casos julgados pela Corte, mesmo quando existem nítidas razões para incorporar o interesse da pessoa humana.
Lembra ele que, na etapa preparatória da Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI), a antecessora da atual Corte, que funcionou entre as duas guerras, alguns juristas membros da Comissão preparatória cogitaram atribuir algum status jurídico a indivíduos, mas o que prevaleceu foi o enfoque interestatal. Isso, aponta Trindade, se contrapõe aos numerosos casos ligados à situação de pessoas e grupos humanos que ocorreram no período da CPJI. A atual Corte seguiu no seu Estatuto o modelo institucional da anterior, que se caracteriza por uma rigidez anacrônica.
Foi exemplo de sua atitude inconformista o voto, separado e divergente, que Trindade deu no caso entre a Alemanha e a Itália, com intervenção da Grécia, sobre Imunidades Jurisdicionais do Estado, julgamento proferido em 2012. O caso originou-se do fato de que cidadãos italianos e nacionais gregos, vítimas de atrocidades cometidas pelo regime nazista em seus territórios entre 1943 e 1945, não foram, por razões circunstanciais, beneficiados pelo acordo global entre Alemanha e Itália para compensação de vítimas da guerra e ocupação, concluído em 1961. Essas pessoas esgotaram os recursos judiciais existentes na Alemanha, sem obterem qualquer remédio. A justiça italiana deu acolhida às demandas em instância superior e, diante da invocação pela Alemanha de sua imunidade jurisdicional – par in parem non habet imperium -, a Itália aplicou medidas executórias, inclusive relativas a prédios ocupados por institutos culturais alemães.
O juiz Cançado Trindade, em seu memorável voto, analisa a tensão entre as normas sobre a imunidade do Estado e sobre o direito de acesso à justiça. Essa tensão era evidente numa situação em que vítimas de violações graves de normas de direito internacional imperativo – jus cogens – se viam sem acesso à justiça, remédio judicial e reparações, devido à invocação de uma norma processual como é a norma da imunidade jurisdicional dos Estados.
Cabe aos brasileiros juristas e outros estudiosos, inclusive aos defensores dos direitos humanos, dar à obra de Cançado Trindade a devida projeção e aprofundar a compreensão de suas ideias. Cabe a nós também, assim como a nossos pósteros, inspirarmo-nos em seu exemplo e no de José Augusto Lindgren Alves, como promotores da justiça e da equidade.
Bibliografia
CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. 1997. Esgotamento dos recursos internos em direito internacional. Brasília, DF: EdUnB.
LINDGREN ALVES, José Augusto. 2022. O itinerário Brasília-Viena-Brasília dos Direitos Humanos. Cadernos Cedec, n. 34, pp. 85-99.
[1] Embaixador pelo Brasil em Haia, Países Baixos, e membro da Comissão de Direito Internacional (2007-2011) eleito pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, onde também foi representante permanente para a Proibição das Armas Químicas. Reconhecido por sua defesa dos direitos humanos, ele também presidiu o Comitê de Redação da Conferência Mundial para os Direitos Humanos, em Viena (1993), chefiou a delegação brasileira na Conferência para o Estabelecimento do Tribunal Penal Internacional, em Roma (1998); foi secretário de Estado para os Direitos Humanos entre 2000 e 2001 e subsecretário-geral de Assuntos Políticos do Itamaraty entre 2002 e 2003.
Fonte Imagética: Colagem feita a partir das imagens: (1) José A. Lindgren Alves é o novo Secretário Executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos, Mercosul. Disponível em <https://www.mercosur.int/pt-br/jose-a-lindgren-alves-e-o-novo-secretario-executivo-do-instituto-de-politicas-publicas-em-direitos-humanos/>. Acesso em 07 set 2022; (2) Cançado Trindade durante homenagem que recebeu da Amagis em 2014, AMAGIS – Associação dos Magistrados Mineiros. Disponível em <https://amagis.com.br/posts/amagis-lamenta-o-falecimento-do-jurista-antonio-augusto-cancado-trindade>. Acesso em 07 set 2022.